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Limpeza étnica na Palestina

Bombardeio do prédio al-Jalaa em Gaza

Dada a nova e violenta ofensiva das forças militares de Israel na Palestina, reproduzimos uma esclarecedora entrevista do historiador judeu israelense Ilan Pappé, dada ao jornalista Silio Boccanera e divulgada no Brasil pelo jornal Gazeta de Cuiabá. Embora a entrevista tenha sido publicada em 12 de janeiro de 2009, a lógica da política israelense de promover a “limpeza étnica” na Palestina, denunciada por Pappé, preserva toda a sua atualidade.

Limpeza étnica na Palestina

O mais controvertido entre os chamados “historiadores revisionistas” de Israel é Ilan Pappé, judeu, filho de sobreviventes do holocausto nazista, cidadão israelense, ex-professor na Universidade de Haifa, atualmente professor na Universidade de Exeter, na Inglaterra.

Autor de vários livros sobre a história de Israel, Pappé incomoda há tempos o establishment israelense, mas sua obra mais recente provocou mais polêmica, a começar pelo título – A Limpeza Étnica da Palestina (Oneworld Publications) –, que reflete bem a tese que ele sustenta nas 300 páginas da edição britânica.

Com base em documentos e arquivos israelenses e britânicos (o Reino Unido cuidava da Palestina sob mandato da Liga das Nações, precursora da ONU), Pappé descreve uma política intencional dos líderes judeus de usar violência contra os árabes palestinos que viviam na área, num esforço de retirá-los das terras que seriam usadas para criar o Estado judeu. Conversamos com Ilan Pappé em Londres.

Carta da Europa – Este plano que o senhor denuncia, de expulsar os árabes habitantes da Palestina, já existia muito antes da criação do Estado judeu, em 1948?

Pappé – O conceito surgiu nos anos 1930, da cabeça de David Ben Gurion, que na época era líder da comunidade judaica e mais tarde seria o primeiro a se tornar líder de Israel. Mas a passagem da ideia para um plano estratégico só se deu após o fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). E o passo inicial foi um levantamento detalhado dos vilarejos árabes, com minúcias que incluíam até os tipos de árvores, sem esquecer de apontar os líderes locais. O objetivo era saber que tipo de resistência poderia emergir entre os árabes.

Carta da Europa – Mas quem mandava na Palestina não eram os árabes e sim os britânicos.

Pappé – Sim, mas os líderes judeus só resolveram atacar os britânicos depois da Segunda Guerra e da luta contra os nazistas. Quando os líderes judeus perceberam que Londres planejava manter controle sob uma Palestina onde judeus e árabes viveriam juntos, só então começaram a atacar os britânicos. Que então resolveram mesmo cair fora, entregando o problema da Palestina à ONU.

Carta da Europa – Os grupos judeus que atacam os britânicos na Palestina incluíam Haganah, Irgun and Stern, liderados por militantes como Menachem Begin, Yitzhak Shamir, futuros primeiros-ministros. Atacavam civis também?

Guindaste limpa escombros em Gaza
Guindaste limpa escombros em Gaza, depois do bombardeio das forças israelenses em 15 de maio de 2021. Foto de Musa Alzanoun (Pexels).

Pappé – Sim. Quando fizeram explodir, em 1946, o Hotel King David, que servia de sede da administração britânica, sabiam que havia civis lá dentro.

Carta da Europa – A ONU recebeu a batata quente dos britânicos e decidiu dividir a Palestina entre árabes e judeus. Por que os árabes não aceitaram o plano de partilha?

Pappé – Do ponto de vista dos árabes, os colonizadores judeus não eram diferentes dos franceses colonizadores da Argélia, por exemplo. Os judeus só compunham um terço da população da Palestina e a maioria tinha chegado lá dois ou três anos antes. Mas o plano da ONU lhes dava a metade da Palestina.

Carta da Europa – O plano de partilha da ONU foi aprovado em novembro de 1947 e o Estado de Israel só viria a ser criado em maio do ano seguinte. Seu livro alega que foi neste período que a liderança judaica acionou o plano de ataque aos árabes. Como?

Pappé – O Estado judeu que os líderes pretendiam ia além do traçado da ONU. Queriam toda a Palestina, menos a Cisjordânia, que tinham prometido ao Rei Abdula, da Jordânia. Só que havia um milhão de palestinos nessa área que precisavam ser expulsos. Mas os britânicos ainda estavam presentes, havia representantes da ONU, muitos jornalistas internacionais, os americanos acompanhavam com interesse. Por isso, os ataques aos árabes não se deram abertamente ou num dia específico. Começaram aos poucos, buscando confronto em alguns vilarejos, expulsando a população dali, depois em outro, até 10 de março de 1948. Foi quando os líderes perceberam que o mandato britânico ia acabar mesmo e os habitantes árabes da Palestina ainda não tinham sido expulsos. Começaram então os ataques sistemáticos.

Carta da Europa – Como o senhor sabe, a versão oficial de Israel, repetida nos livros escolares, é que os habitantes árabes decidiram fugir da Palestina por conta própria, incentivados pelos países árabes vizinhos, via transmissões de rádio. O senhor não aceita esta narrativa?

Pappé – Isso é uma fantasia completa e historiadores ou pesquisadores de hoje hesitariam em repetir a fábula. Não há provas dessas transmissões de rádio. E temos boa fonte para dizer isso, porque os britânicos gravavam e transcreviam todas as transmissões de radio na região. Estão todas num arquivo em Reading aqui perto de Londres. Não há exortações para uma fuga. Ao contrário, as mensagens dos árabes e dos líderes palestinos no exílio eram para que as pessoas ficassem. Ninguém foge voluntariamente; algo os força a isso, e esse algo foi o exército israelense que expulsou os árabes.

Morador observa danos de ataque israelense, em 19 de janeiro de 2009
Morador de Izbat Abed Rabo observa os danos na sua rua, em 19 de janeiro de 2009. Foto de Ayman Mohyeldin/Al Jazeera English, via Flickr.

Carta da Europa – Foi um êxodo difícil, não? 800 mil pessoas fugiram para se tornarem refugiadas nos países árabes vizinhos. Muita gente morreu.

Pappé – Nos vilarejos árabes, muita gente já estava conformada com a ideia de ser colonizada pelos judeus. Já tinham passado por isso com os otomanos e com os britânicos, agora achavam que seriam os judeus. Falo de camponeses, gente simples, na vizinhança de minha cidade, Haifa. Por isso, mal puderam acreditar quando o exército de Israel chegou e lhes deu uma hora para recolher o que pudessem e ir embora para sempre de vilarejos onde suas famílias viviam há séculos. E os soldados ainda atiravam por cima de suas cabeças para acelerar a fuga. Quem resistia era fuzilado. Mulheres foram violentadas. Para alguém como eu, que teve parentes mortos pelos nazistas, a ideia de que judeus pudessem fazer isso três anos depois do Holocausto ainda é difícil compreender.

Carta da Europa – Seu livro denuncia que os habitantes árabes da antiga Palestina foram perseguidos, mortos, alguns massacrados, por forças paramilitares formadas pelos judeus que iriam criar o Estado de Israel em 1948. Cerca de 800 mil palestinos foram expulsos e acabaram como refugiados nos países árabes vizinhos. Permanecem por lá há 60 anos e hoje, contando os descendentes, já chegam a 4 milhões. Muitos querem voltar ou, no mínimo, querem indenização. Vão conseguir?

Pappé – Não parece. Mas não acredito numa solução duradoura para o problema palestino-israelense enquanto esses refugiados não conquistarem seu direito, seja de retorno ou de indenização. Vivem em condições precárias até hoje, por causa do crime que foi cometido contra eles. A próxima geração de palestinos nos campos de refugiados vai continuar a exigir retorno ou indenização. E quando não conseguirem, eles vão partir para a vingança.

Carta da Europa – Seu livro diz que um dos principais responsáveis pelo que chama de “limpeza étnica” foi David Ben Gurion, um dos maiores heróis na criação de Israel, primeiro chefe de governo do novo Estado judeu, em 1948. O senhor o chama de “arquiteto da limpeza étnica”.

Pappé – É como o vejo. E também como vejo o movimento sionista como um todo. O movimento sionista foi bom para os judeus, salvou minha família do nazismo e, como Ben Gurion, conseguiu muita coisa para nós. Mas para os palestinos, o sionismo foi a pior coisa que podia ter ocorrido. E Ben Gurion, que criou Israel quase do nada, ao mesmo tempo planejou e executou o que só pode ser chamado de crime contra a humanidade.

Carta da Europa – Outro nome que seu livro apresenta sob uma luz não muito favorável é o de Ytzhak Rabin, que também viria a se tornar primeiro-ministro, assinaria um acordo de paz com o líder palestino Yasser Arafat e acabaria morto por um extremista judeu, em 1995. O que ele fez na época da criação de Israel?

Crianças ao lado de escola destruída em Gaza em 2012
Crianças caminham na rua, ao lado de prédios destruídos por bombardeios. Foto do diário fotográfico “Desde Palestina” (WikiMedia Commons).

Pappé – Rabin era, claro, bem mais jovem do que Ben Gurion. Foi responsável por uma parte particularmente horrorosa da limpeza étnica, que envolveu retirar à força os habitantes de dois vilarejos palestinos, Lydd e Ramla, cada um com cerca de 100 mil habitantes, no verão de 1948. Ele forçou os palestinos a caminharem até a Cisjordânia, a dezenas de quilômetros, sob o calor insuportável do verão na Palestina. Muita gente morreu de fome e sede, parte do crime contra a humanidade. E Rabin participou.

Carta da Europa – Passemos da década de 1940 para a de 1950. A limpeza étnica continuou?

Pappé – Continua até hoje, enquanto conversamos. Nos anos 1950, a limpeza étnica não estava completa. Tiveram de deixar no local uns 10% da população palestina – que é a base dos cidadãos árabe-israelenses de hoje. Isso já era demais para Ben Gurion e seus assessores imediatos, que queriam um Estado judeu quase limpo. Só que o resto do mundo estava mais sensível contra a ideia de expulsar pessoas e forçá-las a emigrar. Não houve um dia na história da Palestina pós-1948 em que a máquina de limpeza étnica tenha parado. Funciona o tempo todo.

Carta da Europa – A percepção de muita gente é de que, enquanto a violência ocorria, os palestinos aceitavam tudo quietinhos. Seu livro explica que um dos motivos para o comportamento palestino é que seus líderes tinham sido dizimados pelos britânicos durante a rebelião palestina de 1936. Na verdade, só nos anos 1960 viria a ressurgir uma militância palestina, desta vez através de movimentos como OLP, Fatah, e outros. O senhor vê paralelos entre essas organizações palestinas e os grupos armados judeus dos anos 1940, como Haganah, Irgun, Stern?

Pappé – Existem alguns paralelos nos métodos, na luta de guerrilha. É importante lembrar aos israelenses que eles também foram terroristas. Minha mensagem vai mais fundo: digo aos israelenses que são, infelizmente, mais parecidos com os brancos da África do Sul do que com um movimento de libertação do Terceiro Mundo.

Prédio residencial desabou depois de ser atingido por mísseis de Israel em 11 de maio de 2021. Reprodução Twitter MyPalestine0.

Carta da Europa – Imagino que suas posições, sua pesquisa histórica e seus livros não façam do senhor uma pessoa muito popular em Israel.

Pappé – De fato, não. Há períodos em que sou atacado seriamente na mídia e ameaçado. Israel não é um Estado opressivo contra cidadãos judeus, como eu.

Em outras palavras, nunca corri o perigo de me tornar um prisioneiro político, como ocorreria com um palestino que desse eco a minhas posições. Tem sido mais um caso de me silenciar, me boicotar, me tornar irrelevante. Houve muita ira e meu telefone recebeu muita ameaça de morte, mas do ponto de vista do regime nunca ligaram. Acho que ligam mais agora.

Carta da Europa – Por que agora?

Pappé – Algo está mudando em Israel. Os líderes sentem que o passado está voltando para atormentá-los e que o mundo ainda pode concluir que dá tempo de corrigir alguns erros. Acham que o tempo está do lado deles e talvez tenham razão, supondo que daqui a 20 ou 30 anos ninguém vai perguntar sobre a catástrofe que os palestinos sofreram.

Publicado em:Palestina

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