Danilo Nakamura*
Nos dias de hoje dizer que o intelectual vive numa torre de marfim soa como uma espécie de preconceito ultrapassado. Como bem lembrou Roberto Schwarz nos anos 1990: “Nunca fomos tão engajados.” Tão empenhados na administração pública, num partido, num departamento da universidade, numa firma de pesquisa, num sindicato, numa associação de profissionais liberais, no ensino secundário, numa ONG, num setor de relações públicas, numa redação de jornal, etc.
Também é preciso dizer que hoje a procura tácita dos intelectuais por seus supostos interlocutores está completamente modificada – se tivermos como paradigma os séculos XVIII, XIX e início do XX – com a integração cultural e política daqueles que um dia podiam ser chamados de excluídos.
E assim sendo, como pensar o engajamento intelectual nos dias de hoje em que o modo de vida capitalista se torna cada vez mais insuportável e, ao mesmo tempo, cada vez mais inquestionável (pensar um novo modo de vida hoje soa tão ridículo como os sonhos do personagem dostoiévskiano)? Voltando com a ideia do pensador isolado em sua torre de marfim? Sendo responsável dentro de uma instituição e fazendo realpolitik? Ou então, bancando certo radicalismo sem a contrapartida de uma sociedade em movimento, ou seja, fazendo lobby de si mesmo?
Sem querer e, na verdade, sem ter a capacidade de responder a tais provocações, o que se segue é apenas uma tentativa, um esboço de ensaio que procura apresentar os dilemas da experiência intelectual. E, nesse sentido, repensar as experiências de Georg Lukács, Walter Benjamin e Theodor Adorno parece ser um ótimo exercício de reflexão para começarmos a compreender o lugar atual do intelectual engajado. Nosso caminho, ao contrário do pensamento mainstream, será o de reivindicar esses autores como nossos contemporâneos.
Nossos contemporâneos
“Os filósofos limitaram-se até agora a interpretar o mundo de diferentes maneiras. O que importa é transformá-lo”.
Karl Marx, 1845
“A filosofia, que um dia pareceu ultrapassada, mantém-se viva porque se perdeu o instante de sua realização”.
Theodor Adorno, 1966
Lá onde identificamos certa leitura ou explicação histórico-filosófica (ou método de exposição) de uma constelação histórica social, também encontramos a figura do intelectual engajado que se esforça na tentativa de criticar ou justificar os antagonismos de uma dada sociedade.
Na sua versão crítica: engajamento contra as injustiças do Antigo Regime, contra a situação social de exclusão do nascente proletariado. Ou ainda, engajamento ao antifascismo europeu, ao ascenso operário do pós-guerra, à luta por direitos vitais negados para grande parcela da população marginalizada na sociedade capitalista.
Esgotadas ou bloqueadas as “ilusões” de determinada explicação, tal explicação cai em desuso. “Esquematizando ao extremo: um gênero não cai em desuso sem que entre em declínio a constelação histórico-social que lhe serve de pressuposto e atmosfera. Ora, na sua versão contemporânea (cuja temática não nos cabe aqui repertoriar), a crítica da Filosofia da História omite esse movimento relativo e solidário, isto é, prolonga o momento da análise conceitual sem reconstituir a tendência social que o induz e que, de algum modo, lhe empresta profundidade, a bem dizer involuntária.” (ARANTES, P. E. 1996, p. 371)
Retomamos essas considerações do professor Paulo Arantes sobre como a Filosofia da História se torna obsoleta a fim de identificarmos uma espécie de crítica fácil (e por isso recorrente) a que muitas vezes o trabalho intelectual está sujeito. Como bem disse Arantes, esse tipo de crítica omite a atmosfera, o solo de fundamentação e o contexto histórico que acolhe determinada construção lógica e histórica de uma explicação. Acolhimento capaz de revelar um sentimento (ou ressentimento) de um contexto material e/ou os gestos ideológicos de um tempo histórico tematizado numa explicação.
No caso dos três pensadores em questão neste trabalho – Lukács, Benjamin e Adorno – não são poucas as tentativas de descontextualizá-los, de fragmentá-los, de descartá-los e de chutá-los como cachorro morto: “marxismo idealista”, “totalitarismo da totalidade”, “messianismo nostálgico”, “pessimismo paralisante”, etc. A nosso entender é muito mais proveitoso – mesmo sabendo que o desenrolar histórico exige que os diagnósticos deles sejam constantemente (re) trabalhados – reclamá-los, revitalizá-los, reatualizá-los, rechamá-los a fim de identificarmos em que medida eles ainda estão do nosso lado para responder aos problemas do agora.
Pensemos na História e Consciência de Classe (HCC) de G. Lukács. Essa obra não pode ser entendida sem termos em vista a Revolução Russa de 1917. Sua riqueza e suas contradições estão imediatamente vinculadas a esse grande acontecimento. Trata-se de um impacto capaz de torná-lo militante de uma organização política (PC Húngaro), de modificar radicalmente sua leitura de Marx e sua análise da Revolução Russa. Lukács passa – para seguirmos a periodização de Michel Löwy – de uma visão trágica do mundo que buscava um fundamento ético para a emancipação humana para tornar-se um militante/teórico do partido. Nos textos anteriores à sua adesão ao partido, a classe operária já aparecia como a portadora da redenção social da humanidade, mas em HCC ela será vista numa outra dinâmica; o socialismo não aparecerá mais como um ideal que transcende a realidade social; ao contrário, Lukács criticará aqueles que separam os meios dos fins (ser e dever-ser); o Partido Bolchevique passará a ser justificado (alianças, táticas, etc.), o problema da violência tornar-se-á um problema histórico filosófico e a fundamentação ética do socialismo será o aspecto subjetivo da ausência da categoria de totalidade.
De forma bem resumida, assim pode ser definida a ortodoxia metodológica do marxismo de G. Lukács: O proletariado é o sujeito revolucionário porque ele vive a exploração capitalista e é capaz de revolucioná-la. Ele é sujeito e objeto da engrenagem capitalista, e, portanto, vê do ponto de vista da totalidade. O materialismo histórico é a álgebra da revolução porque estabelece a relação dos atores históricos com a sociedade enquanto totalidade, pois é uma teoria que surge da dinâmica histórica ao mesmo tempo em que influi nela. Isso significa que o marxismo é o desenvolvimento teórico duma práxis social e ao mesmo tempo busca superá-la. Ou seja, teoria e prática, sujeito e objeto são inseparáveis.
Agora, se é certo que a verdadeira consciência de classe nasce do desenvolvimento do proletariado no interior da sociedade capitalista, também é certo que o proletariado sobre todas as formas é puxado a ceder frente à força do capital. E aqui temos talvez o momento mais original do pensamento de Lukács, a teoria da reificação. A análise de Lukács segue demonstrando que a lógica da abstração do trabalho que se corporifica nas mercadorias generaliza-se e atinge todas as esferas sociais: Estado, sistema jurídico, consciência filosófica, ciências burguesas, etc. Lukács, numa análise consistente, demonstra que a especialização/fragmentação do conhecimento retira toda possibilidade de compreensão da totalidade. Portanto, as ciências aparecem na realidade capitalista como um empecilho para a possibilidade objetiva da consciência de classe revolucionária.
O pensamento de Walter Benjamin, assim como o de Lukács, também é tributário do acontecimento “Revolução Russa”. Isso aparece de forma marcante nos Documentos de Cultura e de Barbárie, em que Benjamin, após visitar a URSS, procura estabelecer a novidade e a possibilidade de emancipação que a produção cultural pós-revolucionária, que sucedia o período áureo da cultura moderna russa, estava abrindo. Todavia, Benjamin nunca esteve engajado nas fileiras do Partido, um distanciamento necessário para que Benjamin pudesse ter posições mais críticas do desenvolvimento histórico soviético. Outros fatos importantes a serem destacados no decorrer da experiência intelectual benjaminiana são: a Revolução Alemã e a ascensão do nazismo. Fatos que deram novos contornos ao materialismo messiânico de Benjamin.
Os textos dos anos 1930, como O Narrador e Obra de arte na era da reprodutibilidade técnica, são lidos por muitos comentadores, Michel Löwy, por exemplo, como um parêntese progressivista que será deixado de lado nas Teses sobre o conceito de história. No nosso entender, talvez seja mais proveitoso não separar os textos dos anos 1930 em que o autor tematiza a perda da tradição, da aura, da narração clássica, de sua proposta de historiografia revolucionária. Podemos dizer que há uma tensão entre o reconhecimento lúcido do fim das formas seculares de comunicação e a necessidade de pensar outra política e outra escritura da história.
Ao contrário do pensamento progressivista da social-democracia alemã, ele não pensa a “salvação” como alvo da dinâmica histórica, como telos. Benjamin recusa-se a falar em revolução como processo cumulativo e progressivo que se desenrola num tempo vazio e homogêneo e que levaria a uma forma secularizada de redenção. Não, aqui é necessária uma armação teórica, para falar como Adorno, que sustente a escrita da história e a prática política.
Nas palavras de uma astuta comentadora de Benjamin: “Em sua teoria da narração e em sua filosofia da história em particular, o indício de verdade da narração não deve ser procurado no seu desenrolar, mas, pelo contrário, naquilo que ao mesmo tempo lhe escapa, nos tropeços e nos silêncios, ali onde a voz se cala e retoma fôlego” (GAGNEBIN, J.M. 1994, p. 115). Mais à frente: “Lembrar-se por amor ao passado e a seus sofrimentos esquecidos, de certo, mas igualmente, de maneira ainda mais perigosa, lembrar-se por amor ao presente e à sua necessária transformação” (Ibidem, p. 120). Enfim, o que está em jogo na experiência intelectual de Benjamin não é a nostalgia do passado, messianismo e marxismo aparecem juntos para influir no presente e apresentar uma visão do futuro.
Agora como pensar a experiência intelectual de T. Adorno levando a sério o contexto histórico por ele vivido? Do terror nacional-socialista, para o mundo administrado; da esperança utópica das revoluções europeias para o mergulho numa nova barbárie chamada socialismo real. Contexto onde as categorias fundamentais das análises marxianas foram postas fora de combate (ou precisavam ser repensadas) pela paralisação do movimento histórico, isto é, a tendência à crise e ao colapso.
Levar isso a sério significa medir se as cobranças de Lukács a Adorno são ou não pertinentes: “Uma parte considerável da nata da inteligência alemã, inclusive Adorno, alojou-se no Grande Hotel Abismo (…) um belo hotel, provido de todo conforto, à beira do abismo, do nada, do absurdo. E o espetáculo diário do abismo, entre refeições ou espetáculos comodamente fruídos, só faz elevar o prazer desse requintado conforto (Die Zerstörung der Vernunft, Neuwied, 1962, p. 219)” (LUKÁCS, G. 2000, p. 18).
Numa perspectiva contrária à crítica de Lukács, Adorno, a nosso ver, repensa até as últimas consequências as aporias do projeto moderno, não para dizer que eram falsos ou que fracassaram, mas para mostrar a necessidade de ampliar os temas e encontrar um novo paradigma explicativo. Como ele disse: “A filosofia, que um dia pareceu ultrapassada, mantém-se viva porque se perdeu o instante de sua realização” (Adorno, T. 2009, p. 11). A estética será um campo privilegiado para suas investigações.
Como disse Marcos Nobre: “A posição de Adorno não é insustentável, é tão-somente uma posição difícil de sustentar.” E essa dificuldade faz com que seu não-conformismo sofra difamações e seja alvo da crítica fácil. Nas palavras do próprio Adorno: “O conformismo e o contrário do conceito de conformismo, o não-conformismo, pertencem às categorias da consciência ou da conduta, às categorias subjetivas que se tornam falsas no movimento em que são isoladas, extraídas da totalidade e, principalmente apreendidas de modo abstrato, independentemente do momento social, da função e da constelação de motivos em uma situação. Acredito que se pode em geral incorporar da dialética que não há categoria, não há conceito e nem teoria, mesmo que verdadeira em si, que seja imune a ser falsa e até ideológica dentro da constelação que ela conquista pela práxis” (ADORNO, T. 2007, p. 8).
Enfim, Adorno levanta um problema essencial da experiência intelectual, a práxis e a problemática relação do intelectual com a sociedade. Depois das dramáticas experiências históricas que a humanidade viveu no século XX, Adorno foi obrigado a pensar o fosso aberto entre a “sociedade” e a “intelectualidade” e o preenchimento desse fosso por algo que balizava os dois polos: o poder ideológico.
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Feitos esses curtos comentários sobre cada um dos três autores e reconhecendo que os perigos diagnosticados por eles – reificação, Estado de exceção, poder ideológico, etc. – estão aí presentes e potencializados no nosso tempo histórico, podemos retornar às questões levantadas no início deste ensaio: Em que medida Adorno, Benjamin e Lukács nos ajudam a pensar o agora? Em que medida eles são nossos contemporâneos? Numa resposta bem breve podemos dizer: Eles são nossos contemporâneos e ajudam a entender o agora na medida em que suas experiências intelectuais nos ajudam a perceber não as luzes, mas o escuro da experiência contemporânea.
* Danilo Chaves Nakamura é historiador, formado pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP).
BIBLIOGRAFIA
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AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Tradução: Vinícius Nicastro Honesko. Chapecó, SC: Argos, 2009.
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