Caio de Andrea*
Começo este texto com meu testemunho e sobretudo minha alegria. O Movimento Passe Livre (o MPL) inaugura um novo modo de ação política popular que não tarda a demonstrar seus resultados. Qualquer um que tenha se proposto às passeatas pelas ruas de nossa cidade sabe do que se trata, pois experimenta: já há vitória para comemorar quando um brado (tal como este, ecoando uma torcida que já não é por time de futebol: “Ôôôô / O povo acordou / O povo acordou / O povo acordôôôÔ”) é entoado a plenos pulmões por 5 mil pessoas e, depois de muita cacetada da polícia, por umas 7 mil pessoas, e depois de muito mais cacetada ainda, por umas 10 mil pessoas, e hoje, ápice total da brutalidade generalizada, por umas 15 mil pessoas…
As cacetadas, as prisões (e quão ridiculamente desnecessárias, violentas e arbitrárias – que o digam os jornalistas baleados, espancados e presos em pleno serviço!), todo o medo que se procurou incutir nas mentes e nos corações por todos os meios de comunicação, bem, nada disso foi suficiente para deter uma torrente de participação popular que só fez crescer, como se a cada cacetada a solidariedade e sobretudo a indignação aumentassem, tal como de fato aumentaram. Sim, o povo acordou – e não, não tem medo de porrada.
Há lições aqui. Lições para aqueles que almejam crescer em suas iniciativas políticas. Iniciar algo novo não é fácil. E talvez a principal lição do MPL seja esta: sua iniciativa talvez consista numa recusa, numa descentralização, no abandono da sanha, do vício do controle (vanguardista?) sobre todas as ações de todos os participantes reunidos, na oposição ao desejo de garantir – suprimindo qualquer liberdade expressiva “fora do padrão desejado” – um corpo homogêneo, uniforme, todos iguais (algo que lembra um pouco certas iniciativas fascistas, por sinal).
Há riscos nesse abandono do control freak, claro que há. Mas são riscos sociais, não devem nunca ser atribuídos ao MPL, tal como tem sido feito a torto e à direita. São riscos que nos cabem enquanto sociedade – uma sociedade que se caracteriza, sobretudo, por ser ela mesma uma sociedade de risco. Na verdade riscos – são tantos e tão variados, em quantidade e intensidade, que tratar seriamente de cada um deles é uma obrigação que deveria tomar cada um de nós cotidianamente.
O MPL não pode ser responsabilizado por nada que não seja a reivindicação pacífica de um direito universal – que não se traduz, jamais, numa revogação do mais recente aumento de preço da tarifa, afinal, o próprio MPL já dizia que “um direito não se reduz, amplia-se”, e também acusava “R$ 3,00 é roubo!” – e, antes disso, outras tarifas já eram roubo, a antes destas, outras ainda, roubo também, anteriores, seguindo assim numa redução que nunca encontraria fim, ou melhor, que só encontraria fim quando deixasse de ser uma questão de preço de mercadoria para se converter numa de direito, na passagem do reino das quantidades para o das qualidades, ao propor uma nova articulação das duas dimensões. A reivindicação de revogação do aumento mais recente de tarifa é muito simplesmente um gesto simbólico, uma sinalização de que as coisas podem ser pensadas e planejadas com mais calma, rigor e sobretudo com justiça social.
Talvez as coisas possam ser ditas da seguinte maneira:
Um direito deve ter lugar.
É preciso preparar a sociedade para o reconhecimento desse direito.
O que vem ocorrendo nas últimas semanas é, portanto, uma necessária demonstração de força popular democrática, reivindicativa, que participa ativamente, conforme as restrições e possibilidades estreitas de um modelo representativo de democracia, no governo da cidade. O campo de experiência que se abre com a novidade da recusa do MPL projeta um horizonte de expectativa animador. Devemos vivenciar com alegria e sem temor essa novidade.
Viva o MPL.
* Este artigo também foi publicado no sítio Passa Palavra.
ainda vivos !