Menu fechado

Meu amigo Alípio Freire

Tatiana Merlino

Um “revolucionário de veludo”. Foi assim que um amigo definiu Luiz Eduardo Merlino, meu tio, jornalista e militante que não pude conhecer porque foi morto em 1971, aos 23 anos, em decorrência das torturas comandadas por Carlos Alberto Brilhante Ustra durante a ditadura civil-militar. Pego emprestada a expressão “revolucionário de veludo”, no entanto, para descrever Alípio Freire, meu amigo que morreu na quinta-feira passada, 22 de abril, de covid-19.

Voz grave, sorriso largo, cabelos brancos longos amarrados num rabo. Bigodes, óculos, pele morena, dedos longos. Alto e altivo, caminhava com uma bengala, vestia calça jeans e all star. Um charme. Foi assim que o conheci pessoalmente, no início dos anos 2000, embora já o conhecesse por meio de relatos, textos, e livros sobre a ditadura, como o “Tiradentes: um presídio da ditadura”, organizado por ele próprio.

Era um homem de grandes ideais, enorme generosidade e gentileza no trato. “Rigoroso na análise e generoso no gesto”, como alguém escreveu esses dias. Tratava a todos de forma igual, sem distinção, como também contam inúmeros relatos sobre ele.

Logo que nos conhecemos, Alípio me contou que conheceu Merlino, que haviam trabalhado juntos na imprensa. Ele foi uma das pessoas que me ajudou, ao longo de vários anos, a juntar histórias para recriar um tio que nunca conheci. Ajudou a plantar flores na lápide que habitava o meu peito. E me ajudou a conhecer mais sobre a ditadura, apresentou relatos e personagens, contou dezenas de histórias. Foi fundamental na minha formação de jornalista e defensora de direitos humanos com os temas a tortura, a memória, a justiça, a militância contra a ditadura.

Alípio Freire dá aula a estudantes na frente do Presídio Tiradentes, em novembro de 2016. Foto: Secretaria Municipal de Direitos Humanos de São Paulo.

Foram duas décadas de companheirismo e amizade. Alípio foi e é umas das grandes referências na minha vida. Uma mistura de tio, padrinho, companheiro de luta, amigo, mestre.

Nossos primeiros anos de convivência foram no Brasil de Fato, jornal que ele ajudou a fundar e onde fui uma das primeiras a integrar a redação. Nós, os jornalistas da equipe de redação, participávamos das reuniões do conselho editorial, do qual faziam parte figuras importantes de vários setores da esquerda brasileira, entre eles, Alípio. Eram aulas sobre conjuntura política brasileira.

As análises de Alípio eram feitas de pé, voz grave, pausas, cabeça erguida. Foi também numa dessas reuniões, em 2006, que ele levantou-se quando um dos participantes fez uma consideração que desagradou a um outro. O segundo, irritado, dirigiu-se ao primeiro, de forma pouco amigável. Alípio, que estava sentado entre os dois, levantou-se e levantou também sua bengala, impedindo que algo ali acontecesse.

Alípio começou a participar do dia a dia da redação. Todos ganhamos apelidos hilários, malucos ou impronunciáveis. Ele era o mais velho, mas o mais jovem entre nós. Foram tantas conversas no bar, piadas, risadas, histórias. Alípio chegava na redação jogando balas nas nossas mesas. E escrevia os editoriais. Ao terminá-los, pedia sempre a opinião de um de nós. Era erudito e humilde. Sempre nos tratou como iguais. Nas reuniões de pauta e do conselho, fazia desenhos e bilhetes. Nos e-mails, sempre começava com um “grande e querida camarada”.

Além das firmes posições de esquerda e da generosidade, tinha um humor único e fazia piadas que só ele podia fazer, como bem lembrou Dafne Melo. Nesses dias de balanço da morte do meu amigo, fui me reencontrar com ele em dezenas de mensagens de e-mail, entre elas uma em que dizia “há duas coisas das quais não podemos abrir mão: 1. De nos indignarmos. 2. De dar risada – inclusive de nós mesmos, e sobretudo dos nossos inimigos”.

Quando comecei a namorar o Igor Ojeda, que o Alípio dizia ter “o melhor texto de sua geração”, pouco depois Igor foi morar na Bolívia, para trabalhar como correspondente do jornal. Alípio, vendo-me saudosa do namorado, inventou um apelido boliviano para mim, pelo qual seguiu chamando-me até hoje, como no último recado deixado em minha caixa postal do celular, dias antes de ser internado.

Já não sei qual era o ano, mas era um dia do fechamento do Brasil de Fato. Um carro da ENEL parou na frente da casa de esquina da Eduardo Prado, no Campos Elíseos, e funcionários da empresa preparavam-se para cortar a luz. Alípio saiu à porta e subiu na escada que estava apoiada no poste, onde a energia seria cortada. Os homens ficaram atônitos e um deles disse, por rádio: “Tem um vovô aqui na escada.” A luz não foi cortada.

Lançamento do livro ‘Pau de Arara: A Violência Militar no Brasil’, ao lado de Angela Mendes de Almeida, companheira de Eduardo Merlino, torturado e morto pela ditadura em 1971, e dos jornalistas Bernardo Kucinski (esq.) e Enio Squeff. Foto: Diana Freixo/Fundação Perseu Abramo, 24/04/ 2014.

Alípio foi um grande lutador pela verdade, memória e justiça pelos crimes cometidos pela ditadura militar. Escreveu livros, organizou debates, fez filmes, foi a escolas, participou de atos. E esteve ao lado de nós, a família de Luiz Eduardo Merlino, durante as ações que movemos contra Carlos Alberto Brilhante Ustra, seu assassino. Esteve nas audiências, nos atos, uma presença forte e solidária.

Em 2008, quando entramos com a primeira ação civil declaratória, que tinha a intenção de exigir que o Estado reconhecesse a responsabilidade de Ustra nas torturas e assassinatos de Merlino, no período em que as audiências aconteceram comecei a receber telefonemas ameaçadores. “Agitados os cachorros do doutor Adalberto”, disse uma voz masculina, logo depois que eu voltei de um passeio com meus cachorros. Doutor Adalberto era meu pai, já falecido àquela época, delegado de polícia que encontrou o corpo de Merlino no IML logo após seu assassinato. As ligações seguiram. “Seus terroristas”. Havia também chamadas insistentes de um número identificado, que não dizia nada quando eu atendia. Era uma noite de fechamento do Brasil de Fato, quando ligamos de volta para o número que me telefonava sem parar. Havia uma caixa postal e uma voz masculina dizia “xoxota estuprada”. Nesta noite, ao escrever o editorial, Alípio relatou as ameaças. E ao voltar para casa, fui ‘escoltada’ por Alípio e Danilo Cesar. Quando chegamos ao destino, Alípio desceu do carro e disse algo ao segurança do prédio. Eu jamais me esqueci ou me esquecerei desta noite.

Dias depois, quando houve a audiência no Tribunal de Justiça de São Paulo, além de ex-presos, amigos e jornalistas, também compareceu um conhecido policial civil que cometeu crimes no Dops durante a ditadura. Foi nos intimidar e falar para os jornalistas ali presentes que éramos terroristas. Alípio também estava ali, corajoso e solidário.

A solidariedade e amizade de Alípio seguiram. Ele esteve, esteve sempre, como definiu bem esses dias Delana Corazza. Esteve presente à cerimônia no Tuca, quando ganhei meu primeiro prêmio de jornalismo, em 2009. Esteve presente no aniversário de um ano da minha filha Catarina, a quem, num gesto tipicamente de Alípio, presenteou com uma edição de bolso do Manifesto Comunista e uma coroa de princesa e a quem chamava de “Pequena Imperatriz Proletária”.

Assim que Alípio foi internado, foi criada uma rede imensa de amor e solidariedade, composta por amigos e companheiros. Pessoas de inúmeras gerações e trajetórias juntaram-se num grupo de Whatsapp para torcer pela recuperação do nosso amigo. Amigos da prisão, da época da fundação do PT, do teatro, dos jornais que ele ajudou a fundar e de sua linda história, de arte e literatura. Gente de várias faixas etárias.

Foi nesse contexto que conheci o relato do ator Celso Frateschi, também ex-preso, que traduz a capacidade de Alípio de lutar pela vida, e de uma forma só sua, usando o humor: “[….] Estávamos com mais uns vinte companheiros jogados num cativeiro da OBAN que ficava num quartel perto do Ginásio do Ibirapuera. Alípio foi levado para uma cela contígua e barbaramente torturado durante muitas e muitas horas. Durante muito tempo fomos torturados por sua tortura. Na minha lembrança foi na madrugada que ele chegou carregado, sem nenhum movimento no corpo. Me revoltou a deformação de seu belo rosto, muito machucado, pois seus cabelos e seus bigodes foram arrancados com um alicate. O pau de arara tinha interrompido a circulação em seus membros e Alípio não conseguia se mexer. Estávamos todos assustados, revoltados e impotentes diante de tanta violência e requintes de crueldade. Lembro que meu irmão Paulo e eu com ajuda e ajudando os outros companheiros, conseguimos encostá-lo em uma das paredes da cela. Lentamente, ele mal conseguia esticar suas pernas, respirou fundo umas duas ou três vezes, abriu o seu largo sorriso e pronunciou com um desejo verdadeiro e um pouco de deboche: ‘Ah! Quem me dera arfar docemente nos braços argentinos de Angelita!’ Nunca soube de quem escrevera esses versos, pois para mim sempre foram do Alípio. Foi um aprendizado definitivo, além da racionalidade. Todos, apesar da situação, rimos muito, o moral se elevou e nos preparamos melhor para enfrentar o ‘inferno’.”

Após a luta armada contra a ditadura, quando integrou a organização Ala Vermelha, Alípio foi renovando permanentemente sua militância e luta. Foi um dos fundadores do PT, era parceiro e apoiador do MST, esteve com as Mães de Maio e Cordão da Mentira, sem nunca abandonar a “ponte para a utopia”. Em diversas entrevistas que deu sobre o que viveu na ditadura, citou os versos da música “Começaria tudo outra vez”, de Gonzaguinha: “Começaria tudo outra vez, se preciso fosse, meu amor. A chama em meu peito ainda queima, saiba, nada foi em vão”. Em um depoimento ao Instituto Vladimir Herzog, seguiu: “A gente só é capaz de fazer o que está colocado enquanto alternativa pela história. Errar, nós vamos sempre errar. Só não errará quem nada fizer, o que já é um erro de começo.”

Em 2008, quando foi organizado o primeiro ato no DOI-CODI, na rua Tutoia, desde a ditadura, Alípio disse uma frase que hoje Niko Kibaltchitch relembra: “O nosso projeto seria muito mesquinho se ele se reduzisse ao espaço de nosso tempo biológico individual. Nós temos um compromisso com os jovens, por isso eu estou aqui. Por isso continuarei em todas as manifestações. Há um compromisso de continuidade na construção de outro mundo. É óbvio que se nós da minha geração conseguirmos assistir isso, será fantástico. Mas se não conseguirmos e soubermos que estamos colocando novos alicerces para um mundo igualitário e livre, eu acho que teremos sido vitoriosos.”

Hoje, Alípio está morto e eu assisto chorando, em looping, a este trecho do filme “Nada Será Como Antes. Nada?”, de Renato Tapajós, em que ele fala sobre construir uma ponte para a utopia: ‘Nós queremos a Lua, algo que seja aparentemente impossível. E nós teremos a Lua.’”

Ouço Alípio e sinto uma combinação de dor, saudade, amor e revolta. Penso em algumas palavras de ordem dos movimentos de luta por memória como o “Ni Olvido, Ni Perdón”, “Sem justiça não haverá paz” e “Eu sou os que foram”, que não sei de quem é a autoria, mas que ouvi pela primeira vez no espetáculo “Morro como um país”, da então Kiwi Companhia de Teatro/COLETIVO COMUM.

Aprendi com Alípio e demais militantes e sobreviventes da ditadura que quando um companheiro morre, os que sobrevivem têm como tarefa continuar contando a história dos que morreram. Nós ainda não conseguimos fazer a ponte para a Lua. Também não conseguimos, apesar de muita luta, punir os torturadores da ditadura. E é um dos motivos pelos quais o Brasil elegeu um homem que louva a tortura, a ditadura, a morte, que representa a ditadura. E que hoje, por meio de um projeto genocida, nos mata, mata os nossos que lutaram contra a opressão da ditadura, mata Lays Machado, Colombo Vieira e Alípio Freire.

Se não tivesse morrido por conta do projeto genocida de Jair Bolsonaro, Alípio seguiria lutando, e é esse o compromisso que temos de assumir, como diz o final da música de Gonzaguinha, a mesma da qual Alípio citava o começo: “Ao som desse bolero, a vida, vamos nós. E não estamos sós, veja meu bem. A orquestra nos espera, por favor. Mais uma vez, recomeçar.”

Alípio Freire, presente, agora e sempre!


A jornalista Tatiana Merlino

A jornalista Tatiana Merlino trabalha principalmente na área de direitos humanos. Ela foi repórter e editora no jornal Brasil de Fato e na revista Caros Amigos e é fundadora da Agência Pública e da Ponte Jornalismo. Foi jornalista da Comissão Nacional da Verdade do Estado de São Paulo e organizou o Relatório Direitos Humanos no Brasil entre 2010 e 2012.

A imagem que abre nosso post é de Alípio Freire na exposição Insurreições – Expressões plásticas nos presídios políticos de São Paulo, organizada em 2013 pelo Memorial da Resistência, da qual foi curador.

Publicado em:memória

Você pode se interessar por: