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A contradição imanente do capital

§ 1 – Minha comunicação é um dos resultados de minha pesquisa de mestrado concluída em 2010 na Unicamp, sob a orientação do Prof. Dr. Marcos L. Müller. Meu objetivo era analisar o conceito marxiano de Acumulação Originária. Faço essa consideração apenas para dizer que minha compreensão da concepção marxiana de contradição é limitada, pois não foi propriamente meu objeto de análise. Mas procurei incluir também nesta comunicação alguns resultados parciais de minha pesquisa de doutorado, que iniciei neste ano de 2010 e que objetiva de estudar, num primeiro momento, uma linha do pensamento alemão marxista das décadas de 1960-1970, conhecida como “neue Marx-Lektüre”.

§ 2 – O objetivo de minha comunicação é apenas esboçar uma explicação do significado da concepção marxiana de “contradição imanente (immanenter Widerspruch)” do capital, situando-a no contexto da apresentação (Darstellung) sistemática do capital. Apoio-me na interpretação de Andreas Arndt de que a concepção marxiana de contradição tem de ser validada por um “conceito de efetividade”, enquanto totalidade de um contexto historicamente determinado. Ou seja, para Arndt, a concepção marxiana de contradição está relacionada com a “teoria das crises” de Marx: “as crises do mercado mundial trazem à luz as contradições e oposições da produção burguesa”.1ARNDT, A. “Dialektik im Bruch mit der Spekulation”. In: ARNDT, A. Dialektik und Reflexion: zur Rekonstruktion des Vernunftbegriffs. Hamburg: Meiner, 1994. pp. 231-310. p. 301. Não é meu objetivo analisar a teoria marxiana das crises, mas apenas ressaltar a conexão entre a concepção de Marx de contradição imanente do capital e a sua apresentação crítica da totalidade sistemática das determinações do capital. Isso não significa, também, conceber a contradição como uma operação exclusivamente teórica. Pelo contrário, o objetivo específico desta comunicação é analisar a validade da tese de Arndt de que Marx concebe a contradição com uma “contradição real” (realer Widerspruch), no sentido de uma “(…) contradição que se realiza, que se processa, cujos extremos se renovam um ao outro nesse movimento sempre renovado como opostos autonomizados”.2ELBE, I. “Eigentümliche Logik eines eigentümlichen Gegenstands”. In: ELBE, I. Marx im Westen: die neue Marx-Lektüre in der Bundesrepublik seit 1965. Berlim: Akademie Verlag, 2008. pp. 138-169. p. 139. Essa relação recíproca dos opostos autonomizados forma, na perspectiva de Marx, uma “condição de existência da contradição” e não uma “identidade essencial”.

§ 3 – Meu material de análise é aqui apenas um trecho do capítulo 13 d’O Capital – “Maquinaria e grande indústria”, mais especificamente, o item 3 – “Efeitos imediatos da produção mecanizada sobre o trabalhador”. Para auxiliar a explicação, recorrerei com mais frequência a alguns trechos dos Grundrisse (1857-1859), especialmente àquele em que Marx trata do trabalho “negativamente apreendido” e “positivamente apreendido”, pois lá me parece que há considerações importantes para definir capital e trabalho como extremos do processo de produção capitalista.

§ 4 – Após essas considerações, cito então o longo trecho d’O capital que pretendo analisar aqui:

“A mais-valia surge apenas da parte variável do capital e vimos que a massa de mais-valia é determinada por dois fatores, a taxa de mais-valia e o número de trabalhadores simultaneamente ocupados. Dada a duração da jornada de trabalho, a taxa de mais-valia é determinada pela proporção em que a jornada de trabalho se divide em trabalho necessário e mais-trabalho. O número de trabalhadores simultaneamente ocupados depende, por sua vez, da proporção entre a parte variável e constante do capital. Agora, é claro que a produção mecanizada, como quer que expanda, mediante o aumento da força produtiva do trabalho, o mais-trabalho à custa do trabalho necessário, só alcança esse resultado ao diminuir o número de trabalhadores ocupados por dado capital. Ela transforma uma parte do capital, que antes era variável, isto é, que se convertia em força de trabalho viva, em maquinaria, portanto, em capital constante, que não produz mais-valia. É impossível, por exemplo, espremer tanta mais-valia de dois trabalhadores quanto de 24. Se cada um dos 24 trabalhadores fornecer de cada 12 horas apenas uma hora de mais-trabalho, juntos eles fornecem 24 horas de mais-trabalho, enquanto o trabalho total de dois trabalhadores só comporta 24 horas. Portanto, na aplicação (Anwendung) da maquinaria à produção de mais-valia repousa uma contradição imanente (immanenter Widerspruch), pois que, dos dois fatores da mais-valia fornecida por um capital de grandeza dada, um dos fatores, a taxa de mais-valia, só é aumentada porque ela diminui o outro fator, o número de trabalhadores. Essa contradição imanente se evidencia (hervortritt) assim que, com a generalização (Verallgemeinerung) da maquinaria em um ramo da indústria, o valor da mercadoria produzida mecanicamente se torna o valor social que regula o valor de todas as mercadorias da mesma espécie, e é essa contradição que, por sua vez, impulsiona o capital, sem que ele seja consciente disso, ao prolongamento mais violento (gewaltsamsten) da jornada de trabalho, para compensar a redução do número relativo de trabalhadores explorados por meio do aumento do mais-trabalho não só relativo, mas também absoluto.”3MARX, K. “Maschinerie und große Industrie”. In: MARX, K. Das Kapital. Kritik der politischen Ökonomie. Erster Band. Buch I: Der Produktionsprozess des Kapitals. 38. ed. Berlim: Dietz, 2007. cap. 13, pp. 391-530. pp. 429-30. Tradução de Regis Barbosa e Flávio R. Kothe. “Maquinaria e Grande Indústria”. In: MARX, K. O Capital: Crítica da Economia Política. Volume I. Livro Primeiro: O Processo de Produção do Capital. Tomo 2. 3. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983. (Os Economistas). pp. 5-100. p. 29. Tradução modificada. Grifo meu.

§ 5 – A expansão da produção mecanizada, mediante o aumento da força produtiva do trabalho, substitui a ocupação de trabalhadores por máquinas, e, com isso, aumenta a taxa de mais-valia, reduzindo o trabalho necessário. Uma parte relativamente maior do capital total que antes se convertia em capital variável, ou seja, em força de trabalho, que produz mais-valia, converte-se em capital constante, em máquinas, que não produzem mais-valia. A aplicação da maquinaria à produção aumenta a massa de mais-valia ao aumentar a taxa de mais-valia, mas diminui relativamente o número de trabalhadores ocupados por um dado capital. Com isso, ela diminui a base do capital para a criação de mais-valia, e, desse modo, evidencia a sua contradição imanente.

§ 6 – No contexto geral da apresentação do capital, a contradição imanente do capital, evidenciada com a aplicação da maquinaria, se apresenta quando o capital assimila a sua pressuposição histórica. Em primeiro lugar, o capital ordena o trabalho em condições que ele encontra historicamente. A divisão da jornada de trabalho em trabalho necessário e mais-trabalho era a base do sistema capitalista. Sobre a base do modo de trabalho aí-presente, correspondente a um dado desenvolvimento das forças produtivas, a mais-valia só podia ser produzida através do prolongamento da jornada de trabalho. A mais-valia absoluta e a divisão da jornada de trabalho formam o ponto de partida para que o capital revolucione as condições técnicas e sociais do processo de trabalho, ou seja, para que ele se apodere diretamente do processo de trabalho, para que surja a mais-valia relativa e o modo de produção especificamente capitalista, no qual a forma social do trabalho se apresenta como forma de desenvolvimento do capital.

§ 7 – A aplicação da maquinaria a produção desenvolve a “oposição completa” da “figura autonomizada e alienada que o modo de produção capitalista dá em geral às condições de trabalho e ao produto do trabalho frente ao trabalhador”.4MARX, K. Das Kapital, op. cit., p. 455; trad. cit., p. 47. O trabalhador é subsumido às “condições coisificadas de trabalho” que lhe aparecem como “dadas”, “independentes dele”, como “figuras do capital”.5MARX, K. Sechstes Kapitel. Resultate des unmittelbaren Produktionsprozesses. Karl Marx Friedrich Engels Gesamtausgabe (MEGA). Zweite Abteilung, Band 4. Berlim: Dietz, 1988. pp. 24-135. pp. 120-1. Tradução de Joaquim José de Faria e Maria Clara de Faria. Capítulo VI Inédito de O Capital: Resultados do Processo de Produção Imediata. São Paulo: Editora Moraes, 1985. p. 126. Por isso, Marx diz também que a maquinaria é o “soberano efetivo do trabalho vivo” e o meio de produção que é “capital em si e por si”.6Ibidem, pp. 58 e 60; trad. cit., pp. 47-8 e 50.

§ 8 – Com essa contextualização, podemos então passar ao texto dos Grundrisse. Para Marx, esse é o grau específico do desenvolvimento da força produtiva industrial que torna inteligível a “relação econômica” entre o capitalista e o trabalhador, e verdadeira as categorias que eles portam: capital e trabalho:

“Essa relação econômica – o caráter que o capitalista e o trabalhador portam como os extremos de um processo de produção – é desenvolvida mais pura e adequadamente quanto mais o trabalho perde o seu caráter artístico; sua habilidade específica torna-se algo mais abstrato, indiferente, e cada vez mais uma atividade puramente abstrata, puramente mecânica, (…) atividade indiferente diante de sua forma específica. Aqui, pois, se mostra novamente como a determinidade específica da relação de produção, a categoria – capital e trabalho – só vem-a-ser verdadeira com o desenvolvimento de um modo de produção material específico e um nível específico do desenvolvimento da força produtiva industrial.”7MARX, K. Grundrisse der Kritik der Politischen Ökonomie. 2. ed. Berlim: Dietz, 1974. pp. 204-5.

§ 9 – Capital e trabalho formam extremos do processo de produção capitalista. Segundo Arndt, a relação essencialmente separada entre os opostos aproxima a concepção marxiana de contradição da contradição do finito na Lógica hegeliana. Diz ele sobre a circulação simples: “As fases reciprocamente opostas e ao mesmo tempo co-pertencentes não estão em uma essência idêntica, mas sim elas são tanto essencialmente opostas como formam uma unidade. A exterioridade da relação com o outro, que aqui é conservada, coloca a formulação de Marx próxima do que Hegel chamava de contradição do finito.”8ARNDT, A. Dialektik und Reflexion, op. cit., pp. 301-2.

§ 10 – A “relação econômica” entre capital e trabalho é um desenvolvimento das oposições e contradições do processo de troca. Razão pela qual não me parece que, para Marx, a contradição é apenas “essencial”, no sentido de que ela não se apresentaria na circulação simples de mercadorias – a aparência da sociedade civil burguesa. A contradição já se apresenta no processo de troca de mercadorias. Nas palavras de Marx, esse apresenta tanto um “círculo vicioso de problemas” como também um “conjunto de exigências contraditórias”, sendo o próprio processo de troca “tanto o desdobramento como a solução dessas contradições”.9MARX, K. Zur Kritik der Politischen Ökonomie. Karl Marx Friedrich Engels Gesamtausgabe (MEGA). Zweite Abteilung, Band 2. Berlim: Dietz, 1980. pp. 95-245. p. 122. Tradução de Edgard Malagodi. Para a Crítica da Economia Política. In: Karl Marx. São Paulo: Nova Cultural, 1999. pp. 22-186. (Os Pensadores). p. 71. A relação de troca é contraditória porque a mercadoria é unidade imediata de valor-de-uso e valor, mas a mercadoria só se confirma como mercadoria no processo de troca, e, dentro desse, cada uma de suas determinações opostas se apresenta em um ser-aí imediato: a mercadoria se apresenta como a materialização do valor-de-uso, e, o dinheiro, como a materialização do valor. No caso da troca entre capital e força de trabalho, Marx escreve: “A pressuposição elementar da sociedade civil burguesa é que o trabalho produz imediatamente o valor-de-troca, portanto, dinheiro, e que, em seguida, o mesmo dinheiro compra o trabalho, por isso o trabalhador só é trabalhador na medida em que ele mesmo aliena a sua atividade na troca. Portanto, trabalho assalariado, de um lado, e capital, do outro, são outras formas de desenvolvimento do valor-de-troca e do dinheiro como sua encarnação.”10Idem. Grundrisse, op. cit., p. 137.

§ 11 – Faço todo esse contorno para ressaltar que, nessa relação econômica entre os dois extremos do processo de produção, o trabalho se apresenta como o valor-de-uso, e, o capital, como o valor-de-troca: “Pode parecer esquisito que, na relação do trabalho e do capital, o trabalhador compra o valor-de-troca, e, o capitalista, o valor-de-uso, (…) o trabalho se defronta com o capital não como um valor-de-uso, mas sim, como pura e simplesmente valor-de-uso, mas o capitalista deve obter riqueza, e o trabalhador, apenas um valor-de-uso que se extingue no consumo.”11Ibidem, p. 202.

§ 12 – Vejamos então como Marx define a relação de oposição e co-pertencimento entre esses dois extremos.

“O trabalho, ‘posto como não capital’, é definido como, por um lado, trabalho ‘negativamente apreendido‘, isto é, ‘trabalho separado de todo instrumento de trabalho e de todo trabalho objetivado, de toda a sua subjetividade’. É o trabalho considerado como ‘pobreza absoluta’, mas aqui ‘pobreza’ não significa falta, mas sim ‘completa exclusão da riqueza’, por isso é ‘pura existência subjetiva’ como ‘completa desnudação’, ou ‘puro valor-de-uso objetivo’, cuja ‘objetividade’ coincide com a ‘imediata corporeidade’; por outro lado, o trabalho é ‘positivamente apreendido’, ou a ‘negatividade que se relaciona consigo’, isto é, o trabalho, por esse lado, é considerado não como objeto ou valor, mas sim como ‘atividade’, como a ‘fonte viva do valor’, como ‘possibilidade universal da riqueza‘ que existe frente ao capital ‘como sujeito e atividade’.”12Ibidem, p. 203.

§ 13 – Esses dois lados da posição do trabalho condicionam-se mutuamente, pois, negativamente apreendido, o trabalho é a completa exclusão da riqueza objetiva, e, positivamente apreendido, ele é “trabalho inobjetivo”, ou seja, é considerado apenas como “sujeito e atividade”. Assim, cada um dos lados é em si contraditório, pois cada um só pode ser na medida em que o outro também é, mas os dois lados se condicionam mutuamente e formam a “essência” do trabalho burguês, que é definido como “não-capital”, portanto, pressupõe o capital como seu ser-aí oposto. Daí porque os dois lados da essência do trabalho formam apenas uma totalidade “em si”, que se defronta “subjetivamente” com o capital em uma relação separada, isto é, o trabalho não inclui o seu oposto dentro de si mesmo para formar uma totalidade por si, pois, para o trabalhador, o seu trabalho só lhe interessa enquanto é valor-de-uso do capital. Portanto, o trabalho não forma uma totalidade completamente autônoma.13Cf. Ibidem, pp. 203-4.

§ 14 – Do outro lado da relação de produção, o capital, “posto como dinheiro”, que se defronta com o valor-de-uso, “não é este ou aquele trabalho, mas sim pura e simplesmente trabalho, trabalho abstrato; absolutamente indiferente diante da sua determinidade específica, mas capaz de ser cada uma das determinidades”.14Ibidem, p. 204. O trabalho é a sua “substância específica”, mas o capital enquanto tal é “indiferente diante de cada especificidade de sua substância e é tanto a totalidade dela mesma como a abstração de todas as suas especificidades”.15Ibidem, p. 204. Desse modo, o capital também não forma uma totalidade por si completamente autônoma, pois, se, por um lado, ele é “indiferente diante de cada especificidade de sua substância”, por outro lado, a “substância específica, na qual consiste um determinado capital, tem de corresponder ao trabalho como especificidade”.16Ibidem, p. 204.

§ 15 – Portanto, de um lado, o trabalho é pressuposto pelo capital como seu “ser-aí oposto”; de outro lado, o trabalho pressupõe também o capital:

“O dinheiro não pode tornar-se capital sem se trocar com a capacidade de trabalho enquanto mercadoria vendida pelo próprio trabalhador. Do outro lado, o trabalho só pode aparecer como trabalho assalariado, quando as suas próprias condições objetivas de trabalho se defrontam com ele como poder independente (…).”17Idem. Sechstes Kapitel, op. cit., pp. 79-80; trad. cit., pp. 72-3.

§ 16 – Cada um dos extremos pressupõe o outro, nenhum é totalmente autônomo e cada um é em si o que constitui o outro: o trabalho se defronta com o capital como o valor-de-uso que compra o valor-de-troca para obter um valor-de-uso que se extingue no consumo; o capital se defronta com o trabalho como dinheiro, como o valor-de-troca, que deve obter o valor-de-uso para se valorizar, e, assim, ser valor que se valoriza. O capital é contraditório nessa sua determinação autônoma: ele inclui o trabalho como sua “substância específica”, mas o exclui como “possibilidade universal da riqueza” “que se afirma na ação (Aktion) enquanto tal”. É essa contradição que se evidencia com a aplicação da maquinaria à produção de mais-valia, “pois que, dos dois fatores da mais-valia fornecida por um capital de grandeza dada, um dos fatores, a taxa de mais-valia, só é aumentada porque ela diminui o outro fator, o número de trabalhadores”.18Idem. Das Kapital, op. cit., p. 429; trad. cit., p. 29. “Em outras palavras, ao mesmo tempo em que tem de incluir em si a força de trabalho como seu momento variável, para se valorizar e se definir enquanto capital, ele também tem de excluí-la enquanto possível totalidade, pois se esta o fosse, deixaria de produzir para ele e, com isso, ele deixaria de ser capital. Este impulso de exclusão determina a tendência do trabalho morto negar o vivo, manifesta na tendência ao aumento da composição orgânica do capital. A exclusão do seu oposto, no entanto, significa eliminar a ‘fonte viva do valor’ de que vive o próprio capital, definido como valor que se valoriza. Se deixar de se valorizar, ele deixa de existir enquanto capital. Excluir seu oposto implica, então, excluir-se de si mesmo, negar a si próprio, contradizer-se.” GRESPAN, J. L. A dialética do avesso. Revista Crítica Marxista, nº 14, pp. 21-44, 2002. Acesso em 28 de setembro de 2009. pp. 36-7. Para Grespan, a concepção marxiana de contradição corresponderia ao que Hegel chamou em sua Lógica de “contradição em si”: “Na medida em que tal contradição se estabelece apenas pelo ângulo do capital, porém, ela corresponde à primeira figura da lógica hegeliana, ou seja, à ‘contradição em si’ – oposição contraditória. Pois só o capital compõe uma totalidade com seu outro, incluindo-o a si e simultaneamente excluindo-o de si.” Ibidem, p. 37.

§ 17 – Diferentemente da formulação hegeliana, portanto, aqui a contradição não se dissolve no fundamento, que é, por sua vez, a posição da autonomia completa dos opostos que se contradizem. Para Marx, a contradição se realiza: “essa realização é ao mesmo tempo a sua ‘resolução’ (…)”. Isto é: a contradição, para Marx, é contradição “real” como contradição que se realiza, que se processa (…)”.19ARNDT, A. Dialektik und Reflexion, op. cit., p. 304. Nas palavras de Marx: “O próprio capital é ele mesmo a contradição processual, que estorva o tempo de trabalho a se reduzir a um mínimo, enquanto, do outro lado, põe o tempo de trabalho como a única medida e fonte da riqueza.”20MARX, K. Grundrisse, op. cit., p. 593.

§ 18 – Esta análise da concepção marxiana de contradição poderia me levar a uma consideração do conceito marxiano de crise e de suas modalidades, como aponta Arndt21ARNDT, A. Dialektik und Reflexion, op. cit., p. 304. e como analisou J. Grespan.22GRESPAN, J. L. S. O negativo do Capital: O Conceito de Crise na Crítica de Marx à Economia Política. São Paulo: Hucitec: FAPESP, 1999. A crise aparece como uma eclosão das contradições do capital e a negação de sua autonomia. No entanto, gostaria de terminar esta apresentação retomando o modo como se move a contradição imanente à aplicação da maquinaria:

“(…) é essa contradição que, por sua vez, impulsiona o capital, sem que ele seja consciente disso, ao prolongamento mais violento (gewaltsamsten) da jornada de trabalho, para compensar a redução do número relativo de trabalhadores explorados por meio do aumento do mais-trabalho não só relativo, mas também absoluto.”23MARX, K. Das Kapital, op. cit., p. 430; trad. cit., p. 29.

Para Marx, a aplicação capitalista da maquinaria cria, por um lado, “novos e poderosos motivos para o prolongamento desmedido da jornada de trabalho”, e, por outro lado, produz, “em parte através do alistamento ao capital de camadas da classe trabalhadora antes inacessíveis, em parte através da liberação dos trabalhadores deslocados pela maquinaria, uma população trabalhadora supérflua, que tem de aceitar a lei ditada pelo capital”.24Ibidem, p. 430; trad. cit., p. 30.

§ 19 – Aqui me parece ser possível apontar para uma atualidade da consideração de Marx sobre a evidenciação da contradição imanente do capital com a generalização da produção mecanizada. Para Marx, a realização da contradição é ao mesmo tempo a sua resolução. A aplicação da maquinaria à produção de mais-valia evidencia a contradição imanente do capital, pois ela transforma parte do capital variável, que produz mais-valia, em capital constante, que não produz mais-valia, mas, ao mesmo tempo, ela cria “novos e poderosos motivos para o prolongamento desmedido da jornada de trabalho”, e “uma população trabalhadora supérflua, que tem de aceitar a lei ditada pelo capital”. Minha hipótese é que esta apresentação dialética se legitima contemporaneamente quando apontamos para as condições de valorização do capital, conforme diagnosticam alguns economistas contemporâneos. No contexto histórico de um espaço livre de restrições para as operações do capital sob dominância financeira, a industrialização dos assim chamados “países em desenvolvimento” criou, pela primeira vez, um exercito industrial de reserva “realmente mundial”:

“Esse espaço aberto, não homogêneo mas com uma redução drástica de todos os obstáculos à mobilização do capital, essa possibilidade para o capital de organizar em escala universal o ciclo de valorização, está acompanhado de uma situação que permite pôr em competição entre si os trabalhadores de todos os países. Quer dizer, sustenta-se no fato de o exército industrial de reserva ser realmente mundial e de ser o capital como um todo que rege os fluxos de integração ou de repulsão, nas formas estudadas por Marx. (…) agora, a competição entre os capitais vai muito além das relações entre os capitais das partes mais antigas e mais desenvolvidas do sistema mundial, com os setores menos desenvolvidos do ponto de vista capitalista. (…) Durante os últimos 15 anos, e em particular durante a última etapa, desenvolveram-se, em determinados pontos do sistema, grupos industriais capazes de se integrar como sócios de pleno direito nos oligopólios mundiais.”25O capitalismo tentou romper seus limites históricos e criou um novo 1929, ou pior, de François Chesnais. Carta Maior, 9 de outubro de 2008. Acesso em 12 de outubro de 2008.

§ 20 – Evidentemente, aponto apenas para uma hipótese de leitura, que precisaria ser melhor contextualizada historicamente. Ela apontaria apenas uma legitimação contemporânea de uma apresentação dialética do capital e de sua contradição processual. Mas uma leitura da concepção marxiana de contradição imanente do capital, a partir do estado atual do desenvolvimento tecnológico aplicado à produção de mais-valia, nos permitiria apenas apontar para a “base miserável” do modo de produção capitalista a partir da apreensão conceitual da finitude do sistema. Ela não nos permitiria prognosticar uma lógica da decadência, como se o resultado da dialética marxiana fosse apenas negativo, e ela não nos permitiria também conceituar uma imaginária sociedade livre da relação de valor capitalista, como se o seu resultado fosse apenas positivo. A apresentação dialética deve conhecer os seus limites. Se o seu resultado aponta para a superação das contradições do capital, tal resultado pode ser, por nós, apenas esperado, mas não conceituado.



NOTAS

[1] ARNDT, A. “Dialektik im Bruch mit der Spekulation”. In: ARNDT, A. Dialektik und Reflexion: zur Rekonstruktion des Vernunftbegriffs. Hamburg: Meiner, 1994. pp. 231-310. p. 301.

[2] ELBE, I. “Eigentümliche Logik eines eigentümlichen Gegenstands”. In: ELBE, I. Marx im Westen: die neue Marx-Lektüre in der Bundesrepublik seit 1965. Berlim: Akademie Verlag, 2008. pp. 138-169. p. 139.

[3] MARX, K. “Maschinerie und große Industrie”. In: MARX, K. Das Kapital. Kritik der politischen Ökonomie. Erster Band. Buch I: Der Produktionsprozess des Kapitals. 38. ed. Berlim: Dietz, 2007. cap. 13, pp. 391-530. pp. 429-30. Tradução de Regis Barbosa e Flávio R. Kothe. “Maquinaria e Grande Indústria”. In: MARX, K. O Capital: Crítica da Economia Política. Volume I. Livro Primeiro: O Processo de Produção do Capital. Tomo 2. 3. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983. (Os Economistas). pp. 5-100. p. 29. Tradução modificada. Grifo meu.

[4] MARX, K. Das Kapital, op. cit., p. 455; trad. cit., p. 47.

[5] MARX, K. Sechstes Kapitel. Resultate des unmittelbaren Produktionsprozesses. Karl Marx Friedrich Engels Gesamtausgabe (MEGA). Zweite Abteilung, Band 4. Berlim: Dietz, 1988. pp. 24-135. pp. 120-1. Tradução de Joaquim José de Faria e Maria Clara de Faria. Capítulo VI Inédito de O Capital: Resultados do Processo de Produção Imediata. São Paulo: Editora Moraes, 1985. p. 126.

[6] Ibidem, pp. 58 e 60; trad. cit., pp. 47-8 e 50.

[7] MARX, K. Grundrisse der Kritik der Politischen Ökonomie. 2. ed. Berlim: Dietz, 1974. pp. 204-5.

[8] ARNDT, A. Dialektik und Reflexion, op. cit., pp. 301-2.

[9] MARX, K. Zur Kritik der Politischen Ökonomie. Karl Marx Friedrich Engels Gesamtausgabe (MEGA). Zweite Abteilung, Band 2. Berlim: Dietz, 1980. pp. 95-245. p. 122. Tradução de Edgard Malagodi. Para a Crítica da Economia Política. In: Karl Marx. São Paulo: Nova Cultural, 1999. pp. 22-186. (Os Pensadores). p. 71.

[10] Idem. Grundrisse, op. cit., p. 137.

[11] Ibidem, p. 202.

[12] Ibidem, p. 203.

[13] Cf. Ibidem, pp. 203-4.

[14] Ibidem, p. 204.

[15] Ibidem, p. 204.

[16] Ibidem, p. 204.

[17] Idem. Sechstes Kapitel, op. cit., pp. 79-80; trad. cit., pp. 72-3.

[18] Idem. Das Kapital, op. cit., p. 429; trad. cit., p. 29. “Em outras palavras, ao mesmo tempo em que tem de incluir em si a força de trabalho como seu momento variável, para se valorizar e se definir enquanto capital, ele também tem de excluí-la enquanto possível totalidade, pois se esta o fosse, deixaria de produzir para ele e, com isso, ele deixaria de ser capital. Este impulso de exclusão determina a tendência do trabalho morto negar o vivo, manifesta na tendência ao aumento da composição orgânica do capital. A exclusão do seu oposto, no entanto, significa eliminar a ‘fonte viva do valor’ de que vive o próprio capital, definido como valor que se valoriza. Se deixar de se valorizar, ele deixa de existir enquanto capital. Excluir seu oposto implica, então, excluir-se de si mesmo, negar a si próprio, contradizer-se.” GRESPAN, J. L. A dialética do avesso. Revista Crítica Marxista, nº 14, pp. 21-44, 2002. Acesso em 28 de setembro de 2009. pp. 36-7. Para Grespan, a concepção marxiana de contradição corresponderia ao que Hegel chamou em sua Lógica de “contradição em si”: “Na medida em que tal contradição se estabelece apenas pelo ângulo do capital, porém, ela corresponde à primeira figura da lógica hegeliana, ou seja, à ‘contradição em si’ – oposição contraditória. Pois só o capital compõe uma totalidade com seu outro, incluindo-o a si e simultaneamente excluindo-o de si.” Ibidem, p. 37.

[19] ARNDT, A. Dialektik und Reflexion, op. cit., p. 304.

[20] MARX, K. Grundrisse, op. cit., p. 593.

[21] ARNDT, A. Dialektik und Reflexion, op. cit., p. 304.

[22] GRESPAN, J. L. S. O negativo do Capital: O Conceito de Crise na Crítica de Marx à Economia Política. São Paulo: Hucitec: FAPESP, 1999.

[23] MARX, K. Das Kapital, op. cit., p. 430; trad. cit., p. 29.

[24] Ibidem, p. 430; trad. cit., p. 30.

[25] CHESNAIS, F. O capitalismo tentou romper seus limites históricos e criou um novo 1929, ou pior. Carta Maior, 9 de outubro de 2008. Acesso em 12 de outubro de 2008.

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