Vito Letizia
Este artigo, escrito em 22 de abril de 2002, discute a ofensiva dos Estados Unidos contra o mundo islâmico, dentro de um contexto histórico.
Desde a Guerra da Secessão, as grandes guinadas na política externa dos EUA sempre foram deflagradas por explosões. A explosão do couraçado “Maine” em 1898, no porto de Havana (266 marinheiros mortos), abriu caminho à ocupação de Porto Rico e das colônias espanholas do Pacífico (mais a anexação do Havaí, reino nativo independente), logo seguida pela ocupação da zona do Canal do Panamá (1903), ao mesmo tempo em que antigas proclamações de certo direito ao lugar de potência hegemônica no continente americano entravam efetivamente em vigor.
1. O império jovial
A respeito dos acontecimentos mencionados acima, é bom evitar as simplificações teóricas dos movimentos anti-imperialistas que tanto proliferaram na América Latina ao longo do século XX.
Em primeiro lugar, os EUA não faziam mais do que seguir, até com certo atraso, o movimento geral das grandes potências capitalistas pela dominação das áreas atrasadas do mundo. A abertura do Canal de Suez em 1869 precipitara uma competição (mencionada pelos historiadores da época como “grande jogo”) na qual se disputava o controle das áreas fornecedoras de matérias-primas para as nações europeias candidatas à posição de potências do mundo capitalista industrial nascente.
Em segundo lugar, a entrada dos EUA nesse jogo tinha muitas faces, nem todas facilmente condenáveis. Uma delas foi a face libertadora, a saber, o apoio à independência de Cuba. Por mais que se diga que Cuba acedeu apenas a uma independência limitada, o que é verdade, também é defensável que, para os cubanos, isso trazia algumas vantagens em relação à condição de colônia da atrasadíssima Espanha do século XIX. E, quanto ao resto da América, a tutela dos EUA não fez mais do que substituir tutelas europeias igualmente conservadoras de velhas relações coloniais.
Bem entendido, ressalvar as especificidades não implica justificar a adesão dos EUA à partilha imperialista do mundo no século XIX. O único interesse das distinções está em estabelecer uma relação mais precisa entre as potências imperialistas e os povos submetidos.
O importante é o fato de que os EUA, após a guerra de 1898, passaram a exercer seu império sem ter necessidade de impor mudanças sociais significativas aos povos que passaram a dominar. As classes dominantes dos países latino-americanos não foram desalojadas do poder pelos EUA nem tiveram que reorientar suas atividades econômicas e nem sequer foram impedidas de continuar seus negócios diretos com a Europa. Os únicos que sentiram a entrada da dominação americana como agressão militar foram os povos primitivos da Oceania e das Filipinas, cuja conquista custou a vida de cerca de 100 mil nativos. Mas isso não constituía ruptura com certa normalidade amplissimamente aceita. Faz parte da maravilhosa colonização europeia que criou os esplêndidos países civilizados da América e da Oceania.
É verdade que a Revolução Mexicana de 1910, ao impulsionar movimentos nacionalistas nos países próximos, desencadeou uma série de intervenções diretas de tropas dos EUA para manter sua dominação na área. Mas essas intervenções, limitadas ao Caribe, além de terem sido de pequena monta, logo conseguiram recolocar no poder ditadores, sustentados por “guardas nacionais” treinadas por conselheiros americanos, cuja função foi garantir a continuidade da economia colonial de tradição secular, intermediada pela mesma classe dominante de sempre.
Os EUA em 1898, portanto, não apenas tinham uma face libertadora para os independentistas cubanos. Principalmente não tinham uma face destruidora de Estados previamente nascidos na antiga área colonial ibérica, diga-se o que se disser sobre o grau de independência real desses Estados. Consequentemente, os governantes dos EUA não precisaram arcar com o ônus político de apresentar-se como fundadores de impérios, pelo contrário, puderam apresentar-se como dirigentes de um povo pacífico agredido pelo imperialismo hispânico, que não faziam mais do que cumprir seu dever de defender um lugar honroso para a nação americana no cenário internacional. Essa aparência adquiria credibilidade até pelo contraste entre os presidentes americanos e os chefes das grandes potências europeias, que se declaravam abertamente fundadores de impérios.
As relações específicas dos EUA com os países que passou a dominar após 1898 moldaram a atitude americana em relação ao mundo e a suas próprias instituições.
Externamente, essas relações continham uma ambiguidade de dominador/líder, bastante descontraída. Um aspecto importante dessa atitude é sua continuidade com as origens da nação americana, construída por desbravadores com alto senso de liberdade individual, senso atrozmente ausente nas colônias ibéricas. Ao efetivar-se a dominação dos EUA sobre essas colônias ou ex-colônias, estagnadas em suas relações sociais mercantilistas, firmou-se o sentimento de superioridade dos americanos brancos calvinistas sobre os mestiços e católicos, conforme a opinião sobre os latino-americanos, externada nas memórias de Theodore Roosevelt, que esteve em Cuba comandando seus “rough rangers” na guerra de 1898, antes de ser eleito presidente dos EUA. Outro aspecto dessa atitude era a autoconfiança de portador do progresso por parte dos dominadores americanos. Era muito diferente da autoconfiança dos europeus na Ásia e na África, envolvidos numa feroz missão de “educação” de povos submetidos a ferro e fogo.
Fato da mais alta relevância: a ideia de que os EUA tinham um papel indutor de progresso tem sido partilhada por boa parte dos latino-americanos. Considere-se, por exemplo, a uniformidade com que os países da América ibérica reproduziram cascas vazias de instituições políticas dos EUA, pretendendo com isso legitimar-se como “democracias”. Grande parte da intelectualidade e do povo latino-americano em geral não via os norte-americanos como opressores, embora ninguém duvidasse que os EUA eram a nação dominante na área.
Os partidos comunistas criados na América Latina durante os anos 1920 nunca conseguiram mudar muito esse sentimento de inferioridade política, mesclado de admiração pelos feitos econômicos dos EUA, difusamente presente, mesmo entre nacionalistas. Isso se manifesta fortemente na cultura, permanentemente atraída pelo cinema americano, pela música americana, pelas ideias que vêm das universidades americanas.
Internamente, o caráter descontraído do imperialismo americano facilitou a enorme complacência do povo americano com as falhas de suas instituições republicanas. Não se deve esquecer que, na segunda metade do século XIX, já havia nos EUA, pelo menos formalmente, o sufrágio universal masculino (pouco acessível a negros), pelo qual se batiam os trabalhadores e os intelectuais progressistas na Europa. Claro, isso não desculpa a ciência política parcial, gestada no Ocidente durante o século XX, que insiste em definir as excelentes instituições republicanas dos EUA como instituições democráticas (não é culpa de Tocqueville), apesar do obscuro sistema eleitoral indireto, dos numerosos linchamentos de negros, que só nos anos 60 do século XX tiveram acesso ao voto equivalente ao dos brancos, assim como da tradicional truculência legal e ilegal contra sindicatos e sindicalistas, para não falar de aberrações como a “Lei Seca” dos anos 1920/1930.
Foi a liberdade de iniciativa econômica, apoiada num sistema judiciário acessível e eficiente, que deu prestígio aos EUA entre as nações jovens do Ocidente, apesar dos entraves ao desenvolvimento social dos negros. Os grandes espaços rapidamente conquistados aos índios e uma política de fácil acesso à propriedade da terra (Homestead Act, 1862) atraíram milhões de europeus à aventura de “fazer a América” e de fazer uma nação, embora não uma nação e pluribus unum, como quer o mito oficial. Esse foi o conteúdo democrático real da bem pensada Constituição republicana dos EUA, nascida sob a vigência da escravatura e mantida com mínimas alterações até hoje.
A democracia econômica dos EUA, ainda que parcial, ajudou a legitimar a dominação imperialista instaurada em 1898, tornando-a suficientemente isenta de sentimento de culpa para que, ao terminar a Grande Guerra de 1914-1918, o presidente dos EUA, Thomas W. Wilson, pudesse destacar-se dos chefes das potências vitoriosas revanchistas com sua proposta de paz em 14 pontos, que consistia num magnânimo statu quo ante bellum, respeitando as potências vencidas, o que projetou os EUA como única nação defensora de relações de justiça e fraternidade entre as nações (em oposição aos revolucionários russos, que falavam em fraternidade entre os proletários). Obviamente, isso não precisava ser levado a sério pelas nações não-ocidentais. Para estas estava programada a continuidade da dominação colonial, com a entrega das províncias do Império Otomano em dissolução e das colônias alemãs às potências vencedoras, sob a forma de “mandatos”.
2. O império incômodo dos europeus
Não há termo de comparação entre o que se passava no continente americano e a verdadeira guerra mundial que vinha sendo travada durante todo o século XIX entre as potências capitalistas europeias e o mundo não-ocidental. Guerra mundial porque, com a ascensão do capitalismo industrial, os europeus passaram a não mais se contentar com o controle das atividades comerciais no Oceano Índico e na África. Agora buscavam explorar diretamente a força de trabalho dessas áreas. O capitalismo industrial abriu o grande jogo entre as potências; os prêmios eram povos e áreas geográficas a ocupar.
Mais uma vez, porém, cabe lembrar que definir as características gerais do imperialismo europeu não basta para compreender suas manifestações. Só examinando atentamente o processo histórico é possível explicar as relações de dominação concretas. Por isso é indispensável separar o Norte da África (exceto a Argélia) e o Oriente muçulmano a oeste da Índia do resto da África e do Oriente. Porque as áreas em que ocorreram as relações coloniais características do capitalismo imperialista do século XIX foram a Indochina, a Insulíndia, a Índia e a África Subsaariana (+ Argélia). Nestas áreas é que foram construídas as novas colônias europeias típicas do século XIX, num processo histórico bem definido de invasão e ocupação militar permanente.
O colonialismo da Europa industrial significou, para os povos dominados, a obrigação de cultivo de certos produtos com entrega gratuita ou, na versão benévola, entrega a preços fixados pelos compradores europeus; significou a expropriação de áreas de caça e pastoreio e a expropriação das melhores terras agrícolas para uso de proprietários europeus; significou a cobrança de impostos (incidindo sobre os indivíduos ou coletivamente sobre as aldeias, conforme o tipo de colonização), a serem pagos no dinheiro dos europeus, só alcançável trabalhando para os mesmos em suas minas ou fazendas; significou transferências de populações, por pressão de miséria bem planejada ou manu militari, para outras áreas ou mesmo para países distantes necessitados de mão de obra.
Isso tudo tem sido muito denunciado por historiadores humanistas, gente de esquerda e almas cândidas em geral, principalmente em tempos mais recentes. Mas tudo isso não tem importância em si. Só se torna importante quando entra em contradição com a ideologia dominante na metrópole. Assim, o tráfico negreiro e o extermínio dos índios na América eram legitimados pela queima de hereges e cristãos-novos na Península Ibérica, práticas que não destoavam das do resto da Europa. Lembre-se as guerras de religião na França (1562-1598), com sua Noite de São Bartolomeu (24 de agosto de 1572, 20 mil protestantes mortos); a sequência de massacres sofridos pela população dos Países Baixos durante os 43 anos de sua primeira guerra de independência contra a Espanha (1566-1609); o extermínio de um terço da população da Boêmia e da Alemanha por Espanha e Áustria, durante a Guerra dos Trinta Anos (1618-1648), contra a liberdade de religião. A grande exceção, a Inglaterra, país onde a continuidade do despotismo fora quebrada por uma revolução (1640-1649), teve a evolução de suas relações sociais bloqueada pela violência da repressão nas áreas conquistadas da Escócia e da Irlanda. O historiador Arnold Toynbee é talvez o único que estabeleceu uma relação entre a conquista dos povos celtas pelos ingleses e o padrão de comportamento em suas colônias (A Study of History, Oxford University Press, 1954).
No alvorecer do capitalismo industrial, a correspondência entre as relações sociais metropolitanas e coloniais sofreu uma ruptura, devida aos efeitos da Revolução Francesa de 1789. Nesta, após uma longa luta dos jacobinos, enfim, em 1794, foi abolida a escravatura nas colônias francesas. É verdade que os interessados na velha exploração colonial voltaram à carga sob Napoleão Bonaparte e conseguiram o restabelecimento do escravismo colonial em 1804. Mesmo assim, a ruptura realizada pela Revolução Francesa foi irreparável. O “despotismo esclarecido” fora quebrado e a mudança das relações sociais tornou-se uma tendência incontível na Europa (menos forte na Inglaterra). Entretanto, não fora eliminado o escravismo colonial.
A contradição criada pela permanência do escravismo colonial após a irresistível penetração entre as massas urbanas da Europa Ocidental das ideias de igualdade e fraternidade lançadas pela Revolução Francesa gerou uma verdadeira cisão da alma ocidental.
Fator agravante da cisão: o fim das guerras napoleônicas, em 1815, trouxe a retomada da expansão colonial, agora comandada pelo novo capitalismo industrial. Quer dizer, enquanto os ideais de igualdade e fraternidade se espalhavam pela Europa, o novo sistema capitalista começava a transformação das antigas áreas de exploração mercantil do Oriente e da África em áreas de exploração direta, com sangrentas intervenções militares e imposição de variadas formas de trabalho forçado. A partir dessa época, as atrocidades praticadas nas novas colônias de exploração, principalmente na Índia, no Ceilão e na Indonésia, começaram a chocar até europeus rudes, coisa que não acontecia antes, ao mesmo tempo em que se desenvolviam movimentos pelo fim do escravismo colonial na Europa (e em seguida nos EUA).
Diga-se de passagem, foram as formas mais ou menos disfarçadas de trabalho forçado sobre povos não-ocidentais que permitiram aos capitalistas ingleses, já senhores da Índia, dar-se ao luxo de abandonar a defesa da escravatura mais cedo do que os outros beneficiários da exploração colonial na América, pois puderam levar trabalhadores indianos “livres” para suas colônias canavieiras do Caribe.
Os contrastes entre sociedade metropolitana e colonial foram facilmente suportáveis enquanto a Santa Aliança dos monarcas contrarrevolucionários vencedores de Napoleão conseguiu dominar a Europa, isto é, até a grande vaga revolucionária que sacudiu a Europa em 1848. A partir daí, tornaram-se necessárias doses crescentes de hipocrisia para tratar da questão colonial.
Dos anos 1880 em diante, a perda de legitimidade do sistema colonial europeu acentuou-se extraordinariamente, quando o movimento social-democrata e anarquista ganhou força e foi influenciando cada vez mais uma opinião pública favorável à democracia, à igualdade entre os sexos e à humanização dos costumes. Isso foi bonito. E deu à Belle Époque (1889-1914) o esplendor cultural que fez dela o momento talvez mais alto da história do Ocidente. Foi, porém, um esplendor inscrito numa contradição que a social-democracia não solucionou.
O movimento operário europeu nunca soube muito bem o que fazer com os povos não-ocidentais. Lenin parecia ter clareza sobre o que fazer com os povos submetidos pelos impérios da Áustria e da Rússia: era a favor de sua independência e defendeu isso numa polêmica de 1913 (Notes Critiques sur la Question Nationale, Éditions Sociales, Paris, 1952) com Rosa Luxemburgo, que não via importância revolucionária nos movimentos nacionalistas. O problema é que nessa polêmica só entravam os povos cristãos dominados por aqueles dois impérios. Lenin nunca foi a favor da independência das nações muçulmanas da Ásia Central e do Cáucaso submetidas pelo Império Russo. O fato é que mesmo entre marxistas revolucionários pairavam dúvidas sobre o que fazer com povos “atrasados”. Não seria perigoso devolver-lhes a independência, permitindo assim o retorno de seus chefes “feudais” ao poder? Não seria melhor que tais povos permanecessem sob dominação europeia até que a revolução proletária na metrópole abrisse uma transição direta ao socialismo?
Essas questões permaneceram obscuras entre os marxistas. Muitos se omitiram ou foram favoráveis à repressão dos povos muçulmanos mantidos à força na URSS, inclusive os trotskistas, ferrenhos críticos de Stalin quanto à sua política no Ocidente. Só recentemente, após o desmoronamento da URSS, essa questão vem sendo abordada, aos poucos, por autores que buscam repensar os descaminhos de passadas direções do movimento operário, como, por exemplo, Pierre Broué em Histoire de l’Internationale Communiste (Fayard, Paris, 1997). O assunto é longo. Aqui apenas interessa registrar que a contradição entre as conquistas da civilização europeia e a brutalidade de suas relações coloniais não foi resolvida pela Revolução Russa de 1917.
Na Ásia Central pareceu ser acertado dar todo o apoio aos colonos russos, que viviam em locais próprios, funcionando como guarnições e, por isso, assim que caiu o czar, imediatamente aderiram ao novo poder soviético, buscando proteção contra a revolta nativa. Nas células bolcheviques do Turquestão não havia turcos (Edward H. Carr: La Révolution Bolchévique, vol. I – La Formation de l’URSS, Minuit, Paris, 1969) e a República soviética russa instituiu seu poder na Ásia Central em outubro de 1919 através de uma Comissão do Turquestão sem turcos. No Cazaquistão, onde a resistência assumiu caráter de guerra civil e persistiu intermitentemente até 1935, houve 2,2 milhões de mortos, numa população de 6,1 milhões, além dos 600 mil nômades fugidos para a China governada pelo Kuomintang, partido então comandado pelo suposto nacionalista Chiang Kai-chek (Jean Radvanyi: L’URSS: Régions et Nations, Masson, Paris, 1990).
Quando a esquerda não sabe o que fazer com uma contradição, a direita sempre sabe. A resposta fascista foi restaurar dentro da Europa a velha brutalidade social dos tempos do absolutismo monárquico, apoiada num novo aparato “científico”. A raça superior, disciplinada pelo regime totalitário, poderia expandir livremente sua agressividade pelo planeta inteiro. A hipocrisia ficaria a cargo de profissionais especializados em embelezar relações de dominação.
Muito se discutiu a ideologia fascista e o assunto extrapola os objetivos deste trabalho. Mas é importante lembrar que, embora o fascismo seja um fenômeno novo, próprio do século XX, há um fio de continuidade entre certas ideias fascistas, hoje comumente condenadas, e as práticas sistemáticas de atrocidades contra povos não-europeus dos principais Estados ocidentais desde o século XV. Não há como ignorar que o racismo europeu está enraizado em toda a história da expansão do Ocidente, inseparável do genocídio de povos indígenas e do escravismo colonial. E tampouco se pode desligar o antissemitismo nazista da longa tradição europeia de perseguições a judeus, hereges, mouros e cristãos-novos, verdadeiros e inventados.
A 2ª Guerra Mundial terminou sendo uma mistura de conflito entre potências disputando a hegemonia mundial e entre movimentos políticos presentes em todos os países, tanto em guerra como neutros. Eric Hobsbawm nota, em O Breve Século XX (Companhia das Letras, São Paulo, 1995), que a 2ª Guerra Mundial foi a primeira que teve também o caráter de guerra civil mundial entre os que buscavam ampliar as conquistas sociais e políticas do século XIX e os que aceitavam o tipo de retrocesso embutido na proposta fascista.
3. O império conservador
As bombas japonesas explodindo sobre Pearl Harbour em 7 de dezembro de 1941 abriram a segunda oportunidade de expansão do império americano. Particularmente oportuna foi a possibilidade de livrar-se da concorrência do Japão na luta pela dominação econômica da China, na qual os americanos estavam em desvantagem. O que era resultado da própria política dos EUA e das potências europeias em relação à China. Esta havia sido colocada na categoria de país não-pertencente ao então chamado “concerto das nações civilizadas” e, portanto, estava sujeita a “expedições punitivas” desde 1900 (expedição punitiva multinacional contra Pequim, após o assassinato do embaixador alemão por uma organização popular secreta: os “boxers”). Quer dizer, o “direito internacional” imposto à China impedia os americanos de proibir a prática política do Japão, que, de “punição” em “punição”, foi se assenhoreando da Coreia, da Mandchúria e do Jehol, além de manipular os senhores da guerra que passaram a dominar o norte da China após a proclamação da República em 1911.
Embora seja incontestável que Pearl Harbour foi um ato traiçoeiro, não deixa de ser igualmente verdade que, do ponto de vista dos objetivos americanos na China, o ataque veio a calhar. Além do mais, permitiu que os EUA entrassem cobertos de razão na guerra que foi, na história contemporânea, a guerra justa por excelência, enquanto guerra contra o “Eixo” fascista construído por Hitler. Sem dúvida, esse foi um aspecto altamente defensável da 2ª Guerra Mundial. Menos defensável é sua divulgação propagandística como guerra do “fascismo” contra a “democracia”. Na realidade, foi uma guerra entre países defensores da ditadura como sistema de governo, liderados pelas potências fascistas, e países de regime republicano autoritário tradicional, arrebanhados pela Inglaterra e pelos EUA, mais a URSS de Stalin. O que não quer dizer que a vitória de um lado ou a de outro fossem equivalentes. A derrota da Alemanha e da Itália fascistas eliminou um enorme obstáculo ao desenvolvimento humano e social no mundo inteiro.
O desfecho final da 2ª Guerra Mundial abriu aos EUA todas as possibilidades de ampliar seus domínios sem perder os ares de defensor da justiça entre as nações. O presidente Franklin Roosevelt, já em seu terceiro mandato, estava com autoridade suficiente para reunir as potências vencedoras, designadas como sendo EUA, Inglaterra, França e URSS, para decidir a reordenação do planeta em Ialta, (na Crimeia, em fevereiro de 1945). Na prática, embora a palavra final sempre tenha sido dos EUA e da URSS, o poder decisório principal foi dos EUA. A grande novidade foi o reconhecimento da URSS como potência digna de discutir os rumos do mundo.
Em Ialta os EUA ganharam a dominação econômica da China junto com a hegemonia incontestável sobre o mundo capitalista, assumindo ainda a incumbência de garantir todas as potências capitalistas na posse de todas as suas colônias, inclusive as da Indochina francesa, que haviam obtido a independência dos japoneses em retirada (nem sequer a independência da Índia foi dada como aceitável por Churchill em Ialta). A URSS ganhou as áreas ocupadas diretamente por suas tropas durante a guerra – o que implicou a divisão da Alemanha –, menos Berlim, que deveria ser cidade neutra. Essa era a paz que selava a “guerra para acabar com as guerras”. Na realidade, previam-se com plena certeza guerras na área colonial europeia, como se pôde ver imediatamente no Vietnã, invadido por tropas francesas em 1946, e na sangrenta repressão ao movimento independentista de Madagascar em 1947. Mas isso fazia parte da paz colonial de sempre. Em suma, a hipocrisia havia voltado à ordem-do-dia com força máxima. O único ponto fraco desse plano era dar um papel de pilar da nova ordem à URSS, que tinha um significado revolucionário no Ocidente, fizesse o que fizesse Stalin.
Quanto ao resto, previu-se tudo. A parte “justiça entre as nações” foi contemplada com a criação de uma gigantesca instituição encarregada de organizar a hipocrisia em grande escala, que veio a ser a organização dita das Nações Unidas (ONU), fundada com uma declaração de direitos humanos de encher de emoção as plateias de discursos oficiais. Por via das dúvidas, a ONU foi dividida em duas partes, cada uma com sua função: o Conselho de Segurança (com direito de veto reservado às potências ligadas pelos Acordos de Ialta) para as decisões efetivas; e a Assembleia Geral para os discursos. Sendo que nesta última não devia entrar grande parte do mundo: a parte a ser mantida perpetuamente na condição de colônia ou protetorado.
A ONU é uma instituição que expressou um momento determinado da expansão imperial americana. Não que a ONU tenha sido criada apenas para servir de fachada para a política externa dos EUA. Foi um cenário de batalhas diplomáticas acirradas desde seu nascimento. Mas os conflitos diplomáticos se davam num quadro aceitável pelos EUA, naquele momento em que a derrota das potências fascistas alimentava grandes expectativas de avanço social para milhões de homens que se haviam mobilizado para lutar contra o retrocesso. Nessa atmosfera, a expansão imperial só podia apresentar-se encoberta por uma máscara pacifista. E o pacifismo da ONU prestava-se a isso porque estava condicionado à estabilidade política projetada em Ialta. Quer dizer, a função de “preservar a paz para sempre”, atribuída à ONU, significava preservar tanto as fronteiras traçadas em Ialta como os regimes políticos e relações econômicas vigentes no interior delas em 1945. Dada a grande ampliação da área aberta à atividade dos capitalistas americanos no fim da 2ª Guerra Mundial, isso era um bom negócio para eles, desde que a estabilidade prevista em Ialta fosse mantida à risca.
Para isso, naquele momento político extremamente desfavorável para o capitalismo europeu, era indispensável a colaboração da URSS. De seu lado, Stalin estava perfeitamente disposto a colaborar na preservação dos acordos que garantiam todas as suas conquistas de 1945. E a eficácia de tal colaboração foi suficiente para estabilizar os regimes políticos na Europa Ocidental. Cabe lembrar, entretanto, que a influência da URSS no Ocidente não serviu apenas para conter as lutas operárias dentro de certos limites. O prestígio mundial da URSS, principal vencedora da Alemanha nazista e pátria da Revolução de Outubro, serviu também para dar ao movimento operário da Europa e da América confiança para lutar por espaço político na sociedade e melhores condições de vida.
Em resposta ao estímulo revolucionário gerado pelo surgimento do então chamado “campo socialista”, a poderosa imprensa dos EUA e da Europa Ocidental, assim que começaram a surgir as revoltas contra a camisa de força costurada em Ialta, passou a explorar ao máximo a imagem negativa apresentada pelo regime burocrático ultra-autoritário de Stalin, buscando com isso mascarar o plano de perpetuação da velha dominação colonial. Assim, a recolonização da Indochina foi explicada aos franceses, e depois aos americanos, como necessária para conter a expansão do “totalitarismo comunista”.
A manifestação exterior dessas manobras de propaganda e diplomacia clássica de grandes potências veio a ser a chamada de “guerra fria”, que tem sido vista como um processo único mundial. Na realidade, ocorreram três processos de guerra, dos quais só um foi “frio”. Sendo que um deles entrou em expansão justamente quando a guerra fria entrou em declínio.
3.1. O processo de conquistas sociais no Ocidente
Este é o processo da guerra fria propriamente dita, que foi um jogo de intimidação mútua entre EUA e URSS, tendo como núcleo real a luta de classes no Ocidente. E neste contexto específico a simples existência da URSS, a despeito de seu enquadramento na ordem de Ialta, foi um poderoso estímulo para o movimento operário.
Acontece que, aos olhos do movimento operário ocidental, a existência da URSS como Estado capaz de opor-se eficazmente ao poder das velhas potências foi um fator de credibilidade para as esperanças de que o fim da 2ª Guerra Mundial traria a vitória definitiva sobre as tendências ao retrocesso social reveladas pelo fascismo. E deve-se reconhecer que a expectativa das massas proletárias da Europa não estava totalmente errada nos anos 1940. Só estava errada quanto ao caráter definitivo da vitória.
Terminada a guerra, o movimento operário europeu que o fascismo tentara aniquilar voltou à atividade com força multiplicada, contando, além disso, com uma opinião pública mais favorável do que nunca. Do outro lado, no campo patronal, pesava o medo dos fortalecidos partidos comunistas, que ameaçavam reacender na Europa Ocidental, até por perda de controle da mobilização social, o processo revolucionário aberto na Rússia em 1917. Isso tudo tornara impossível rejeitar completamente as reivindicações populares, inclusive na Inglaterra, onde o menos ameaçador Partido Trabalhista foi levado ao poder no mesmo ano em que terminou a guerra, impondo uma espetacular derrota ao líder conservador Winston Churchill, que comandara a Inglaterra até a vitória.
Outra era a situação dos EUA. O capitalismo, exaltado pela enorme expansão de seu poderio econômico e militar, e sem partidos operários a temer, logo impôs restrições aos sindicatos (Lei Taft-Hartley, de 1947), onde ganharam força organizações gangsterísticas, obscuramente ligadas à polícia e a agências “de investigação” (uma tradição nos EUA desde os tempos da Agência Pinkerton, de fins do século XIX). Em 1950 foi criada por Joseph McCarthy uma comissão permanente do Senado encarregada de investigar “atividades antiamericanas”, iniciando o processo conhecido como “macartismo”, que não apenas perseguiu artistas e intelectuais, mas principalmente sindicalistas, durante o inteiro decênio de 1950. Razão pela qual, nos EUA, o atendimento às expectativas populares de melhorias sociais com o fim da guerra ficou por conta da prosperidade do período de reconstrução da Europa Ocidental e de um pouco preciso compromisso formal do governo com a promoção do pleno emprego (Employment Act, de 1946).
Já para os países ocidentais do capitalismo periférico, isto é, os países independentes ditos “subdesenvolvidos” do Ocidente, após um momento de festejos pela vitória “das democracias”, veio apenas o alinhamento dos regimes tradicionais a favor dos EUA na guerra fria, iniciada em 1947. Praticamente em todos eles houve restrição das liberdades civis, com os partidos comunistas estreitamente vigiados ou colocados fora da lei. A prosperidade teve que esperar.
Nesse período, o grande evento na área periférica não-colonial do Ocidente foi a Revolução Cubana (1959), que desencadeou uma onda de lutas sociais em toda a América Latina. A reação dos EUA foi o favorecimento de regimes militares, que fizeram dessa área um cenário da guerra fria bastante em evidência até o fim dos anos 1970, com avanços e recuos do movimento operário, agitação anti-imperialista, ações guerrilheiras em numerosas variantes e complicadas manobras dos partidos comunistas. O resultado geral disso é que não foi mais possível insistir em manter a periferia capitalista do Ocidente no atraso econômico de sempre. A partir de meados dos anos 1960 foi articulada uma combinação de regimes autoritários com melhorias econômicas centradas nas grandes metrópoles dos principais países latino-americanos. Assim, tirando proveito da já realizada reconstrução industrial da Europa Ocidental, foram chegando as conquistas materiais, possibilitadas por um plano de industrialização periférica enquadrado na reestruturação do capitalismo mundial do segundo pós-guerra.
Nos anos 1980 a guerra fria entrou em declínio e os EUA abandonaram a política de apoio aos regimes militares. Iniciou-se então um retorno “lento e gradual” aos regimes republicanos corruptos tradicionais. Isso, juntamente com o fim das esperanças despertadas pela Revolução Cubana, fez da América Latina uma espécie de terra aberta à aventura política. Ascenderam ao poder fenômenos de marketing eleitoral e carreiristas de todo tipo, facilitando a destruição das poucas conquistas econômicas ganhas durante a industrialização, em meio à “globalização” e aos novos modismos vindos da sede imperial americana.
3.2. As guerras de libertação na área colonial europeia
Onde a colaboração da URSS para a ordem de Ialta não funcionou foi na área colonial. Porque, se logo depois de 1945 já não era fácil na Europa limitar as reivindicações operárias a objetivos econômicos e sociais realizáveis no capitalismo, nas colônias europeias era impossível controlar os movimentos de libertação nacional, nascidos na época anterior, sob o impacto da onda de esperança levantada pela jovem Revolução de Outubro, esquecendo de reivindicar a independência que os Acordos de Ialta vetaram.
Essa foi a contradição que impulsionou o segundo processo de guerra, indevidamente confundido com a guerra fria do Ocidente. Consistiu essencialmente na tentativa de restauração colonial das potências capitalistas signatárias dos Acordos de Ialta. Foi uma guerra verdadeira. Só pôde passar por “guerra fria” porque não houve confronto direto entre EUA e URSS. Mas pilotos de guerra russos chegaram a voar na Coreia do Norte e a URSS deu ajuda militar substancial ao Vietnã e a alguns movimentos de libertação africanos. O processo começou no Vietnã e atingiu com intensidade variada toda a área colonial europeia.
A Guerra do Vietnã foi uma guerra colonial no velho estilo, da qual a imprensa americana disse e a maior parte da esquerda acreditou que foi só uma guerra entre capitalismo e comunismo. Ser capitalista no Vietnã em 1946 era aceitar a recolonização. Os capitalistas franceses queriam a qualquer custo recuperar suas lucrativas propriedades confiscadas pelos japoneses e depois devolvidas às populações locais quando lhes cederam a independência. Os povos da Indochina não aceitavam a entrega das propriedades, que significaria o retorno à antiga opressão. Como entender o enorme apoio popular aos comunistas nessa região muito pouco urbanizada e de forte tradição budista sem ver o projeto de recolonização do capitalismo francês naquele momento?
Até 1949 as potências capitalistas europeias acharam que poderiam manter indefinidamente suas colônias (em contraste com os EUA, que deram uma independência formal às Filipinas em 1946, preservando suas bases militares no país), exceto a Indonésia e a Índia, logo abandonadas por Holanda e Inglaterra, devido a razões muito particulares a cada uma. Mas em 1949 aconteceu a tomada do poder pelos comunistas na China. Isso, além de roubar dos americanos o prêmio principal de sua vitória sobre o Japão, desequilibrou todo o meticuloso sistema de contrapesos geopolíticos articulado em Ialta. Os capitalistas americanos sentiram seus projetos internacionais seriamente ameaçados. O macartismo pode ser considerado uma reação à perda da área econômica chinesa pelos capitalistas americanos. A ala imperialista mais afoita já cogitava novas operações militares em grande escala, para isso buscando o “rearmamento moral” do povo americano. As operações militares terminaram restritas à Guerra da Coreia (1950-1953), sob a cobertura da ONU, mas as liberdades democráticas sofreram um retrocesso nos EUA, que só foi anulado (exceto nos sindicatos) no fim dos anos 1960.
Logo após a Guerra da Coreia aconteceu a derrota francesa ante os comunistas vietnamitas na batalha de Dien Bien Phu (Norte do Vietnã, 1954). O que levou aos Acordos de Genebra, que dividiram o Vietnã, com a instituição de dois Estados independentes: um no Norte, para os vencedores de Dien Bien Phu, e uma monarquia no Sul; além de dar a independência ao Laos e ao Camboja.
A derrota dos franceses, a primeira sofrida por tropas coloniais em campo de batalha ante um exército “ilegal” de nativos, demoliu o precário esquema de contenção dos movimentos de libertação nacional que se tentara montar no fim da Guerra da Coreia, em 1953. Os ingleses imediatamente iniciaram o processo de independência da Malásia, dentro de uma nova política pitorescamente apelidada pelo jornalismo britânico de “to leave saving the furniture”. Daí em diante, o equilíbrio de forças foi se tornando cada vez mais desfavorável à manutenção das velhas colônias europeias.
Naquele momento, porém, isso não era compreensível para os imperialistas americanos, em plena euforia macartista, que decidiram compensar-se pelo menos parcialmente das recentes perdas e ocupar o lugar dos franceses e ingleses no Sudeste Asiático. Começaram por intervir no Vietnã do Sul. Derrubaram o imperador Bao Dai e colocaram no poder seu homem de mão, Ngo Dinh Diem, em 1955. Enviaram conselheiros militares e, a partir de 1957, tropas em quantidade cada vez maior. O processo de guerra na área colonial europeia entrava numa segunda fase: a da intervenção militar direta dos EUA.
O que caracterizou fundamentalmente essa nova fase foi o recuo das potências europeias, que passaram a “regularizar” a independência de suas colônias restantes, ao mesmo tempo em que os EUA avançavam para uma nova guerra colonial na Indochina.
Na África, equipes de nativos formados em universidades europeias foram preparadas para assumir o poder em seus países de origem. 1960 foi o “ano da África”, pelo número de independências nele ocorridas. Ficou claro que a mudança das relações entre Europa e África foi planejada nas mais altas esferas do planeta, caso contrário seria impossível tantas independências no mesmo ano, só poucas mais sobrevindo nos anos seguintes. Não puderam ser incluídas no plano as colônias de Portugal e Espanha, que precisaram esperar o fim dos regimes autoritários das metrópoles, relíquias políticas do período anterior à 2ª Guerra Mundial. Por isso, as colônias portuguesas terminaram sendo as únicas da África em que se enfrentaram a URSS, apoiando os movimentos de libertação nacional, e os EUA, apoiando o Estado português.
As novas relações estabelecidas entre as potências europeias e a África em 1960 foram chamadas por alguns de “neocolonialismo”. É mais simples dizer que as independências articuladas nas principais capitais da Europa previam a continuidade das relações econômicas vigentes. Mas isso não era o mais importante. O que realmente tinha uma importância enorme era o fim da ocupação permanente da África por tropas das principais potências europeias. O importante é que a maior parte do povo europeu deixou de ser diretamente responsável por ações de repressão e matanças para manter a dominação econômica dos africanos. Isso retirou a base de sustentação da agressividade social que sempre alimentara o projeto imperialista. Abriu-se um caminho à expansão de movimentos humanistas e libertários, permeáveis às reivindicações do movimento operário, então em pleno vigor na Europa.
A partir de 1960, na França, entrou em crise a OAS (Organisation Armée Secrète), defensora da “Argélia francesa”, ao chocar-se com o presidente De Gaulle, que encaminhava a independência. O povo francês, através das inúmeras maneiras com que apoiou e ajudou materialmente o movimento de libertação da Argélia até a independência em 1962, reatou seus laços com uma velha ideia de fraternidade e iniciou o movimento libertário que culminou na semirrevolução de maio-junho de 1968. Por um momento pareceu que a juventude francesa, logo secundada pela de outros países europeus, iria “tomar os céus de assalto” e forçar os partidos comunistas a romper seus compromissos com o congelamento político e social no mundo, selados em 1945. A França passou a ser o centro de um renascimento social e cultural, empurrado por um renovado impulso do movimento operário e por um pujante florescimento de correntes de pensamento marxistas e libertárias em sentido amplo, que se expandiu pela Europa (exceto a Península Ibérica até 1974) e atingiu o mundo inteiro. Parecia que logo seria possível defender a civilização europeia sem ser hipócrita.
Enquanto isso, na ex-Indochina francesa, os EUA seguiram o caminho inverso, assumindo até as últimas consequências o papel de metrópole dos restos do império colonial asiático que as potências europeias abandonavam.
A Guerra do Vietnã foi a primeira guerra colonial de verdade para os EUA. O encobrimento dos objetivos da guerra sob o manto da luta contra o comunismo (o que também era uma realidade, mas não a essencial) evitava que o povo americano se desse conta de que os capacetes de seus “GIs” no Vietnã só na aparência eram diferentes dos capacetes de cortiça das forças coloniais inglesas do século XIX. Não se pode equiparar essa guerra à da Coreia, em que se enfrentaram exércitos regulares, com trincheiras e linha de front. No Vietnã foi travada uma guerra suja, com um grau de brutalidade exorbitante para o padrão do fácil império americano de 1898 (estima-se geralmente em 2 milhões as vítimas vietnamitas de 1956 a 1974).
Pela primeira vez a situação estava invertida. Agora as nações dominadoras descontraídas eram as europeias. O que demonstrava indiretamente que os verdadeiros motivos da política dos EUA no Sudeste Asiático eram mais amplos do que o medo do comunismo, pois os capitalistas da Europa Ocidental, onde havia fortes partidos comunistas, tinham bem maiores razões para temer o comunismo.
Entretanto, após dez anos, o próprio gigantismo da operação militar dos EUA (580 mil homens em terra no auge da intervenção) e a resistência crescente dos jovens ao recrutamento fizeram a realidade tornar-se mais visível ao povo americano, já também atingido pela luz intensa das barricadas estudantis do Maio francês de 1968. Para desgraça do governo americano, o Maio francês ocorreu justamente no momento em que a guerra era lançada num jogo de tudo ou nada, com a inclusão do Vietnã do Norte na área de ação da marinha e da aviação dos EUA. Artistas e intelectuais americanos começaram a manifestar solidariedade ao Vietnã do Norte (sofrendo bombardeios a partir de 1967) e a condenar a guerra. Os EUA perderam a Guerra do Vietnã porque o comando imperialista perdeu a batalha pelos “corações e mentes” do povo americano, segundo a expressão em voga na época.
A retirada das tropas americanas do Vietnã em decorrência dos Acordos de Paris (janeiro de 1973) e a Revolução dos Cravos (25 de abril de 1974) em Portugal eliminaram o que restava do programa de perpetuação do império colonial europeu do século XIX. E, com o fim desse programa, teve uma parada temporária a expansão do império americano que, além da perda da área econômica chinesa, sofria também a perda do Vietnã, mais o Laos e o Camboja (estes últimos por excesso de boçalidade na condução da guerra), além de ficar com a capacidade de intervenção militar diminuída pela maior resistência do povo americano a arriscar suas vidas em ações no exterior.
A partir desse momento, que coincidiu com o início da guerra civil no Líbano (1975), passou ao centro do cenário internacional outro processo de guerra, que ocorria no Oriente Próximo e Médio, muito impropriamente incluído na guerra fria.
O termo é inteiramente falso neste caso específico. Não só porque o processo de guerra nessa área foi brutalíssimo, mas também porque nela não houve verdadeiro conflito entre EUA e URSS. De fato, o grande agravante, que facilitou a sucessão de matanças em andamento no mundo islâmico desde 1921 (primeira revolta palestina, então contra os ingleses), foi justamente o papel inteiramente negativo da URSS, do começo ao fim da própria URSS. E, pelo menos por uma vez, a culpa não foi de Stalin, neste ponto mero seguidor de Lenin, Trotsky e Frunze (chefe do Exército Vermelho na Ásia Central). Desde o momento inicial da Revolução Russa já fora criada, em meio às ilusões numa rápida vitória revolucionária na Europa Ocidental, com todas as boas intenções do mundo, a orientação contrária à independência das nações islâmicas dominadas pelo ex-Império Russo.
A linha política acabada está nas atas estenográficas do Congresso dos Povos do Oriente realizado em Baku, em 1920 (publicadas em francês por Maspero, Paris, 1971). Os bolcheviques propunham aos povos muçulmanos que rejeitassem seus líderes “feudais e os nacionalistas-burgueses” e se colocassem sob o comando dos sovietes russos para expropriar os proprietários de terra nativos. Mas para os povos muçulmanos oprimidos a ordem de prioridades era exatamente inversa: primeiramente livrar-se da ocupação russa, que empobrecera a população, submetendo suas economias nacionais a interesses externos (monocultura de algodão, mantida depois pelos comunistas); e secundariamente emancipar-se dos déspotas nativos, cujo “atraso”, quando se apresentava como bandeira contra a dominação russa, não podia ser percebido como problema pelos muçulmanos pobres.
Os resultados das orientações políticas não decorrem das intenções dos agentes envolvidos, mas sim da lógica social que os atos concretos desencadeiam. Na área muçulmana do ex-Império Russo, a negação da esperada independência desencadeou a inconformidade e a revolta dos nacionalistas nativos; essa revolta levou os bolcheviques a tolerar a truculência dos colonos russos; tal tolerância foi gradualmente evoluindo para a hostilidade aos movimentos islâmicos internos e externos. A consolidação dessa tendência foi recentemente comprovada pela publicação de documentos diplomáticos da ex-URSS que tratam da correspondência entre o movimento sionista no Ocidente e o Ministério de Relações Exteriores da URSS de 1941 a 1953. Constatou-se que a grande preocupação de Stalin era garantir a entrega dos bens da Igreja Ortodoxa na Palestina ao patriarcado sediado em Moscou. Muito natural, portanto, o pronunciamento da URSS na ONU pela criação do Estado de Israel em 1947, ingenuamente interpretado pelo movimento palestino da época como “traição”.
4. A área de vassalagem do Ocidente
Trata-se da área asiática e africana antes integrada em sua maior parte no Império Otomano, que só se dissolveu no século XX, consistindo no que hoje são Tunísia, Líbia, Egito, Palestina, Líbano (Sul), Síria, Iraque (Centro e Sul) e Península Arábica, ou seja, aquilo que o historiador Arnold Toynbee definiu como Sociedade Arábica – parte central ou de antiga implantação –, mais Marrocos e Irã. Todos esses países (menos o Irã) têm a língua árabe como veículo de cultura principal e são majoritariamente muçulmanos sunitas (da palavra árabe suna = “tradição”), corrente que não possui um clero hierarquizado, como a xiita do Irã. Todos se submeteram a alguma potência imperialista europeia no fim do século XIX ou início do século XX, sem sofrer a colonização ocorrida na África Subsaariana e na Argélia. Não foram colonizados, mas tiveram que aceitar alguma forma de submissão.
Chamar os países supracitados de “Estados vassalos” é uma solução de comodidade para encobrir situações bastante diversas, mas que têm em comum o fato de englobar os países muçulmanos de velha civilização, com populações relativamente densas e atividade comercial desenvolvida. O termo “colônias de enquadramento”, muitas vezes usado para designar esses países, não é bom porque inclui países arábicos periféricos que foram realmente colônias. É preciso distinguir os países centrais porque estes, além de terem possuído Estados organizados em contato com o Ocidente desde a Idade Média, foram rivais dele em poder militar durante séculos, o que constituiu uma espécie de “vacina” cultural quando, em época recente, a força do capitalismo industrial do Ocidente os obrigou a submeter-se.
A submissão voluntária a uma das potências europeias, preservando o poder tradicional, foi a solução adotada pelos chefes de Estado da área central do mundo islâmico para livrar seus países do estrangulamento comercial que vinham sofrendo desde o início das grandes navegações portuguesas no Oceano Índico. Por exemplo: o famoso viajante magrebino Ibn Batuta conta em seu livro de viagens (Éditions La Découverte, Paris, 1990, vol. II, págs. 84-85) que a cidade de Mogadíscio, na Somália, exportava um tecido (de algodão) “sem igual”, conhecido no Oriente pelo nome da cidade. Isso por volta de 1330, quando Ibn Batuta passou por lá. Em troca de seus tecidos, Mogadíscio importava armas e artigos de luxo das cidades do Oriente Próximo e da Pérsia. Esse comércio foi destruído a partir de 1503, quando chegaram Francisco de Almeida e Afonso de Albuquerque com a esquadra encarregada de instaurar o domínio marítimo português no Índico. Começou então a caça sistemática aos navios mercantes arábicos, temperada pela concessão periódica de “cartazes” (licenças de navegação para uma viagem) a príncipes amigos, mas sem direito de transportar especiarias, armas ou artigos de luxo, conforme conta A.R. Disney em A Decadência do Império da Pimenta (Edições 70, Lisboa, 1981, pág. 22), que nem por isso se inibe de contestar Antônio Bocarro, cujo livro (Década 13 da História da Índia) lamenta a miséria de Cochim, velha cidade comercial importante e primeiro ponto de apoio português na Índia, já visível no fim do século XVI. A Somália regrediu gradualmente para a vida pastoril de subsistência e terminou se tornando um dos países mais atrasados da África, enquanto o Egito, outros países arábicos e a Pérsia perdiam um escoadouro para suas manufaturas. Processos semelhantes repetiram-se em toda a bacia do Índico e do Mar da China, tornando-se mais destrutivos à medida que novas esquadras europeias mais fortes foram ocupando os mares.
Essa lenta asfixia econômica dos países muçulmanos rendeu, além de riqueza para as potências ocidentais que a criaram, numerosos calhamaços produzidos por seus intelectuais tentando explicar o atraso dos povos por ela vitimados, com base em teorias geográficas, religiosas e/ou culturais que dominam nas academias até hoje.
A opção pela vassalagem enquadrou os países islâmicos centrais na economia da potência estrangeira suserana, forçando novas orientações que mudaram a sociedade. Para começar, houve um benefício: os países vassalos obtiveram o fim do bloqueio comercial. A busca desse benefício é que inclinou os emires e sultões à vassalagem, sempre com o apoio do segmento mais rico da classe mercantil. Obviamente, os artigos de comércio mudaram, passando a ser produtos industriais do Ocidente, trocados por produtos primários locais, o que significou a destruição da grande atividade artesanal que caracterizava a Área Central da Sociedade Arábica. Portanto, como aliás é de se esperar de dominações imperialistas, o benefício nunca atingiu a massa da população, já vitimada pela antigo definhamento comercial. O surgimento de empresas capitalistas nessa área não eliminou as relações de exploração pré-capitalistas; apenas transformou algumas delas, criando um proletariado a baixíssimos salários, perpetuando ao mesmo tempo velhas relações de clientelismo e até de servidão, principalmente no campo.
Mas uma parte da massa, sim, beneficiou-se com o novo desenvolvimento da burocracia estatal e das forças armadas, agora voltadas principalmente para a repressão interna. Tarefa difícil, em função da quantidade de prejudicados com os novos negócios. Razão pela qual a presença de tropas da potência estrangeira dominante sempre foi indispensável.
Criaram-se assim novas sociedades fortemente estratificadas, com um restrito grupo de ricos, que vai às compras nas capitais europeias, onde alguns investem parte de sua fortuna, uma camada média de burocratas e militares corruptos, parcialmente ocidentalizada, e uma grande massa de pobres, que vê, com grande sabedoria, a origem de todo mal no Ocidente.
O apego ao islamismo é uma consequência, não uma causa da rejeição popular ao Ocidente. O exemplo clássico desse tipo de reação é a organização dos Irmãos Muçulmanos, criada no Egito em 1928 por Hassan al-Banna, após a falsa independência de 1922. Al-Banna não pretendia criar um partido político, mas sim um movimento de defesa das tradições. Logo foi reprimido porque criava células de tradicionalistas entre os pobres. O problema para o poder vassalo (e para os ingleses, que mantinham tropas em Suez) era a organização dos pobres. Porque a simples organização enquanto homens saudosos de um glorioso passado é um modo de resistir à submissão presente e inevitavelmente impele a ações de boicote e a choques com a ordem do Estado vassalo.
Os Irmãos Muçulmanos espalharam-se por toda a Área Arábica e deram origem a movimentos similares, que têm sido sempre reprimidos. A repressão aos movimentos islâmicos nos próprios países muçulmanos mostra a tensão interna que é a característica fundamental dos Estados vassalos. É uma tensão entre as massas desfavorecidas e o poder estatal, própria de Estados pouco legítimos porque impostos de fora, que aparece superficialmente como oposição entre Islã e Ocidente.
No processo de guerra que se desenvolve no mundo islâmico, os EUA têm tido pouca ação militar direta, porque podem servir-se de intermediários que se encarregam do trabalho sujo. Nele os EUA, depois de 1945, tinham dois objetivos fundamentais: o primeiro era dar mão forte à dominação europeia tradicional, no quadro do projeto conservador de Ialta. Parecia fácil, levando-se em conta que os principais Estados vassalos já eram independentes ou haviam conquistado uma independência formal e que neles, além de existir uma pequena camada social já ocidentalizada, havia amigos fiéis instalados no poder.
O problema para os amigos fiéis, porém, veio a ser o segundo objetivo dos EUA: a instalação de um Estado judeu militarmente hegemônico na área. Este objetivo simplesmente demoliu a já precária estabilidade dos regimes vassalos, ao erguer contra eles as massas empobrecidas, profundamente solidárias com o povo palestino. O processo de guerra da área de vassalagem passou a girar em torno da guerra na Palestina, aguçando-se em ritmo quase diretamente proporcional ao da afirmação militar do Estado de Israel.
O processo atravessou, até o final de 2001, três fases, cada uma correspondendo a um grau de revolta e a um centro de operações militares particular. E embora todas tenham a guerra na Palestina como fator de catalisação das forças em confronto, diferem tão nitidamente entre si que exigem exame em separado, ainda que sucinto.
4.1. Primeira fase: Rebelião dos Vassalos (1952-1970)
Os principais acontecimentos característicos desta fase ocorreram no Egito, na Síria, na Jordânia e no Iraque; mas foi o Egito o centro dos enfrentamentos decisivos, particularmente durante o governo de Gamal Abdel Nasser (1954-1970).
4.1.1. O Egito é o país central da Área Arábica de velha civilização, por sua densidade populacional (55 milhões concentrados às margens do Nilo) e sua posição geográfica, pois é o país do Canal de Suez. É também o país pioneiro do sistema de vassalagem ao Ocidente, que rompeu com o Império Otomano em 1801, logo que se retiraram as tropas ali deixadas por Napoleão Bonaparte após seu espetacular raid de 1798, e que depois estabeleceu uma aliança em situação subalterna com o Reino de França, restaurado em 1815 (trocada pela submissão à Inglaterra em 1849). Como Estado vassalo modelo, tinha no fim da 2ª Guerra Mundial um rei perfeito para a função (Faruk, 1936-1952), cujo currículo apresentava uma única mancha: recusara-se a declarar guerra à Alemanha em 1939. Nunca se sabe como vão terminar as guerras entre os suseranos.
A perspectiva do exército e da burocracia egípcios após 1945 era assumir plenamente a responsabilidade pela guarda do Canal de Suez, esperando com isso obter apoio para um desenvolvimento integrado ao Ocidente. Perspectiva que estava em perfeita continuidade com a política de abertura ao capitalismo europeu iniciada por Mohamed Ali (1805-1848), que levara à construção do Canal de Suez. Mas a criação de um poderoso Estado judeu militarizado na área acabou com o sonho. A inevitável mobilização das camadas sociais mais pobres a favor do povo palestino impediu que o Egito se apresentasse como guardião confiável do canal. A violência do processo de implantação do novo Estado, sob o patrocínio da Inglaterra e dos EUA, radicalizou e expandiu a influência do movimento islâmico popular, que começou a enviar voluntários à guerra na Palestina e a atacar os ingleses em Suez. Militares começaram a frequentar reuniões dos Irmãos Muçulmanos e alguns deles criaram o movimento “Oficiais livres”. Faruk caiu em 1952, quatro anos após a fundação do Estado de Israel, e a monarquia foi extinta no ano seguinte. É revelador que os revoltosos se dissessem “oficiais livres”. Haviam se dado conta da vassalagem do exército egípcio. Mas dar-se conta não é suficiente para resolver um problema.
O movimento dos oficiais do exército egípcio, tal como o movimento Baath da Síria e do Iraque, ao adotar a ideia ocidental de Estado laico, demonstrava seu afastamento em relação à população empobrecida que, contrariamente, via na afirmação do Islã o único modo de resistir ao Ocidente. Por outro lado, a camada social que impulsionava o Baath e o nasserismo debatia-se numa contradição insuperável. Pois era uma camada ocidentalizada que exigia o fim da vassalagem sem condicioná-lo ao fim da exploração econômica que sustenta a relação subalterna com o Ocidente. Os chefes militares rebeldes, chegados ao poder, se consideraram no direito de reprimir o movimento sindical, chegando a ocorrer o enforcamento de líderes grevistas “por traição” no Egito em 1952.
Em lugar do islamismo, para atrair as massas populares, os oficiais do exército egípcio tentaram levantar a bandeira baathista da federação de todos os países da região numa única “nação árabe”. Obviamente isso só poderia ser alcançado através da persuasão, uma vez que os EUA não dão permissão para aventuras guerreiras na área islâmica, a não ser para o Estado de Israel.
A ideia da “nação árabe” é um elemento importante do movimento Baath (“Ressurreição”), fundado na Síria por Michel Aflak e Salá al-Din Bitar (o primeiro sendo de família cristã) em 1943. Isso porque, para eles, a construção de um Estado forte e soberano no Oriente Próximo, sem retroceder a uma religiosidade medievalesca, só poderia apoiar-se no arabismo, e não no islamismo. A ideia é bem estruturada mas, para sobrepor-se aos movimentos populares islâmicos, devia ter oferecido também avanços sociais consistentes às massas vitimadas pela subordinação econômica ao Ocidente.
Por trás da ideia da “nação árabe” estava também a ilusão de que uma grande federação regional poderia impor-se ao Ocidente como sócia soberana na manutenção da ordem de Ialta. O irrealismo dessa pretensão dos oficiais egípcios e do Baath sírio (o Baath do Iraque só tomou o poder em 1968, após o naufrágio do arabismo) não estava só na expectativa superotimista em relação ao Ocidente, mas sobretudo na suposição de que seria possível libertar o conjunto das nações da Área Central Arábica sem mudar a situação social das massas miseráveis que pretendiam liderar.
Os Irmãos Muçulmanos nunca aceitaram a bandeira da “nação árabe”. Defendem uma reafirmação fundamental (portanto religiosa) das nações islâmicas particulares, formadas ao longo da história, apenas ligadas pelos laços que unem quem pertence à Umma islâmica, que é a comunidade da religião. A rejeição da “nação árabe” causou forte ressentimento contra os Irmãos Muçulmanos entre os militares rebeldes, logo no início da República Egípcia. Os oficiais acharam intolerável a oposição dos Irmãos Muçulmanos nesse ponto, porque bloqueava seu plano de dar um caráter popular à pretendida “nação árabe”. Nasser sofreu um atentado, supostamente de um irmão muçulmano, logo no início de sua ascensão ao poder. Segundo uma versão popular, o atentado foi forjado pela própria equipe de Nasser. Seguiu-se a retomada da repressão aos Irmãos Muçulmanos, interrompida após a queda de Faruk. Em 1966 foi executado um importante pensador, com grande liderança entre os Irmãos Muçulmanos, Sayyd Qotb, venerado como mártir até hoje.
Os oficiais do exército egípcio achavam que a ação concreta terminaria por impor às massas sua perspectiva que, de imediato, passava pela tomada do Canal de Suez e, a longo prazo, pelo desenvolvimento econômico e pela superação do Estado de Israel em poderio militar. Nasser nacionalizou o canal em 1956. Conseguiu guardá-lo porque uma pressão conjunta dos EUA e da URSS obrigou os governos inglês, francês e israelense a retirarem as tropas que o haviam retomado. Os oficiais egípcios chegaram a acreditar que podiam contar com EUA e URSS contra o Estado de Israel, a França e a Inglaterra. A realidade era mais simples: os EUA não quiseram desgastar sua imagem de guardião da justiça entre as nações, então ainda pouco avariada, só para salvaguardar a propriedade da Companhia do Canal para os acionistas ingleses e franceses. Era preciso ser um muçulmano atrasado para não cair infantilmente no conto dos EUA e URSS como defensores de um país islâmico contra potências europeias.
O segundo ponto da perspectiva nasserista, o desenvolvimento econômico, depois da exacerbação nacionalista da guerra de Suez, teve que ficar por conta de uma aliança com a URSS, já que capitais da Europa Ocidental e dos EUA não afluem para países em conflito com o Estado de Israel. Daí a opção pelo “socialismo árabe”, outra ideia dos oficiais egípcios, entre os quais havia ateus e simpatizantes comunistas.
A ajuda mais importante da URSS para o desenvolvimento foi o financiamento da barragem superior de Assuã, a partir de 1955. Porém o problema fundamental para o desenvolvimento do Egito, país tradicional de agricultura intensiva, era a mudança das relações de propriedade e poder no campo.
Socialismo de oficial do exército, mesmo “livre”, por definição é de cima para baixo. O modo militar-burocrático de enfrentar o problema da secular exploração do felá egípcio pelos proprietários de terra e pelos funcionários do Estado ávidos de propinas consistiu em seguir a orientação dos mesmos funcionários tradicionalmente coniventes com as mazelas do velho sistema. Fez-se uma reforma agrária em duas etapas: a primeira, feita antes de Nasser (1952), na efervescência da derrubada do rei, expropriou quase exclusivamente terras da família real, ou seja, os maiores latifúndios, beneficiando cerca de 750 mil agricultores com pouca ou nenhuma terra (5% do total), o que garantiu o apoio popular à república; a segunda etapa, baseada na expansão da área agrícola graças à nova barragem, fez-se gradualmente (1961-1966) e terminou beneficiando mais 6,5% da massa de agricultores. O resultado final foi um aumento proporcional das propriedades médias, sem mudança na situação da grande massa de felás.
Os grandes beneficiários do governo Nasser foram os militares e a burocracia. Em 1961, a Universidade de al-Azhar, do Cairo, passou a incluir disciplinas das universidades europeias em seus currículos e a aceitar a matrícula de mulheres. As instituições ligadas ao Estado receberam ordem de empregar todos os egípcios diplomados pela al-Azhar, sem exceção. Do que resultou que, em 1970, cerca de 60% do funcionalismo estatal era inútil. O sucessor de Nasser viu-se obrigado a revisar essa política, introduzindo um liberalismo econômico limitado a partir do ano seguinte.
O terceiro ponto da perspectiva aberta pelos “oficiais livres” em 1952, a luta contra o militarismo do Estado de Israel, foi o que mais claramente revelou a insuficiência e os equívocos do movimento militar-burocrático nasserista. A insuficiência principal estava no próprio exército egípcio, preparado exclusivamente para a repressão interna. E um dos equívocos, mas não o maior, consistiu em confiar na URSS.
A URSS estava perfeitamente de acordo com os EUA em manter a hegemonia do Estado de Israel a qualquer custo. Inclusive concordava que o poderio militar dos Estados árabes não devia ser elevado a um nível sequer próximo ao do Estado de Israel. As armas enviadas pela URSS ao Egito e à Síria sempre foram de segunda linha e nunca seguidas de um adequado treinamento. Houve até a preocupação de não pôr em perigo excessivo a aviação de guerra israelense. Mísseis antiaéreos eficientes só foram enviados ao Egito depois de consumada sua derrota na guerra de 1967. Quando finalmente enviados, os mísseis foram acompanhados de técnicos russos, encarregados de operá-los, e retirados junto com os técnicos em 1970. E quanto à preparação tática, a ajuda dos conselheiros militares russos no Egito foi, para dizer o mínimo, nula. O sistema tático do exército egípcio nunca ultrapassou o da guerra de trincheiras utilizado na Grande Guerra de 1914-1918.
O maior equívoco, porém, foi a pretensão de vencer o Estado de Israel sem apoiar-se na resistência do povo palestino. O lado trágico desse equívoco apareceu quando Nasser negociou a liquidação da resistência palestina em troca da devolução da região do Sinai, ocupada pelo Estado de Israel em 1967. Em maio de 1970 Nasser, com suas raízes históricas no islamismo popular já destruídas, abandonou o sonho do Egito-potência liderando uma falsa “nação árabe” concebida por oficiais autoritários e reencontrou-se com os velhos hábitos de vassalagem do exército egípcio nos últimos meses de sua vida. Fez um apelo ao presidente dos EUA, que respondeu em julho com o Plano Rogers, oferecido ao Egito, à Jordânia e à Síria, propondo o fim do apoio desses países aos combatentes palestinos em troca de ajuda econômica e, para o Egito, uma possível devolução dos territórios perdidos em 1967 (faltava convencer o governo israelense). Egito e Jordânia aceitaram sem hesitar a proposta, que àquela altura desejavam. Imediatamente foram dispersadas as organizações de combatentes palestinos que se abrigavam no Egito; as da Jordânia foram exterminadas em setembro desse ano (Setembro Negro, 4 mil palestinos mortos).
Essa negociata foi consequência, em parte, da hostilidade dos oficiais dos exércitos vassalos ao movimento popular islâmico e, em parte, do fracasso da tentativa de apoiar-se na URSS. Sem o apoio da URSS aos rebeldes rompidos com os movimentos populares, só restava o retorno à vassalagem tradicional.
Nasser, reconheça-se, conseguiu para seu sucessor (Anuar Sadat, outubro de 1970) uma recompensa digna da importância do Egito no sistema de vassalagem do Oriente Próximo: Sadat recebeu uma licença especial para atacar de surpresa as linhas israelenses no Canal de Suez (1973), com limite pré-fixado (avanço de 100 quilômetros no máximo); e, após longas peripécias diplomáticas, a devolução da região do Sinai foi obtida em 1982. Ajudou muito o interesse da Europa e dos EUA na reabertura do canal, impossível enquanto este (com navios afundados bloqueando seu curso) fosse fronteira de dois Estados em guerra.
Para o movimento islâmico popular do Egito, a normalização da velha vassalagem, agora diretamente controlada pelos EUA, foi sentida como um pequeno alívio, pois a ala filo-comunista do nasserismo sempre fora a mais hostil à religiosidade militante. Sadat, logo no início de seu mandato, afrouxou a repressão e procurou interlocutores entre os Irmãos Muçulmanos moderados. Os moderados retomaram suas publicações a partir de 1976. Na al-Azhar, correntes mais radicais são favorecidas pelos estudantes, mas são apenas vigiadas à distância. Entretanto, a repressão permanece sem mudança no campo, onde esporadicamente ocorrem conflitos armados, principalmente no Alto Egito, e nos bairros pobres das cidades, de onde vem a maioria dos militantes que enchem as prisões.
No conjunto da Área Arábica, o resultado até 1970 significou uma vitória parcial para os EUA. Parcial porque a repressão aos combatentes palestinos do Egito e da Jordânia simplesmente deslocou-os para outras áreas, sem interromper sua expansão e aperfeiçoamento militar, que a guerra de 1967 impulsionara. De modo que o fim da rebelião resolveu só meio problema para os EUA. Por isso o retorno à paz com os rebeldes arrependidos colocou na ordem do dia um projeto para toda a área de vassalagem, visando à destruição do que restava das organizações de combatentes palestinos. O Setembro Negro fora só o começo.
Para os povos do mundo arábico, o fim da rebelião significou o encerramento de um ciclo de agitação social inscrito numa perspectiva de integração ao Ocidente. O fracasso da inconsistente afirmação “árabe” fez com que as camadas sociais médias ocidentalizadas, que haviam constituído o corpo principal da rebeldia, caíssem num conformismo defensivo, buscando preservar seu nível de vida. Mas para os detentores do poder nos Estados do mundo arábico reconciliados com o império americano, significou assumir decididamente a carreira de cão de guarda de seus próprios povos. A ditadura egípcia é o caso mais brando dessa carreira, graças à maior base de sustentação do regime, devido à reforma agrária parcial e aos benefícios alcançados pela classe média sob o governo Nasser. Os casos mais extremados ocorrem no Iraque e na Síria, onde se instalaram ditaduras sanguinárias após um ciclo de rebeldia mais curto e menos desenvolvido do que o do Egito.
4.1.2. O Iraque atual corresponde a um território ocupado pelos ingleses em 1918-1920, que inclui, grosso modo, três províncias do antigo Império Otomano bem diferentes: Mossul (no Norte), habitada principalmente por curdos, Bagdá, de população majoritariamente sunita, e Basra (na região costeira do Golfo Pérsico), predominantemente xiita. Só as duas últimas províncias faziam parte do Iraq Arabi, região (e não nação) historicamente integrante do mundo arábico. A província do Norte abrange territórios do Curdistão, onde vivem povos que falam línguas do grupo iraniano. Essa heterogeneidade pesou forte na história do Estado Iraquiano criado pelos ingleses. Até os comunistas, que defendiam a integridade da nova “nação” iraquiana formalmente independente em 1932, não puderam evitar a divisão de seu partido em dois “ramos”, xiita e sunita, nem evitar a organização de um partido comunista curdo-iraquiano à parte. Desde as origens do Estado Iraquiano moderno, o conflito étnico tem complicado e entravado permanentemente suas rebeldias contra o Ocidente.
Em 1958, oficiais nasseristas derrubaram o rei Faiçal II do Iraque, neto do rei nomeado pelos ingleses em 1921. Mas o novo chefe de Estado, general Kassem, logo rompeu com o nasserismo e instaurou uma república autoritária, ocidentalizante conservadora. Apesar disso, a reação ameaçadora dos EUA e da Inglaterra, que tinham o rei (assassinado) em grande estima, levou Kassem a buscar o apoio da URSS, com a qual foi feito um acordo em 1959. No ano seguinte, por razões de conspiração interna na equipe de governo, o partido comunista foi colocado na ilegalidade, porém foram mantidas as relações com a URSS. Em 1961 Kassem fundou uma companhia estatal de exploração petrolífera e entrou em conflito com a Iraq Petroleum Company, criada pelos ingleses em 1929. Kassem foi derrubado em 1963 pelo general Aref, chefe de uma conspiração articulada juntamente com a CIA e o Baath. Este participou no novo governo (fevereiro), mas foi alijado do poder em setembro.
O ciclo encerrou-se logo após a derrota na guerra contra o Estado de Israel. Em 1968 tomou o poder Hassan al-Bakr, chefe do Baath, que se tornou partido único. Al-Bakr, precedendo Nasser e o rei Hussein da Jordânia, retornou à vassalagem habitual, apesar da nacionalização da IPC em 1972, levado pela imperativa necessidade de desenvolver a economia. Al-Bakr caiu doente em 1979 e foi substituído por Sadam Hussein, que perseguiu os comunistas e acentuou a repressão sobre os movimentos islâmicos. Em seguida, levou a vassalagem às últimas consequências, dispondo-se a atacar o Irã, onde nesse ano crepitava a chamada “revolução islâmica”, que derrubara o xá Mohamed Reza, amigo pessoal de magnatas americanos e coluna mestra do dispositivo de dominação ocidental no Oriente Médio. A guerra durou oito anos (1980-1988), sem vitória, fazendo 3 milhões de mortos. Em pagamento pelo serviço, Sadam Hussein esperava que os EUA fossem tolerar a “união” que impôs ao Kuwait em 1990. Enganou-se.
Ironicamente, o ataque das potências ocidentais contra o Iraque em 1991 perpetuou Sadam Hussein no poder. Este manteve longe do front a Guarda Republicana, que é o corpo de exército mais preparado e bem armado do Iraque, reservando-a para reprimir os xiitas e os curdos separatistas. Cientes do risco de fragmentação do Iraque, os EUA interromperam o avanço sobre Bagdá e permaneceram imóveis enquanto a Guarda Republicana massacrava primeiro os xiitas no Sul (praticamente na frente das linhas americanas) e depois os curdos. Isso porque os EUA precisam de um Estado unitário e forte no Iraque, capaz de reprimir o movimento islâmico popular e impedir o surgimento de um Estado Curdo independente, considerado inaceitável pelo único aliado do Estado de Israel na região: o governo da Turquia. Mas como a guerra transformou Sadam Hussein num rebelde, passaram a conspirar visando à sua substituição. Entretanto, justamente a guerra do Golfo condenara tal tipo de conspiração ao fracasso. Afinal, Sadam Hussein foi o único chefe de Estado do mundo arábico que, nos últimos 100 anos, enfrentou as grandes potências ocidentais abertamente. Isso basta para que, embora derrotado, lhe seja garantido o apoio da oficialidade do exército, que é onde os EUA podem conspirar para instalar outro ditador sanguinário no poder.
Enquanto prosseguem as tentativas conspiratórias, os EUA mantêm a pressão sobre o Iraque através de bombardeios esporádicos e de uma operação militar chamada Provide Confort, que mantém na região curda uma zona de exclusão, onde é proibida a entrada das forças armadas iraquianas. Os EUA, que em 1988, no tempo do Hussein obediente, assistiram impávidos ao massacre da população curda com armas químicas (produzidas com a ajuda de empresas ocidentais para a guerra contra o Irã), subitamente foram acometidos de preocupações com o conforto dos curdos, mas sempre mantendo os curdos (17% da população) presos contra a vontade ao Estado iraquiano inventado pelos ingleses. Já para a região xiita (50% da população), igualmente massacrada, não há provisão de conforto, porque houve uma revolução no Irã xiita ao lado.
4.1.3. A Síria teve uma primeira experiência com o ilusório apoio da URSS aos povos islâmicos durante a chamada Revolta dos Drusos de 1922-1926. Quando a revolta começou a expandir-se para toda a área do mandato francês, o recém-fundado Partido Comunista da Síria e do Líbano entrou em contato com a Internacional Comunista, via Paris. Finalmente apresentou-se na região um agente da Internacional, fazendo-se chamar “Ernest”, que prometeu o envio de armas aos revoltosos. Segundo Pierre Broué, as armas, “por razões ignoradas não chegam a seu destino” (op. cit. páginas 392-4). Certamente deve ter havido dificuldades materiais. Mas é lícito conjecturar que, para muitos burocratas do aparelho de Estado da URSS, já em formação avançada, deve ter parecido um absurdo dar uma ajuda militar a uma revolta islâmica na Síria, naquele momento de efervescência independentista nas nações muçulmanas da Ásia Central.
Na Síria, os franceses, ao retirar-se em 1946, deixaram uma república (assim como no Líbano). E tomaram o cuidado de entregar grande parte da máquina administrativa aos alauitas (corrente sunita minoritária), mais conciliantes com o Ocidente. O Baath chegou ao poder em 1957, através de eleições, em aliança com os comunistas. No mesmo ano foi feito um acordo com a URSS. Em 1963 houve um golpe de Estado que fez do Baath partido único. Em 1970, o ano do Plano Rogers, tomou o poder Hafez Assad, chefe de uma nova ala do Baath, firmemente controlada pelos alauitas. Foi implementado um processo de “normalização” das forças armadas, abaladas pelo período de rebeldia que findava. Acentuou-se a repressão sobre o movimento popular islâmico, que se revoltou em 1979. Travou-se uma verdadeira guerra civil, durante a qual ocorreu o massacre de Hamá (1982). As estimativas de mortos em Hamá variam entre 4 mil e 15 mil (o que dá uma ideia da dificuldade de contar mortos na Síria); mas em Alepo é amplamente sabido que houve mais de 20 mil mortos. Os comunistas foram tratados com menos rudeza, porque Assad não queria romper o acordo com a URSS, para poder manter-se fora do novo enquadramento comandado pelos EUA. Isso porque tinha uma pendência a resolver: o Líbano.
4.2. Segunda fase: expulsão dos combatentes palestinos e destruição do Líbano (1970-1987)
Os fatos relevantes desta fase ocorreram durante a guerra civil libanesa (1975-1990). O Líbano atual tem raízes históricas heterogêneas, em parte ligadas ao mundo bizantino, em parte ao mundo arábico. As raízes bizantinas deram origem aos povos cristãos (maronitas, melquitas, ortodoxos e católicos) que habitam principalmente o norte do país. As raízes arábicas originaram os povos xiitas (em parte drusos) e sunitas que ocupam mais o centro e o sul. Isso simplificando muito, pois o mapa “étnico” é um mosaico intrincado. De qualquer modo, na antiga wilaiet (província) de Beirut, quando o Império Otomano entrou em decadência no século XIX, desenvolveu-se uma tendência à constituição de duas nações distintas: uma nação propriamente libanesa, formada pelos cristãos, ao redor da área do Monte Líbano (antigo distrito otomano do Líbano), e uma nação muçulmana, formada por xiitas e sunitas, no antigo distrito otomano de Akkon, abrangendo a área a sul do distrito cristão e também partes da Síria e da Palestina atuais.
As duas nações não conseguiram completar sua formação porque os otomanos eram contra a nação cristã; e a potência europeia que depois passou a dominar a área (a França) era contra a nação muçulmana. Consequentemente, os povos heterogêneos da antiga província de Beirut tiveram que permanecer amarrados, embora rejeitando fundir-se. E a palavra “Líbano” passou a significar até hoje mixórdia nacional.
O parto do Estado libanês desejado pelo Ocidente começou no século XIX, sob o comando da França, inicialmente (anos 30) intermediado pelo wali (governador) do Egito, Mohamed Ali. A partir de 1860, os franceses passaram a agir por meio de intervenções militares diretas, apoiando os maronitas em suas contínuas guerras com os drusos. A ideia fixa dos franceses era criar um grande Líbano cristão, abrangendo todos os territórios da província otomana de Beirut. Após muitas guerras e massacres, tendo-se verificado a inviabilidade do grande Líbano cristão, a França, já tendo que aceitar a interferência dos EUA, acabou contentando-se com o Estado tipo colcha de retalhos instaurado em 1946. Era o possível sem romper a rede de compromissos entre as potências signatárias dos Acordos de Ialta nem os laços atados com os vassalos arábicos. Além disso, naquele momento os EUA viviam a fugaz política rooseveltiana do fim da guerra, que consistia em ceder um pouco em troca de paz duradoura.
E, surpreendentemente, esse Estado, baseado num compromisso aparentemente precário, terminou funcionando bem. Por duas razões: em primeiro lugar, porque os cristãos não estavam na situação de vassalos, mas sim na de autênticos cooptados pelo Ocidente, sentindo-se todos, desde os mais ricos aos mais humildes, envolvidos numa espécie de missão propagadora da civilização ocidental na região. Em segundo lugar, porque para eles se abriu uma oportunidade excepcional de tirar proveito de sua proverbial aptidão para o comércio e as finanças e de suas ligações com o Ocidente e o Oriente. Esses foram os fatos que, combinados com a prosperidade capitalista do 2º pós-guerra, chegaram a fazer do Líbano o maior centro comercial e financeiro do Oriente Próximo e Médio.
Enquanto isso pôde funcionar, o Líbano foi um Estado estável, apesar de ter o poder partilhado por inimigos mortais. A estabilidade do arranjo libanês foi suficientemente sólida para atravessar incólume a curta guerra civil que estourou subitamente em 1958 (momento de nasserismo ascendente). E o presidente Chamoun pôde se dar ao luxo de chamar fuzileiros navais dos EUA para defender seu governo ameaçado, sem por isso perder sua legitimidade política.
O arranjo político libanês também foi suficientemente sólido para resistir bem à implantação violenta do Estado de Israel em suas fronteiras. Neste caso, o expediente foi tolerar os acampamentos de refugiados palestinos acompanhados de suas organizações combatentes, para não acirrar o antagonismo com as facções muçulmanas que partilhavam o governo. Esse expediente funcionou bem mesmo durante a guerra de 1967. Por via das dúvidas, o governo libanês declarou guerra, mas não moveu palha contra o Estado de Israel. O resultado da guerra, para o Líbano, foi uma nova onda de refugiados e combatentes palestinos em seu território, agora muito mais politizados e aguerridos. Mas esse fato, por si só, não trouxe instabilidade ao Estado Libanês, mesmo porque os combatentes palestinos não tinham interesse em desestabilizar o Estado que os abrigava.
O bloco de poder que governava o Líbano só foi desestabilizado quando os EUA exigiram dele a aplicação do Plano Rogers, que implicava a expulsão dos combatentes instalados nos acampamentos de refugiados palestinos. Já foi mencionado acima como isso foi alcançado no Egito e na Jordânia. No Líbano, porém , forçar a aplicação do mesmo plano significava destruir o arranjo político que mantinha o Estado de pé.
É impossível acompanhar aqui todas as peripécias da guerra que destruiu o Líbano. O mais importante é distinguir as duas etapas desse processo de destruição.
A primeira etapa foi a do Plano Rogers levado às últimas consequências. De início (1970-1975), consistiu essencialmente num jogo de pressões sobre os governos libanês e sírio, para levá-los a reprimir os palestinos. Diante da resistência do bloco de poder libanês, os EUA começaram a apoiar a militarização das facções cristãs mais agressivas, assim empurrando lentamente o Líbano para a guerra civil. Mais difícil era fazer o jogo de pressões funcionar com a Síria. Porque Hafez Assad, embora rompido com o movimento islâmico interno e propenso a colaborar em algum projeto de disciplinamento das organizações palestinas, não estava disposto a aceitar a retirada de todo poder às facções muçulmanas libanesas ligadas aos palestinos para ficar, no final, com mais um Estado forte e hostil em suas fronteiras.
Enquanto perdurou o impasse, não só foram se desenvolvendo os movimentos palestinos armados, como também, em função do aumento das represálias israelenses e da agressividade das milícias cristãs apoiadas pelos EUA, foram se fortalecendo os laços dos libaneses muçulmanos com os palestinos. A guerra civil estourou em 1975, com enfrentamentos entre milícias cristãs e muçulmanas. Beirute transformou-se num campo de batalha.
Em 1978, o “Movimento dos Deserdados”, que organizava os libaneses xiitas da camada social mais pobre sem objetivos militares, cindiu-se, dando origem ao movimento Amal (“Esperança”), de forte vocação guerreira. E a coisa se complicou ainda mais quando, em 1979, o Irã do aiatolá Khomeini lançou uma operação para assumir o controle do Amal. A interferência da Síria fez com que em 1982 ocorresse uma nova cisão, que deu origem ao Hezbollah (“Partido de Alá” em farsi), patrocinado pelo Irã, enquanto o Amal passou gradualmente ao controle sírio.
A resposta dos EUA foi, por um lado, lançar seu novo cão de fila, Sadam Hussein, contra o Irã; e, por outro, dar sinal verde para a escalada nas ações militares contra o Líbano e a Síria ao Estado de Israel. Este, após inúmeros bombardeios e ataques limitados, invadiu o Líbano até Beirute em 1982. A invasão foi vitoriosa. Os combatentes palestinos foram obrigados a abandonar o Líbano. Porém, ao mesmo tempo, aprofundou-se a guerra entre as milícias libanesas muçulmanas e cristãs. E o novo problema passou a ser como terminar a guerra civil. Começou-se por chamar uma “força de paz” da ONU, com participação de tropas dos EUA. A medida logo se revelou insuficiente. Em 1983, num atentado suicida do Hezbollah, foram mortos cerca de 300 soldados da força da ONU (dos quais 259 americanos).
Àquela altura, a solução de força para a guerra civil libanesa seria entregar todo o Sul do Líbano até Beirute ao Estado de Israel. A dificuldade era sustentar essa solução a longo prazo. Seu efeito imediato seria fragilizar os recém-realinhados vassalos, Jordânia, Egito e o então precioso lacaio Sadam Hussein (ainda em guerra com o Irã), para não falar na quebra dos compromissos com a Arábia Saudita, peça-chave do dispositivo político ocidental no Oriente Próximo.
Consequentemente, o presidente dos EUA optou em 1984 pela retirada das tropas do Estado de Israel, em troca da permissão de reter uma “zona de segurança” no território libanês limítrofe. E, para que a retirada israelense não fizesse a guerra civil entrar em nova erupção, autorizou a Síria a “manter a ordem” no país. Imediatamente Hafez Assad impôs a anulação do acordo de paz que o governo cristão assinara com o Estado de Israel e começou o desarmamento de todas as milícias libanesas em conflito, o que significou, na prática, a tutela síria sobre o Líbano inteiro.
Assim foi aberta a segunda etapa da guerra civil libanesa. Agora eram os cristãos as vítimas principais. A resistência dos cristãos ao exército sírio durou até 1990, quando foram desarmadas as últimas milícias maronitas. E desse modo foi completada a destruição do Estado Libanês. Suas principais forças políticas participantes, tão trabalhosamente articuladas em 1945-1946, passaram a seguir caminhos separados. Os cristão submeteram-se à Síria, na esperança de que uma nova intervenção ocidental restaurasse sua antiga posição hegemônica; e os muçulmanos passaram em parte a aceitar a tutela síria e em parte a ligar-se ao Hezbollah, procurando apoiar-se no Irã para manter certo grau de independência. O Líbano voltou assim a ser o país sem Estado unitário anterior aos anos 1920.
Por outro lado, a ligação de parte importante das forças políticas libanesas ao Hezbollah terminou se tornando o maior problema militar para o Estado de Israel que, após sofrer numerosas perdas de soldados sob o ataque da eficiente guerrilha xiita do Sul do Líbano, foi obrigado a retirar-se de sua “zona de segurança” em 2001 (maio).
O problema que ficou para os cristãos libaneses não é tanto uma questão de reconstrução material. É principalmente a questão do lugar do Líbano na economia do Oriente. Um Líbano sob controle sírio não pode ocupar o mesmo espaço econômico antes ocupado sob hegemonia cristã. Inclusive porque o espaço ocupável enquanto Estado muçulmano já está tomado pelo novo entroncamento dos grandes negócios do Oriente, instalado em Qatar, Bahrein e Emirados Árabes do Golfo Pérsico. A tutela da Síria, país em litígio com o Estado de Israel e classificado pelos EUA como “Estado terrorista”, simplesmente condenou o Líbano à marginalização econômica.
Para os EUA, o proveito tirado da guerra civil libanesa limitou-se a uma vitória incompleta sobre os combatentes palestinos, que tiveram que se dispersar. Mas os não-combatentes permanecem e atualmente seu estatuto legal é de “acampados” (não têm direito a adquirir imóveis), aguardando o retorno à Palestina. O Hezbollah foi reconhecido como partido legal e a data de 23 de maio de 2001 (retirada das tropas israelenses de sua “zona de segurança”) foi proclamado “Dia da Libertação”. O exército sírio deixou a zona desocupada inteiramente nas mãos do Hezbollah, que possui 130 mil homens em armas com o apoio do Irã e acha que a área desocupada deve ser maior.
A grande vitória do imperialismo americano nesta fase das guerras na área de vassalagem foi a restauração de seu controle sobre todos os Estados rebelados. A exceção síria foi parcial. Hafez Assad, embora enfurecendo os EUA com sua recusa em interferir na atividade do Hezbollah, não deixou de fazer seu trabalho de repressão contra o movimento islâmico interno ligado aos combatentes palestinos, nem de colocar numa camisa de força os combatentes autorizados a permanecer na Síria, nem de pactuar com a expulsão dos que se encontravam no Líbano. Razão pela qual ganhou de presente a tutela do Estado libanês, por motivo de força maior, apesar de a Síria estar definida como “Estado terrorista”, em função da estratégia americana protetora do militarismo israelense. Mas o balanço geral da fase não foi brilhante para os EUA: este perdeu seu grande amigo fiel no Oriente Médio, o xá Mohamed Reza do Irã, sofreu o fracasso de seu ataque contra a Revolução Iraniana por intermédio de Sadam Hussein e viu o fortalecimento militar do Hezbollah, agora amplamente apoiado pelos muçulmanos libaneses; além disso, fato não menos importante, pôs a perder um centro de difusão da civilização europeia no Oriente, o Líbano. Um consolo para tais dissabores terminou vindo de fora do mundo islâmico, da URSS, que em 1985 iniciava seu desmoronamento em meio às tentativas de reforma da perestroika.
4.3. Terceira fase: Intifada e ressurgência islâmica (1987-2001)
O acontecimento que marcou a abertura de uma nova fase do processo de guerra na área de vassalagem do Ocidente foi a Intifada (“Levante”), que consistiu justamente no levante dos palestinos dos territórios ocupados pelo Estado de Israel desde a guerra de 1967.
A Intifada é a resposta própria do povo palestino dos territórios ocupados à conivência geral em forçá-los à submissão após a dispersão dos combatentes do Líbano. Razão pela qual o levante ocorre de modo inteiramente espontâneo, por fora de todas as organizações políticas surgidas na etapa anterior, uma vez que todas eram patrocinadas ou influenciadas por algum governo vassalo ou por alguma organização política ocidental. A Intifada teve depois desdobramentos, tornando-se necessário distinguir um primeiro momento do processo revolucionário que a impulsiona, que vai até o ano 2000.
4.3.1. O Levante palestino explodiu em dezembro 1987 e foi uma verdadeira revolução, que se iniciou na Faixa de Gaza e se estendeu em seguida para a Cisjordânia. Rapidamente se formaram espontaneamente comitês populares, de aldeia, de quarteirão e de acampamento. A entidade palestina reconhecida oficialmente no exterior, a Organização de Libertação da Palestina (OLP), dirigida por Yasser Arafat, correu atrás dos acontecimentos e organizou a Direção Unificada da Intifada em 4 de janeiro de 1988, que conseguiu obter a adesão formal dos comitês populares, mas sem um controle efetivo dos mesmos. O movimento era basicamente pacífico, consistindo principalmente em manifestações com lançamento de pedras contra as forças repressivas do Estado de Israel.
A brutalidade da repressão (250 palestinos mortos nos oito primeiros meses e milhares de prisioneiros) empurrou o movimento para a radicalização. Apareceram bombas incendiárias de fabricação caseira nas mãos dos palestinos e soldados e civis judeus foram esfaqueados. Mas o primeiro judeu foi morto em 20 de março de 1988, após a Intifada suportar o assassinato de dezenas de palestinos desarmados, além de cenas de quebra de mãos de meninos a marteladas por soldados israelenses. É nesse contexto que surgiu o Hamas, nome derivado da sigla em árabe do Movimento de Resistência Islâmica, que passou a concorrer com a OLP e a Direção Unificada da Intifada na organização do movimento popular, a partir de agosto de 1988. O Hamas pôde crescer porque cresceu a consciência de que só a luta com todos os meios possíveis pode ser eficaz contra o plano americano de reduzir todos os palestinos à condição de “árabes de Israel”, com a destruição total da Nação Palestina.
O objetivo da Intifada não é mais a destruição do Estado de Israel, fanfarronicamente prometida pelos chefes de Estado que traíram o povo palestino. É apenas a criação de um Estado palestino na área ocupada pelo Estado de Israel em 1967. E é também chamar a atenção da opinião pública ocidental, para levá-la a pressionar os EUA pelo levantamento de seu bloqueio sistemático ao cumprimento da resolução 242 do Conselho de Segurança da ONU, de 22 de novembro de 1967, que determinou uma devolução de territórios ocupados.
Em se tratando do Conselho de Segurança da ONU, uma resolução favorável aos palestinos não poderia vir sem uma cilada. O texto reza que o Estado de Israel deve evacuar as áreas ocupadas durante a guerra, retirando-se para “fronteiras seguras”. Os palestinos, ex-súditos do rei da Jordânia que, depois de abandonados por seu rei (este renunciou à área perdida), ficaram sem exército, não reivindicam fronteiras seguras. Reivindicam apenas uma fronteira. Tecnicamente, dada a disparidade de forças e o inquebrantável apoio dos EUA à ocupação israelense, a reivindicação palestina é inútil. Mas tem tido grande importância para o mundo islâmico. Não para os vassalos coniventes com o martírio palestino, mas sim para as massas populares, inclusive as camadas sociais médias. Porque, ante a frente única das nações ocidentais em torno da aceitação do veto americano a qualquer medida contra o Estado de Israel, vão se perdendo todas as ilusões nas falsas promessas do Ocidente, inclusive dos partidos ditos de esquerda.
Essa é a situação que levou ao ressurgimento do islamismo como força ideológica dominante nas lutas contra o sistema de dominação na área de vassalagem do Ocidente. Antes não era assim. Basta lembrar a importância dos movimentos laicos nos anos 1950-1960, como o dos oficiais do exército egípcio e o Baath, cuja ascensão fora acompanhada pela penetração dos partidos comunistas entre as camadas sociais médias que os apoiaram. Aliás, a impressão dominante entre os observadores externos até o fim dos anos 1970 era de que o islamismo, rigidamente defendido pelos maiores aliados dos EUA, Arábia Saudita e Paquistão, fazia o jogo do imperialismo ocidental.
A Intifada expressa de forma concentrada esse amadurecimento, que foi levando ao abandono das tentativas de entrosamento com os movimentos anti-imperialistas ocidentais e seus partidos. É muito significativo que o Hamas não seja um partido político. É um movimento popular forjado diretamente na luta contra a repressão do Estado de Israel à Intifada, que apenas se define como islâmico. Porque o povo palestino, depois de meio século de espera em vão por um resultado efetivo das saídas propostas pelos movimentos ocidentais “avançados”, terminou reduzido à pura afirmação religiosa como nação islâmica, frente ao Império americano que, no Ocidente, consegue facilmente legitimar sua política genocida na Palestina apresentando-se como defensor dos direitos religiosos dos judeus.
E é esse justamente o fator final, além da orientação antimuçulmana da URSS e da infinita tolerância ocidental para com o apoio americano ao militarismo do Estado de Israel, que levou ao reagrupamento dos povos oprimidos do mundo islâmico em torno de suas raízes religiosas: a destruição das organizações políticas de refugiados palestinos. Estas eram as principais veiculadoras do pensamento anti-imperialista elaborado no Ocidente. Após o desnorteio geral dos partidos e organizações operárias ocidentais sob o impacto da queda do Muro de Berlim, as correntes políticas palestinas a eles ligadas ficaram entregues a si próprias.
Os movimentos anti-imperialistas do Ocidente, que sempre estiveram ligados ao anarquismo e ao marxismo, tinham o defeito comum de confiar na generosidade dos revolucionários ocidentais, caso chegassem ao poder, para libertar os povos orientais tanto dos opressores europeus como de seus próprios opressores nativos.
O marxismo, corrente com influência significativa na opinião pública ocidental, que produziu numerosas teses sobre o imperialismo, nunca se deu ao trabalho de distinguir o imperialismo econômico em geral, vigente em toda a periferia do mundo capitalista, do imperialismo vigente na área de vassalagem do Ocidente, onde a dominação econômica se combina com uma vigilância política e pressão militar constantes (a militarização do Estado judeu é para isso), cujo objetivo é impor nesses países os chefes e regimes políticos mais capazes de enfrentar a revolta permanente das massas populares, inconformadas com uma ingerência externa que bloqueia sua ascensão social e oprime sua alma. Ao obscurecer essa realidade brutal, encaixando-a num imperialismo econômico genérico extraído do esquema leninista, os marxistas revelaram que, no fundo, nunca superaram a visão superficial paternalista da libertação do Oriente. Mesmo assim o marxismo, particularmente após a Revolução Russa, influenciou bastante as lideranças do mundo islâmico, em parte devido às ilusões destas na ajuda da URSS, mas também devido à identificação espontânea com as lutas anti-imperialistas da América Latina e das colônias portuguesas da África, quando estas ocupavam espaço na imprensa internacional.
Essa influência começou a declinar a partir de meados dos anos 1980, refletindo o início do desmonte da URSS e do subsequente retrocesso geral do movimento operário ocidental. Do que resultou também o desaparecimento de organizações políticas ocidentais que tinham alguma atividade de apoio a certas lutas de povos islâmicos, principalmente a dos palestinos. Entraram assim em dissolução numerosos laços que ligavam as organizações palestinas aos movimentos políticos ocidentais. A importância disso decorre do fato de que as organizações de refugiados palestinos eram as mais cosmopolitas e habituadas a mover-se no terreno das ideias libertárias provenientes do Ocidente. Algumas organizações se declaravam formalmente marxistas. Sua tendência natural era buscar apoio no Ocidente para a defesa dos direitos do povo palestino.
É forçoso reconhecer que a busca das organizações palestinas fracassou. Os combatentes dos acampamentos de refugiados foram dispersados e nunca se criou no Ocidente um movimento de opinião pública capaz de forçar um governo sequer a reconhecer o direito do povo palestino de lutar com todos os meios possíveis contra o genocídio que o ameaça. Sequer chegou a ser formada uma opinião pública ocidental capaz de exercer uma pressão política significativa a favor do povo palestino. Isso pode não ser culpa das organizações anti-imperialistas do Ocidente. Mas o fato concreto é que para os palestinos, como para os povos islâmicos em geral, o Ocidente mostrou sempre uma frente coesa, sem jamais gerar uma corrente de opinião capaz de desmascarar a política imperial dos EUA na área islâmica, como foi desmascarada sua política no Vietnã.
A ressurgência islâmica na área de vassalagem do Ocidente já estava sendo impulsionada, desde o início dos anos 1970, pela desilusão das camadas sociais médias dos países islâmicos durante as rebeliões que prometeram uma modernização ocidentalizante com soberania nacional. O sentimento geral que resultou dessa experiência é de que nada de bom pode vir do Ocidente. Por exemplo, as ideias sobre direito constitucional importadas do Ocidente terminaram servindo de cobertura jurídica legal para os piores déspotas, muito mais arbitrários do que os antigos sultões e ainda mais subservientes às potências ocidentais. Assim, enquanto os acadêmicos ocidentais, secundados por colegas oriundos de países vassalos formados nas mesmas universidades, elaboravam volumosas teses sobre o “atraso” ou o “feudalismo” nos países islâmicos, as próprias camadas sociais ocidentalizadas desses países iam fazendo a amarga experiência, já feita pelas massas populares, de que não há inovação jurídica ou política vinda do Ocidente que não traga consigo uma dose maior de tirania e mais amarras ao jogo das potências imperialistas.
É dessas experiências que surgiu a tendência ao retorno à Chariá, para substituir as instituições jurídicas imitadas do Ocidente. Hoje isso não é uma reivindicação de movimentos rurais ou urbanos incultos, mas sim de intelectuais, muitos deles egressos de universidades europeias. E o aspecto mais importante dessa tendência não é o corpo de preceitos da Chariá, que é bastante controverso entre os juristas islâmicos, mas sim a ruptura total com o constitucionalismo ocidental e com o Ocidente como um todo, implícita na decisão de adotar a Chariá.
4.3.2. A Intifada deu um salto qualitativo em 28 de setembro de 2000, quando o criminoso de guerra Ariel Sharon, responsável pelo massacre de mulheres e crianças palestinas no Líbano em 1982, fez um acintoso “passeio” pela Esplanada das Mesquitas em Jerusalém, cercado de policiais. O povo palestino explodiu em protestos e, a partir desse dia, a Intifada assumiu o caráter de guerra popular. A imprensa europeia, geralmente atenta ao Oriente Próximo, não deixou de perceber a virada política. Apareceram manchetes com títulos do tipo “agora é a guerra!”. Mas a hipocrisia obriga a grande imprensa ocidental a não distinguir na Palestina o agressor do agredido. A explosão revolucionária palestina foi apresentada apenas como explosão de “ódio”. Falar no assunto reconhecendo a reação desesperada de um povo lentamente triturado até o aniquilamento é um verdadeiro tabu. E, para encher o espaço destinado ao assunto, não faltaram especialistas tranquilizadores para explicar, comparando capacidades militares, que os palestinos não tinham a menor chance de vencer. Como se o acontecimento essencial fosse de ordem militar.
Iniciou-se assim a Intifada da Grande Mesquita, ou Intifada dos Mártires. As pedras e facas passaram a ser substituídas por bombas atadas ao corpo de militantes suicidas. O ímpeto da indignação popular acabou de vez com o poder da Direção Unificada da Intifada e o controle de Arafat sobre o Levante. A nova direção inquestionável é o Hamas, porque a mobilização pacífica se havia revelado ineficaz. A forma em que se apresenta essa guerra entre um povo sem exército e o Estado mais militarizado do mundo fala por si só da força espiritual dos palestinos. É difícil imaginar um muçulmano de qualquer país que não se sinta comovido com o heroísmo desse povo. É de se supor que um cristão humanista ou um ateu também possa se comover.
No Ocidente, porém, reina a insensibilidade da opinião pública, submergida por uma avalanche de informações supostamente neutras sobre “a questão palestina”. Evidentemente, o público ocidental de hoje, bastante despolitizado, que já tem problemas suficientes a enfrentar com a perda de conquistas econômicas e sociais que sofre desde os anos 1980, dificilmente enfrentará as dificuldades de mobilizar-se contra a violência patrocinada pelos EUA no distante Estado de Israel, solidamente apoiado por todos os governos ocidentais. Para não falar nos inconvenientes de mobilizar-se a favor de um povo muçulmano, precisando explicar que o tão familiar EUA, tão “politicamente correto” em relação às chamadas “minorias”, é o responsável integral pela violência do Estado de Israel. Não é culpa do público. Mas a história não precisa de culpados para prosseguir seu movimento. E este terminou cavando um abismo entre o mundo islâmico e o Ocidente. O abismo não foi cavado pela intolerância religiosa do público ocidental ou por seu desconhecimento dos costumes dos muçulmanos, como pretende hipocritamente a grande imprensa. O abismo foi e continua sendo cavado em grande parte pelo tratamento dado por essa mesma imprensa aos militantes islâmicos suicidas, que no Ocidente são chamados de “terroristas”, enquanto no mundo islâmico, diga o que disser a imprensa oficial, todos sabem que são mártires.
Evidentemente, a formação dessa nova unidade do mundo islâmico em torno da rejeição ao Ocidente vem trazendo grandes perigos para a continuidade do sistema de vassalagem, já em estado de risco desde a Revolução Iraniana, em 1979. Fatores de agravamento do risco foram, nos anos 1990, a consolidação de um regime islâmico hostil ao Ocidente no Sudão, o fracasso da operação de “pacificação” (organizada sob o manto da ONU) na Somália e, caso mais sério, o surgimento de outro regime islâmico hostil no Afeganistão, em meio a um processo revolucionário que ameaçava contaminar os novos Estados da Ásia Central (de maioria muçulmana) nascidos da fragmentação da URSS.
É certo que em 1998, quando foi fabricado o caso Bin Laden (acusado de crimes até hoje sem provas convincentes), e em seguida bombardeados o Afeganistão e o Sudão, este por suspeita de cumplicidade provadamente inexistente em atentados contra as embaixadas americanas na Tanzânia e no Quênia, os EUA já estavam decididos a lançar uma ofensiva militar contra todos os focos de rebeldia do mundo islâmico. A Intifada dos Mártires transformou tal decisão em questão urgente. Pois esta guerra desigual tem o poder de aumentar a tensão entre povos e governos vassalos em todos os países islâmicos.
5. O império policial
Os atentados de 11 de setembro de 2001 em Nova York e Washington foram imediatamente aproveitados pelos EUA para colocar todos os chefes de Estado do planeta em ordem-unida sob seu comando na repressão da revolta dos povos islâmicos, cujo desenvolvimento lógico implica a instauração de uma nova ordem mundial.
A ordem mundial anterior, que falecera com a queda do Muro de Berlim em 1989, foi a de Ialta, que dividira o mundo em duas grandes zonas de influência, a dos EUA e a da URSS, com a responsabilidade pela manutenção da estabilidade política nas zonas respectivas. Durante a maior parte da vigência da ordem de Ialta, a grande preocupação dos EUA fora, inicialmente, a estabilização política da Europa e, em seguida, reprimir as lutas de libertação nas colônias e os movimentos anti-imperialistas na periferia econômica do Ocidente. Nessa época, a luta dos povos islâmicos por sua independência efetiva fora uma preocupação secundária. Somente a partir de 1979, com a queda do xá do Irã, tal ordem de prioridades começou lentamente a mudar. Sendo que a partir dessa época a mudança passou a ser empurrada também pelo começo da reentrada da China e da URSS na área de ação do capital financeiro internacional.
O retorno da China e da Rússia ao circuito capitalista centralizado pelos EUA pareceu criar um problema de sentido (ou fundamentação ideológica) para a hegemonia militar dos EUA. Antes, o sentido era a necessidade de defender o sistema econômico vigente na zona de influência americana, ameaçado pelo operariado dos países industrializados e pelos movimentos de libertação nacional, que a ele contrapunham os exemplos divergentes da URSS e da China. Tal ameaça deixou de existir no início dos anos 1980, logo seguida pelo declínio da URSS como potência concorrente. Em consequência, o poderio militar americano parecia tornar-se parcialmente supérfluo.
Na realidade, para os que comandam o Império americano, a única coisa que se tornara supérflua era a acumulação de um poderio nuclear “dissuasório” contra a URSS. Quanto ao restante do poderio militar, a grande mudança incidiu sobre o tipo de armamento a ser priorizado. Sem prejuízo da supremacia tecnológica em armas atômicas e mísseis de longo alcance, da qual o Império americano continua extremamente cioso, a nova prioridade passou e ser o armamento para enfrentar inimigos menos sofisticados e intimidar populações civis mal armadas. Noutros termos, a máquina militar dos EUA, que nunca fora um exército de guerra civil contra o próprio povo americano, passou gradualmente a preparar-se, após 1979, para guerras civis de povos do mundo revoltados contra a opressão imperial. Razão pela qual a designação dos novos alvos de guerra precedeu a queda do Muro de Berlim. Já durante os anos 1980 foi definido um grupo de “Estados terroristas”, cuja lista, antes de incluir o Afeganistão, já apontava a Líbia, o Sudão, a Síria, o Irã, o Iraque (desde 1991) e a Somália (que hoje é um Estado fragmentado); todos pertencentes ao mundo islâmico e todos inimigos do Estado de Israel, com exceção parcial da Somália, que tem mais de uma política, conforme o lugar.
Portanto, a definição do “terror” como o grande problema do planeta já estava pronta bem antes dos atentados de Nova York e Washington. E a guerra contra os Estados islâmicos insubmissos já estava declarada. Ou será que declarar-se no direito de bombardear outros Estados oficialmente definidos como “terroristas” não é uma declaração de guerra? Só faltava um pretexto suficientemente chocante para impor a todos os parceiros e clientes ocidentais, assim como aos vassalos obedientes, a aceitação de ações militares em grande escala.
A escolha do Afeganistão como primeiro alvo da nova escalada militar nada tem a ver com o asilo dado a Bin Laden, cuja entrega a um tribunal internacional poderia ter sido obtida pela pressão dos mesmos países islâmicos que deram sua colaboração à operação de guerra. O ataque americano foi determinado pela combinação de dois fatos: o primeiro foi a dissolução da URSS em 1991, que abriu a possibilidade de exploração econômica da Ásia Central (com grandes jazidas de gás natural) e colocou a necessidade de uma vigilância direta sobre os Estados islâmicos da área, cujos laços com a Rússia foram enfraquecidos pela caótica adoção de relações capitalistas dominadas por grupos mafiosos. O segundo fato foi o surgimento de um Estado soberano antiocidental no Afeganistão em 1996, que ameaçava criar grandes obstáculos às ambições dos EUA na região. Por isso, assim que passou o pânico momentâneo causado pela dimensão surpreendente dos atentados de Nova York e Washington, o governo dos EUA já anunciava, com alto grau de “certeza”, que o principal suspeito era Bin Laden e, por via das dúvidas, rejeitava negociações com o governo do Afeganistão, rejeitando também todas as exigências de apresentação de provas das acusações.
O chamamento à ordem-unida mundial “contra o terror”, momentaneamente centrado contra o Afeganistão, foi incontestavelmente vitorioso para os EUA. Mas a vitória não foi a anulação da independência do Afeganistão, vitimado principalmente pela pressão do Paquistão, da Arábia Saudita e do Irã, mas onde nada está resolvido. A vitória foi a aceitação mundial da ordem-unida exigida, sem questionar a arbitrariedade do ataque contra o Estado Afegão independente. Esta é a prefiguração, em estado de esboço, da nova ordem mundial que os EUA estão impondo ao mundo após o 11 de setembro.
No novo cenário internacional, a ONU passa a ter um lugar inteiramente marginal. Para crises na Europa e na Bacia do Mediterrâneo, o Império americano procura servir-se diretamente da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) como força repressiva, política já em ação nos Bálcãs, pelo simples fato de que as potências europeias, que são as que ainda contam para os EUA, já estão na OTAN. Diga-se de passagem que isso significa também uma mudança radical do papel da OTAN, que deixa de ser uma organização de defesa contra forças armadas regulares (as da URSS e seus aliados na época anterior) para tornar-se força repressiva em caso de crises na Europa e adjacências. No resto do mundo, a ONU poderá ser utilizada para a mesma função, desde que isso convenha ao governo americano. Quando este achar que o problema é urgente, a nova orientação imperial é arrebanhar aliados e vassalos para uma ação militar enquadrada pelos EUA, sem maiores considerações para com a ONU, como foi o caso da coalizão ad hoc criada para atacar o Afeganistão.
A instauração de uma nova ordem mundial é o novo sentido histórico da máquina de guerra americana, que perdeu o que restava de sua anterior justificação “defensiva” (isto é, a justificação em termos de defesa contra um adversário equivalente) da época da guerra fria. O novo sentido é a transformação da hegemonia econômica e militar em império universal efetivo. Obviamente, a postura oficial do comando imperial americano ainda é, e certamente continuará sendo, “defensiva”, alegando o direito de garantir a própria segurança. Esta, aliás, é a alegação mais comum na história dos impérios em expansão, quando querem pisotear direitos de povos mais fracos.
Por enquanto, o império deu apenas o primeiro passo. Mas a partida já foi dada. E os desdobramentos dela implicam o desenvolvimento de pressões cada vez mais fortes sobre os povos do mundo inteiro, não apenas os islâmicos. Para compreender as tendências que estão nascendo nesse processo, é preciso examinar separadamente seus efeitos no mundo islâmico e no Ocidente.
5.1. Crise do sistema de vassalagem
O ataque da marinha e da aviação dos EUA contra o Afeganistão contou com a aprovação de todos os Estados do mundo islâmico, além da colaboração direta da Arábia Saudita e dos Estados limítrofes: Irã, Uzbequistão e Paquistão. Os dois últimos cederam bases à aviação americana e o Irã cedeu seu espaço aéreo; a Arábia Saudita, o Irã e o Paquistão pressionaram as facções políticas e as tribos do Afeganistão (e da fronteira paquistanesa) para entrar em guerra contra o Estado independente ao lado da Aliança do Norte, sustentada pela Rússia, e para formar um novo governo submetido aos EUA.
Toda essa colaboração foi prestada com a intenção de, por um lado, limitar a ofensiva americana ao território do Afeganistão e, por outro, facilitar o retorno rápido à normalidade das relações econômicas com o Ocidente. Todos os Estados envolvidos na operação entraram num emaranhado de equívocos, que serão fonte de conflitos mais graves no futuro.
5.1.1. A começar pelo Paquistão, principal responsável pela anulação da independência afegã. Tradicional inimigo da Índia, o Paquistão sempre fez o jogo dos EUA, enquanto a Índia fazia até certo ponto o jogo da URSS, sem deixar de apoiar-se ocasionalmente também nos EUA. O equívoco está em pretender que a Índia continue sendo a segunda opção dos EUA. Acontece que estes já perderam o interesse em favorecer o Paquistão, país fortemente apegado ao islamismo, contra a Índia, majoritariamente hinduísta, cujas relações com a Rússia não mais assustam. Em nome da preservação de uma relação privilegiada já caduca com os EUA, o governo do Paquistão colocou-se em forte antagonismo com praticamente todo o povo, que passou a odiar intensamente os EUA. E é importante notar que este é um fato político inteiramente novo.
O Paquistão, que fez parte da Índia britânica, como todas as ex-colônias teve seu exército e aparelho administrativo moldados pela ex-metrópole, fato que induziu uma adaptação de toda a sociedade aos laços com o Ocidente, por isso mais profundos do que os dos Estados vassalos arábicos e do Irã. Tanto as relações econômicas como as relações políticas se desenvolveram mais com o Ocidente do que com outros países islâmicos; e as forças armadas paquistanesas, criadas sobre bases ideológicas defensoras dessas relações, nunca foram contaminadas pelas rebeliões dos Estados vassalos do Oriente Próximo e Médio. Entretanto, a agressão dos EUA contra o Afeganistão (historicamente ligado ao Paquistão) abriu um processo de demolição dos laços criados no passado colonial. Isso pode ser indiretamente constatado pela súbita popularidade de Bin Laden no país, onde antes era ignorado.
Assim, o primeiro resultado da agressão americana foi empurrar o Paquistão para a zona de turbulência do mundo islâmico. Pela primeira vez o Paquistão está apresentando uma característica típica dos países islâmicos vassalos: uma forte tensão entre as massas populares e o poder estatal. Mudança que significa a ampliação da área de revolta islâmica para um dos maiores países da área, com 140 milhões de habitantes. As ameaças não são pequenas, dada a possibilidade de desagregação das forças armadas, conforme a evolução da guerra no Afeganistão e as tarefas que venham a ser impostas ao Estado Paquistanês pelos EUA.
5.1.2. No que diz respeito aos Estados de população muçulmana ex-integrantes da URSS, no momento os mais afetados são os que têm fronteira com o Afeganistão e o Irã: o Turcomenistão, o Uzbequistão e o Tadjiquistão, todos moldados por um processo histórico comum (os dois últimos fizeram parte do antigo Emirado de Buhara, vassalo da Rússia czarista no século XIX). Como todas as repúblicas muçulmanas da ex-URSS, foram dominados por uma burocracia russa, gradativamente substituída por nativos enquadrados pelo PCURSS. Essa burocracia continuou governando imperturbável após a dissolução da URSS, protegida pela máquina repressiva criada no tempo de Stalin e ainda em pleno funcionamento nessa região.
A independência formal trouxe mudanças apenas nos formulários administrativos. Teoricamente, as terras das fazendas coletivas foram entregues aos camponeses, mas estes continuam obrigados a certos cultivos (principalmente algodão) vendidos ao Estado a preços por ele estabelecidos. Na indústria, os gerentes são os mesmos, mas desapareceram os benefícios sociais para os trabalhadores e os salários reais giram em torno de 10-15 dólares mensais. Os desempregados eram cerca de 20% da população ativa na época da dissolução da URSS; sabe-se que o número aumentou depois, mas não há mais informações fiáveis a respeito. O pleno emprego da economia centralmente planificada nunca chegou até as repúblicas da Ásia Central. Para a construção do Canal de Karakum (uma das obras de irrigação que quebraram o equilíbrio ecológico da região e a que mais contribuiu para o ressecamento do Mar de Aral), Stalin convocou a Juventude Comunista russa, por não ter confiança política nos trabalhadores uzbeques. Hoje a sobrevivência da maioria depende de solidariedades familiares e locais ou de tráficos diversos.
Tudo isso explica, pelo menos em boa parte, o retorno em massa ao islamismo, que é o grande fato recente nas repúblicas da ex-Ásia Central russa. Aparece nisso o anseio popular por livrar-se da herança da URSS. No Tadjiquistão, o poder está dividido (através de um acordo) entre uma oposição muçulmana, com milícia própria, e a burocracia sucessora, que só se mantém com apoio de tropas russas. Nas demais repúblicas, a burocracia tenta obstaculizar a construção de novas mesquitas e persegue correntes islâmicas “estrangeiras”, como o wahabismo, vindo da Arábia Saudita. Por coincidência, os wahabitas vêm fazendo grande proselitismo nessas repúblicas.
Parece que a Rússia, dependente de um fluxo de capitais externos no novo enquadramento econômico internacional a que se submeteu, não tendo condições de assumir a exploração das jazidas da Ásia Central, abandonou a pretensão de reservar-se com exclusividade a vigilância política sobre as novas repúblicas, com exceção do Cazaquistão, onde tem sua base espacial. E os EUA aproveitaram a oportunidade da intervenção no Afeganistão para instalar bases militares na Ásia Central meridional, inclusive uma base no Quirguistão, país sem fronteira com o Afeganistão. O Quirguistão domina parte do Vale de Fergana, densamente povoado, e toda a região montanhosa ao redor. É um vale estrategicamente de primeira importância na Ásia Central. Ali existiu o Canato de Kokand, o primeiro que proclamou a independência após a Revolução de Outubro. Razão pela qual Stalin inventou uma recortadíssima fronteira, dividindo o Vale entre Uzbequistão, Tadjiquistão e Quirguistão. E hoje é no Vale de Fergana que a ressurgência islâmica é mais forte.
Os estrategistas do Pentágono, muito relutantemente terminarão percebendo que o sistema repressivo instaurado no Afeganistão, com participação direta de tropas americanas, é um fator demolidor para a segurança política que buscam na Ásia Central. Porque criou novos fatores de tensão entre os povos da região e os aparelhos de Estado herdados da URSS.
Dentre os novos fatores de tensão, um, pouco notado pelos analistas ocidentais, é a destruição de um patrimônio de comunicabilidade com a camada social mais educada das repúblicas da Ásia Central. Acontece que nessas repúblicas a camada social educada, na época em que esteve integrada em funções administrativas e serviços estatais, não deixara de sofrer a influência ocidentalizante e antirreligiosa da URSS. E a extrema precariedade dos benefícios trazidos pela integração na zona econômica russa terminara produzindo uma inclinação favorável ao Ocidente não-russo por parte dessa camada social. Tal vantagem histórica está agora sendo jogada fora pelo governo dos EUA. A camada social educada, hoje abandonada (ou “mantida” recebendo salários rebaixados e irregulares) pela máquina estatal em crise, e cujos sentimentos são antes de tudo nacionalistas, está descobrindo que na nova situação não terá mais que a mesma “independência” de sempre, vigiada agora por tropas americanas. E a arrogância extrema dos EUA no tratamento dado ao governo independente do Afeganistão proporcionou uma experiência traumática que acelerou esse processo, empurrando as camadas educadas para o terreno político das massas populares.
Isso significa que a destruição da independência afegã, com seu espetáculo de truculência estilo Vietnã (e uma propaganda boçal sobre o “terror”, impossível de acreditar para os povos da região), acompanhada da proliferação de bases militares americanas em substituição às russas, há pouco evacuadas sob alívio geral, criou um sentimento antiamericano antes inexistente na camada social educada da Ásia Central, que a leva a se fundir com o movimento islâmico antiocidental das massas populares, cuja miséria já partilham. Os observadores ocidentais constataram a presença de numerosos voluntários islâmicos da Ásia Central nas forças que lutaram a favor do Estado afegão independente. Sabe-se que existe um movimento islâmico do Uzbequistão com atividade guerrilheira e há uma forte milícia wahabita no Vale de Fergana. É inevitável que esses movimentos ganhem apoio e se radicalizem com o prosseguimento da atividade policial que os EUA projetam exercer na região.
A grande aspiração das burocracias sucessoras da Ásia Central é atrair investimentos capitalistas do Ocidente e integrar seus países na área econômica centralizada pelos EUA. E o governo americano acha que sufocando a aspiração dos afegãos à independência e instalando bases militares nas novas repúblicas está garantindo seu acesso seguro às riquezas da região. Logo ambos parceiros terão que refazer seus cálculos.
O equívoco dos burocratas sucessores da Ásia Central não é mais que um retorno de reflexos automáticos criados pela história. Eles nasceram e foram formados pelo PCURSS na carreira de “cães pastores” (no sentido dado por Toynbee aos janízaros do Império Otomano) dos “rebanhos” muçulmanos. Pretendem agora prosseguir essa carreira a serviço dos EUA. O mínimo que se pode dizer disso é que eles terão uma vida acidentada. A nova ordem mundial em gestação só poderá tornar mais difícil sua carreira sob o novo dono.
5.1.3. Há ainda o grande equívoco do Irã, talvez o maior caso de virada de orientação política, uma vez que, até 1979, era o mais firme apoio do Ocidente.
A Pérsia moderna (Irã desde 1934), nascida a partir da xiá (cisma) do Islã que fundou o Estado xiita em 1502, em guerra permanente com seus vizinhos sunitas, tem uma longa história de alianças com potências ocidentais contra o resto do mundo islâmico. A inclinação pelo Ocidente sofreu os primeiros golpes no início do século XIX, quando o Império Russo atingiu sua fronteira norte e se abriu a disputa por sua dominação entre os dois impérios, inglês e russo. Os soberanos da Pérsia tentaram evitar a vassalagem tirando proveito dessa disputa. Porém a independência efetiva não sobreviveu à Grande Guerra de 1914-1918, quando tropas inglesas e russas (em operação contra os otomanos em suas fronteiras) forçaram-na a entrar na vassalagem.
Em 1925 Reza Khan, comandante de uma brigada de cossacos iranianos, criada em 1879 em imitação dos cossacos russos, derrubou a dinastia Qadjar (1795-1925). Reza Khan pretendia fundar uma república, porém, diante da resistência do clero xiita, fundou uma nova dinastia, com o nome “Pahlevi”, palavra farsi que designa os antigos Partos, que dominaram a Pérsia entre 141 a.C. e 224 d.C. No entanto, diferentemente dos Partos, que expulsaram os reis helenísticos e derrotaram os romanos, a subserviência dos Pahlevi ao Ocidente foi completa.
Mesmo assim, não houve um fenômeno semelhante ao dos Irmãos Muçulmanos do mundo arábico. Por múltiplas razões, algumas de raiz antiga. Por exemplo, o povo persa não fora imediatamente prejudicado pela dominação portuguesa do Oceano Índico. Seu comércio marítimo era feito tradicionalmente por mercadores arábicos. Quando estes foram desalojados de Ormuz (único porto importante do país na época) por Afonso de Albuquerque em 1514, o mesmo comércio simplesmente passou para as mãos dos portugueses. É verdade que a partir do século XVIII a dominação europeia no Oceano Índico foi levando a Pérsia ao empobrecimento, causado indiretamente pela ruína da economia tradicional de seu principal parceiro comercial, a Índia, ruína depois aprofundada pela dominação inglesa. Mas a população da Pérsia, até o século XIX, não via no Ocidente uma causa direta de seu empobrecimento. No fim do século XIX surgiram sociedades para o estudo do liberalismo ocidental.
Ao mesmo tempo, porém, os persas começaram a sentir com mais força a rapacidade do Ocidente, que conspirava e pressionava na corte dos Qadjar. Em 1890, os ingleses obtiveram o monopólio do comércio de tabaco. Ergueu-se forte reação popular, que provocou a anulação desse privilégio no ano seguinte. Mas o processo de ocidentalização continuou, com a criação de uma Assembleia Nacional (Madjlis) nos moldes europeus em 1906. Nessa época os ingleses criaram a Anglo-Persian Oil Company (1909).
A submissão de Reza Khan às pressões ocidentais foi em parte inevitável, diante da nova intervenção militar anglo-russa durante a 2ª Guerra Mundial. Mas o que finalmente voltou o povo contra a dinastia foi a conivência de seu filho (Mohamed Reza, 1941-1979) com a política predatória das empresas ocidentais atraídas ao país. Acontece que a tendência iraniana à ocidentalização não impediu (aliás, até estimulou) o desenvolvimento de um forte movimento nacionalista, cuja principal reivindicação, imediatamente após a 2ª Guerra Mundial, passou a ser a nacionalização da Anglo-Iranian Oil Company (AIOC , novo nome da Anglo-Persian Oil Company).
O primeiro conflito estourou justamente em torno da proteção dada por Mohamed Reza à AIOC. Em 1949, o líder nacionalista Mohamed Hedayat Mossadegh, fundou o Partido da Frente Nacional, que conseguiu levá-lo ao posto de primeiro-ministro em 1951. Pode-se perceber o ânimo da população pelo crescimento explosivo do PFN. O partido ganhou uma maioria parlamentar apenas dois anos depois de fundado. Coerente com sua pregação, Mossadegh criou a Companhia Nacional de Petróleo Iraniana, nacionalizando a AIOC. Os técnicos ingleses, que tentaram boicotar a CNPI, foram expulsos do país. Imediatamente EUA e Inglaterra organizaram um bloqueio internacional do petróleo iraniano e exigiram um pronunciamento da Corte de Haia contra o Irã. Demitido pelo xá em junho de 1952, Mossadegh retornou ao poder no mês seguinte, levado por uma maré de protestos populares. O xá exilou-se, enquanto agentes da CIA foram conspirar entre os generais do Irã bloqueado. Um deles (Zahedi) conseguiu articular um golpe de Estado e chamou o xá de volta, em agosto de 1953. A AIOC foi devolvida aos ingleses e Mossadegh foi condenado à morte. Entretanto, o medo de uma desestabilização das forças armadas, onde o nacionalismo penetrara bastante, fez com que Mossadegh tivesse sua pena comutada para três anos de prisão e o próprio xá recriasse a CNPI em 1954, mas integrada num consórcio internacional que respeitava os direitos adquiridos da AIOC.
O episódio Mossadegh marcou a história política do Irã. A partir dele, o nacionalismo popular iraniano desenvolveu-se sob a forma de vários tipos de movimentos (muitos influenciados pelo marxismo), além do Partido Comunista, o Tudeh (“As Massas”), fundado em 1942. Mas o nacionalismo popular iraniano não tinha um caráter antiocidental. Mesmo os nacionalistas islâmicos não tinham uma orientação tradicionalista. Seu islamismo refletia mais seus laços com as massas rurais e urbanas incultas, cuja vida política se dá nas mesquitas, como em todo o Islã até hoje. O denominador comum das organizações nacionalistas populares era a reivindicação de uma república democrática que promovesse o desenvolvimento nacional de forma soberana.
Todos esses movimentos populares só podiam atuar clandestinamente. Porque após o levantamento do estado de exceção, em 1957, só foram permitidos dois partidos legais, um de apoio formal ao xá, outro de “oposição” formal submissa. E a rigidez da ditadura terminou levando à queda do xá quando se combinou com uma industrialização ruinosa para o povo iraniano, proporcionada por seus parceiros ocidentais.
A industrialização, dirigida por planos quinquenais e inteiramente sustentada pelas exportações de petróleo, seguiu sempre os interesses imediatos dos capitais estrangeiros (40% provenientes dos EUA). Os setores que receberam os maiores investimentos estatais foram petróleo, gás e aço, absorvendo conjuntamente cerca de 65% do total (em 1975), negligenciando a infraestrutura e a produção para consumo interno. Os novos planos habitacionais dependiam de cimento e outros materiais importados em 60%. E a nova indústria têxtil implantada pelos capitais externos, além de destruir a maior parte da tecelagem tradicional (historicamente importante no país), era dependente de insumos importados em 80%. Enquanto isso a agricultura decaía, apesar da reforma agrária de 1968, mal concebida e mal continuada. Tal decadência e o crescimento urbano que acompanhou a industrialização, tornaram o país dependente de importações alimentares em 50%. Consequentemente, em 1975 as exportações de petróleo e gás se tornaram insuficientes para sustentar ao mesmo tempo os projetos industriais e a indispensável importação de alimentos. Em 1976 começaram a ocorrer interrupções de projetos e em março de 1978 encerrou-se melancolicamente o 5º Plano quinquenal, sem apresentação de outro plano.
O descalabro econômico assim criado provocou a revolta da maioria da população, inclusive os beneficiados com casas populares, que odiavam os modelos ocidentais de habitação introduzidos pelas empresas europeias encarregadas dos projetos habitacionais do xá. Sendo que o país dispunha de bons arquitetos em número suficiente. Acontece que as exigências da repressão política levaram os planejadores do xá a orientar as empresas para que contratassem técnicos com certo “perfil conveniente” (apolíticos sem atividade política anterior), criando assim uma situação aberrante, na qual, enquanto as novas indústrias regurgitavam de técnicos estrangeiros, os técnicos iranianos viam-se obrigados a procurar emprego no exterior. Isso sem deixar de criar desemprego interno, com a apressada destruição da tecelagem tradicional. Talvez o Irã do xá Mohamed Reza seja o único país que conseguiu combinar um crescimento industrial de cerca de 20% ao ano (entre 1970 e 1975) com um desemprego beirando o mesmo percentual.
O xá, que já fizera de sua pessoa um símbolo do antinacionalismo desde o episódio Mossadegh, confirmou plenamente as piores expectativas populares com sua desastrosa industrialização, que transformou todos os rendimentos das exportações de petróleo iraniano em lucros no exterior, de onde vinha a maior parte dos insumos da nova indústria, além de alimentos, item no qual o país fora antes autossuficiente. E ainda por cima veio a prepotência do xá a amplificar os problemas. Diante da inflação provocada pelo fracasso do 5º Plano quinquenal, o xá resolveu “proteger o povo” perseguindo os homens dos bazares (pequeno comércio), que passaram a ser multados e presos por aumentos de preços não autorizados.
Os bazari, indignados com o policiamento de seu comércio, foram engrossar as fileiras da oposição, onde já se encontrava o forte movimento nacionalista, enraizado desde os anos 1950, e onde também estava parte do clero xiita, sempre descontente com a ocidentalização que ia restringindo gradativamente seu papel político tradicional. Desde os anos 1960 se formara uma oposição religiosa que chegava até o alto clero. E em 1964 foi exilado o aiatolá (grau máximo da hierarquia regular) Ruhollah Khomeini, que passou a ser uma referência importante para a oposição ao xá.
A resposta do xá ao ódio popular crescente sempre foi a pura repressão, à qual se dedicou pessoalmente. Assistia a filmes de sessões de tortura em seu cinema privado e depois enviava recados com sugestões aos torturadores. O xá perdeu a guerra contra os movimentos nacionalistas quando estes fizeram junção com a oposição religiosa, que penetrara profundamente nas massas populares e nas forças armadas. A grande mobilização pela derrubada do xá começou em 8 de setembro de 1978, em Teerã, com uma manifestação popular, ferozmente reprimida (Sexta-Feira Negra). A partir desse momento seguiu-se uma série de concentrações nas mesquitas a cada 40 dias, para lembrar (em cerimônias correspondentes ao culto do sétimo dia dos cristãos) os mortos da Sexta-feira Negra e os de cada concentração religiosa (todas violentamente reprimidas) do quadragésimo dia anterior. Acuado, o xá exilou-se novamente em janeiro de 1979, deixando um preposto (Chapur Bahtiar) para tentar um compromisso com o clero. Bahtiar autorizou o retorno de Khomeini, que desembarcou em 1º de fevereiro. No dia 8 revoltaram-se os homafar (cadetes da aeronáutica), que reivindicaram o poder para Khomeini e distribuíram armas à população. Após três dias de combates de rua, os últimos defensores do xá, os 10 mil djavidan (tropa de elite criada em imitação dos “10 mil imortais” do antigo Império Persa), foram derrotados.
O Irã é o único país islâmico que teve uma revolução profunda, com envolvimento de todas as camadas sociais, da cidade e do campo, o que colocou a questão da soberania em termos radicais. A expressão “revolução islâmica” é imprópria. Foi uma revolução nacionalista-democrática açambarcada pelo clero xiita, que cerrou fileiras em torno de Khomeini e tirou proveito do uso das mesquitas como única forma legal de concentração das grandes massas na luta final contra o xá.
O novo regime, instituído com o título oficial de República Islâmica em abril de 1979, tem caráter híbrido: instaurou a liberdade de representação no Madjlis, eleito por sufrágio universal, mas o chefe do clero xiita detém o poder supremo e se arroga o direito de decidir em última instância sobre tudo, do linguajar da imprensa ao traje das mulheres. A hegemonia clerical é contestada pelos movimentos políticos que buscam a ampliação das liberdades democráticas. Em 1981, os Mudjahidin-i-Halq (Combatentes de Deus pelo Povo), a organização popular principal durante as lutas contra o xá e que reivindica uma constituição democrática, foi colocada fora da lei; em 1983 o mesmo aconteceu com o Tudeh. Apesar disso, o clero conseguiu legitimar sua hegemonia, invocando seu papel na revolução que restaurou a soberania nacional e sua firmeza ante as pressões ocidentais desde o ano de sua chegada ao poder, quando rompeu relações com o Estado de Israel e permitiu que o povo tomasse de assalto a embaixada americana, cujo pessoal foi feito refém e só libertado em 1981. Consequentemente, as correntes democráticas e anticlericais que recentemente alcançaram maioria no Madjlis (mas não suficiente para mudar a Constituição) só podem fazer avançar as liberdades civis mostrando-se capazes de defender a soberania nacional pelo menos com igual eficácia.
Portanto, os estrategistas americanos têm alguma razão em afirmar que hoje há “dois irãs”, “o Irã do Parlamento e o Irã do aiatolá Ali Khamenei” (Edward Lutwak em “O Estado de São Paulo”, edição de 21 de outubro de 2001). Seu erro está em achar que existe alguma força política anticlerical (que eles supõem ser automaticamente pró-Ocidente) disposta a reconduzir o Irã à vassalagem. É verdade que o Irã participou do jogo de pressões para derrubar o governo independente do Afeganistão. Mas o Irã, inimigo tradicional do Afeganistão, tinha interesse em derrubar um governo sunita agressivo em sua fronteira e pretende beneficiar-se com a fragmentação política do país, onde pode controlar a minoria xiita.
Sem dúvida, o governo iraniano cometeu um equívoco em supor que a colaboração com os EUA para retalhar o poder no Afeganistão poderá trazer-lhe vantagens no jogo político regional. Mas os EUA estão ainda mais equivocados imaginando que poderão contar com o Madjlis contra o aiatolá Khamenei para apoiar sua expansão imperial. O instantâneo movimento de simpatia dos iranianos para com os refugiados afegãos (que estavam na iminência de serem expulsos do país antes dos ataques americanos) mostrou bem a mudança do estado de espírito no Irã. A arrogância americana fortaleceu o espírito antiocidental de todos, religiosos e anticlericais.
No Irã aconteceu uma revolução que, embora entravada pela intervenção do clero xiita, criou um apego à soberania nacional muito difícil de fazer retroceder. E as novas ameaças dos EUA no Oriente Médio (com o Irã incluído num fantasioso “eixo do mal”) serão certamente mortais para as tendências ocidentalizantes que ressurgiam no Madjlis, fortalecendo a nova orientação histórica contrária à influência ocidental, seguida desde 1979 (parcialmente a contragosto) pelo povo iraniano.
5.1.4. E há o caso da Arábia Saudita, país-chave na encruzilhada do Oriente Próximo e Médio. A riqueza petrolífera (explorada desde 1933) tem mantido um baixo nível de tensão social no país. Este é o fator principal que o manteve fora do ciclo de rebeliões dos Estados vassalos arábicos e permitiu a continuidade de seu regime monárquico tradicionalista.
O tradicionalismo da Arábia Saudita, porém, tem raízes históricas fortes. A dinastia Saudita nasceu em 1792, ligada a um movimento religioso, o wahabismo, fundado por Mohamed bin Abd al-Wahab (1703-1787), que expressava o anseio dos povos arábicos em libertar-se da dominação otomana. Mohamed bin Saud conquistou Meca e Medina em 1803 e criou um novo reino, que proclamou a renovação do Islã no mundo arábico, defendendo uma religiosidade rigorosa, própria dos beduínos do deserto liderados por Bin Saud, mas que era antes de tudo uma forma de oposição à dominação otomana.
O primeiro rei Saudita foi derrotado por Mohamed Ali (a serviço dos otomanos) em 1813 e viu-se obrigado a fugir para o deserto central da Arábia. Porém a dinastia teve nova oportunidade na Grande Guerra de 1914-1918, aliando-se aos ingleses contra os otomanos. Abd al-Aziz Ibn Saud conquistou o Hedjaz (a região de Meca e Medina) em 1925, destronando o xerife Hussein, deixado em Meca pelos otomanos e que em seguida assumira o título de rei. Os ingleses teriam preferido manter o Hedjaz como um reino distinto nas mãos do dócil Hussein, mas não podiam àquela altura apoiar um chefe que fora indicado pelos otomanos contra seu aliado na Grande Guerra. Em seguida, o estabelecimento dos mandatos das potências europeias e a instalação do sistema de vassalagem na área do ex-Império Otomano bloquearam a expansão do wahabismo, mas este pôde firmar sua respeitabilidade como corrente religiosa oficial do novo Reino da Arábia Saudita, responsável pela segurança do hadj (peregrinação à Meca) para todos os muçulmanos.
Tais fatos estão na origem da combinação de submissão ao Ocidente com intransigência religiosa praticada pela dinastia Saudita que, por um lado, tem apoiado as potências ocidentais com regularidade e sem grandes conflitos internos; e, por outro, desenvolve atividades de proselitismo e de ajuda a certos movimentos islâmicos que têm criado problemas para a dominação ocidental. Por exemplo, o apoio aos Irmãos Muçulmanos, assim como a inúmeras instituições e organizações islâmicas do mundo inteiro e a ajuda material aos palestinos. Após o desabamento da URSS, o wahabismo começou a expandir-se para fora do mundo arábico, para o Cáucaso muçulmano e a ex-Ásia Central russa, onde numerosas mesquitas têm sido construídas com dinheiro saudita. É típico o fato de que a Arábia Saudita tenha sido um dos dois únicos países (junto com o Paquistão) que reconheciam o governo independente do Afeganistão antes da nova expansão imperial americana.
A vassalagem da dinastia Saudita tem um caráter dúbio que sempre incomodou as potências ocidentais. Os EUA têm tido grandes dificuldades em obter informações sobre organizações islâmicas antiamericanas que se abrigam na Arábia Saudita. A atitude veladamente inamistosa da dinastia Saudita para com o Ocidente expressa de forma distorcida uma rejeição praticamente unânime do Ocidente cristão pelo povo árabe. Unanimidade que é em parte consequência do interesse geral na manutenção do prestígio do Islã e dos rendimentos provenientes do hadj (1.805.000 peregrinos em 2001, segundo divulgação da casa real). O antiamericanismo acentuou-se após a Guerra do Golfo, em 1991, porque os EUA aproveitaram a oportunidade para instalar uma base aeronaval em Dahran, na costa árabe do Golfo Pérsico, onde permanece até hoje. Tal permanência tem causado mal-estar entre os líderes religiosos e o povo em geral. Em seguida, o apoio formal do rei Fahd à ação dos EUA contra o Afeganistão deu lugar a um fatwa (espécie de pronunciamento solene), emitido pelos religiosos mais veneráveis da Arábia Saudita, condenando a família real. Isso não traz perigo imediato para a dinastia, porque o clero não tem poder próprio, mas é significativo que o rei ouviu pessoalmente o pronunciamento do fatwa e não ousou contestar.
A Arábia Saudita certamente não está à beira de uma insurreição popular contra a dinastia Saudita. Mas as tensões existentes desde o início da presença americana em Dahran, agravadas pela nova prepotência imperial, podem aprofundar as dissensões internas na família real (30 mil membros). O assassinato do rei Faiçal, em 1975, já mostrou até onde podem ir as intrigas na corte da Arábia Saudita. Tudo dependerá de como o chefe da família real reagirá ao aumento das pressões do Império americano na Área Arábica e agora também na Ásia Central e no Cáucaso muçulmanos, onde o wahabismo já tem presença significativa.
Os atentados de 11 de setembro de 2001 deram uma informação inesperada sobre a força dos sentimentos antiamericanos que vêm tomando conta da população da Arábia Saudita, inclusive a camada social abastada e educada no Ocidente. Dos 19 indiciados como participantes da tomada dos aviões usados nos atentados, 18 vinham da Arábia Saudita (apenas um do Egito); todos saídos de famílias relativamente abastadas, muitos com diplomas de universidades europeias importantes. Gente que renunciou a carreiras profissionais seguras e vida confortável em seus países de origem. Gente que viveu nos EUA durante vários anos e, apesar de ter usufruído de liberdades que não possui em suas pátrias, não deixou de sentir a profunda hipocrisia da imprensa americana a respeito dos direitos humanos e nacionais dos outros.
E a esse respeito é igualmente significativa a trajetória do excessivamente famoso Bin Laden. Homem de família rica e bem relacionada com as altas esferas políticas da Arábia Saudita, em sua juventude teve uma passagem pela variante moderada dos Irmão Muçulmanos (que nunca foram reprimidos na Arábia Saudita), isto é, militou no movimento tradicionalista dessa organização. Este item do curriculum vitae de Bin Laden não foi mal visto pelos EUA, que durante muito tempo se apoiaram no tradicionalismo contra os rebeldes filo-comunistas do Oriente Próximo. Após sua experiência como intermediário informal do governo americano no Afeganistão em revolta contra os russos, Bin Laden viajou pelo mundo islâmico e em seguida tentou fixar-se no Sudão, país arábico periférico que iniciava sua experiência de adoção da Chariá como lei fundamental.
Sua revolta contra os EUA ocorreu em 1991, em reação à permanência americana na base de Dahran após a derrota de Sadam Hussein. Inicialmente foi essa a principal questão levantada por Bin Laden em seus contatos com a família na Arábia Saudita. Mas a decisão de criar um movimento antiamericano demorou ainda um bom número de anos. Tentou criá-lo no início de 1998, no Sudão. Mas parece que o governo local se opôs à instalação da sede do movimento na capital do país. Essa deve ter sido a razão de seu retorno ao Afeganistão, onde fundou sua Frente Islâmica Internacional em 22 de fevereiro de 1998 e passou a fazer declarações um pouco fantásticas, em que se referia a “80 anos de opressão” do Ocidente sobre os povos islâmicos (nos quais não inclui o Irã xiita). “80 anos” porque inicia o tempo da opressão curiosamente em 1922, quando se deu a dissolução do Império Otomano, que fora o grande inimigo da dinastia Saudita. Mas sua denúncia da política dos EUA na Palestina é bem clara. Para cúmulo de ousadia, arrogou-se o poder de lançar um fatwa contra os americanos presentes em terras islâmicas.
É a partir desse momento que o governo americano começou a denunciar Bin Laden como terrorista. Em abril de 1998 os EUA enviaram ao Afeganistão (cujo governo não reconheciam, mas ainda não atacavam) seu representante na ONU, que interpelou o governo afegão sobre as atividades de Bin Laden e sobre o fatwa. O governo afegão respondeu que não pretendia opor-se à criação de organizações islâmicas sunitas; e quanto ao fatwa, Bin Laden, que não era ulemá nem fora investido de poderes especiais por qualquer instituição religiosa, não tinha autoridade para fazer tal tipo de pronunciamento; portanto, seu pretendido fatwa devia ser simplesmente ignorado. A partir do retorno de seu enviado, o governo americano proibiu o acordo entre o país e uma companhia petrolífera americana, realizado em 1997, para a especialização de engenheiros afegãos em tecnologia de gasodutos e oleodutos nos EUA (a Universidade de Omaha até já havia criado um centro de formação para esse fim, em convênio com a companhia, com a abertura de 137 vagas para afegãos).
A virada política americana em relação ao Afeganistão ocorreu a partir de 8 de agosto de 1998, aproveitando, para não fugir à regra, as explosões em suas embaixadas de Nairóbi e Dar es-Salaam. No fim do ano o governo dos EUA lançou sua ordem internacional de prisão contra Bin Laden, que passou a ser acusado de centralizar uma incrível rede de terror mundial que faria inveja a qualquer grande vilão das histórias em quadrinhos criadas pela cultura americana. E a destruição da independência do Afeganistão passou a ser o objetivo imediato do Império americano. O país foi alvo de bombardeio (não escapando disso o Sudão, apesar de sua cautela) e de uma campanha publicitária sobre o “fanatismo” de sua coligação política governante. Porém, diante da prontidão dos governos do Quênia e da Tanzânia em facilitar as investigações, a precipitação dos bombardeios sobre o Afeganistão e o Sudão terminou sendo contraproducente para a obtenção do indispensável apoio dos vassalos do Oriente e do Irã, obrigando o comando imperialista a adiar seus projetos de ação armada contra o Afeganistão. Foi preciso aguardar explosões maiores.
Os atentados de setembro de 2001 abriram uma fase de expansão imperial que vai bem além do que pode ser suportado pelo sistema político da Arábia Saudita, tradicionalmente equilibrado entre a vassalagem e seus compromissos religiosos. E embora tenha passado rapidamente a parte mais fácil da intervenção americana no Afeganistão, os acontecimentos na Palestina não têm permitido a diminuição da tensão política na Arábia Saudita, assim como em toda a área de vassalagem.
Pode-se afirmar com segurança que os EUA terão que enfrentar resistências crescentes da Arábia Saudita à sua expansão militar no Oriente Médio e na Ásia Central. E que não só aumentará a hostilidade popular aos EUA, como também a própria família real não poderá escapar aos efeitos do pesado clima político gerado pela escalada imperialista.
5.1.5. A constatação que se impõe é que a implantação de bases militares americanas na área de vassalagem, onde estas não existiam antes de 1991, com a ampliação da área a ser controlada, que passou a incluir a Ásia Central meridional, implicou o restabelecimento de relações de dominação muito semelhantes às existentes nos antigos protetorados europeus. Na área atingida diretamente pela expansão imperial é óbvio para todos que o objetivo disso é a repressão aos povos islâmicos que reajam ao esmagamento da resistência palestina e ameacem a segurança dos projetados investimentos americanos na Ásia Central. Só no Ocidente é possível acreditar que o único interesse do aumento da presença militar dos EUA na área islâmica é combater “o terror”.
Há, entretanto, diferenças importantes entre os antigos protetorados e o sistema de dominação americano atualmente em implantação.
Para os EUA, há a expectativa de que suas novas bases militares tenham apenas função intimidatória e de apoio, principalmente aéreo, à ação repressiva dos próprios governos vassalos. Tal tipo de expectativa otimista já ocorreu antes. No Vietnã o governo americano esperava que Ngo Dinh Diem, com um abundante fornecimento de armas e bem aconselhado por especialistas militares, desse conta da tarefa de garantir as propriedades francesas no país. Desta vez, porém, o governo americano errou desde o primeiro minuto. Não há mais no mundo islâmico, mesmo entre os chefes de Estado mais dispostos a assumir a carreira de vassalo (como os da Ásia Central, no momento), um chefe ferozmente convencido a defender integralmente os interesses americanos, como era o caso de Diem.
Para os chefes de Estado vassalos há dois problemas novos. Em primeiro lugar, a perda de apoio da classe média que, depois de se desiludir com o constitucionalismo ocidental nos anos 1970, passou a tornar-se cada vez mais antiamericana a partir da primeira Intifada, no fim dos anos 1980, o que restringe perigosamente a base social para a continuidade das relações de vassalagem. Em segundo lugar, apareceu uma nova disposição de reagir à opressão imperial, sob o impulso da Intifada dos Mártires e depois aguçada a partir de setembro de 2001. E isso tudo tem um sentido particularmente importante.
Acontece que o fim do ciclo de rebelião dos Estados vassalos significara o esgotamento das energias desencadeadas pelas ilusões numa integração soberana ao Ocidente; e significou ao mesmo tempo a instauração de certo conformismo com a submissão que veio depois. Todos sempre souberam que seus próprios governos eram coniventes com as matanças de palestinos depois dos anos 1970. Mas até há pouco tal conivência foi suportada como mal menor, para que um mínimo de vida normal fosse mantido. O atual movimento de expansão do terror imperial está pondo em questão todo o precário equilíbrio baseado na escolha do mal menor. Ganha força, mesmo nas camadas sociais superiores, a convicção de que é necessário preparar-se para resistir de alguma maneira à pretensão americana de controlar diretamente os aparelhos de Estado vassalos. Os chefes desses Estados hoje sabem que terão que navegar em meio a resistências de suas próprias máquinas administrativas em relação a suas políticas oficiais.
Não há perigo imediato de grandes conspirações para derrubadas de governo entre os povos islâmicos. O que predomina no momento é a pressão social para restringir de alguma forma a ingerência dos EUA no interior de seus países e, eventualmente, reorientar suas políticas externas. As recentes iniciativas de Estados vassalos em busca de uma solução internacional para a guerra na Palestina são uma indicação das novas preocupações das equipes de governo, principalmente no que diz respeito aos países arábicos. As novas preocupações têm base muito firme. Porque envolvem todos os Estados vassalos na perspectiva comum de defender suas limitadas liberdades tradicionais, ainda que no quadro da vassalagem. A fantasia policialesca americana da “al-Qaeda” tem, como todas as grandes mentiras, um núcleo de verdade: realmente a atividade conspiratória contra os EUA aprofundou-se nos países muçulmanos, penetrando inclusive em suas máquinas administrativas e, em alguns casos, até o âmago dos aparelhos de Estado.
A evidência maior do novo clima social nos Estados vassalos foi dada justamente pelos atentados de setembro de 2001, que mostraram duas novas realidades cruciais. A primeira é que os cidadãos de todas as camadas sociais dos países muçulmanos adquiriram plena consciência de que atualmente o grande inimigo dos direitos nacionais dos povos é os EUA. A segunda é que a disposição de luta que vai até o sacrifício da vida é uma realidade também fora da Palestina. Hoje nenhum chefe de Estado do mundo islâmico pode ignorar tais realidades.
5.2. Retrocesso no Ocidente
A grande novidade política no Ocidente é a arregimentação do povo americano sob o estandarte imperial. Secundariamente, a facilidade com que todas as potências europeias aceitaram a total desconsideração do direito internacional pelos EUA. Nesses acontecimentos, a Periferia do Ocidente simplesmente seguiu atrás, como de costume.
Não vale a explicação de que tudo foi causado pelo choque com a morte de inocentes em Nova York. O impacto emocional não explica a unanimidade com que foi aceito o ataque ao Afeganistão, ignorando a disposição deste a entregar o acusado Bin Laden mediante um mínimo de respeito à sua soberania nacional. E também não vale a comparação com Pearl Harbour. Neste caso, não havia dúvidas quanto ao atacante e o Japão era uma potência imperial. O simples patriotismo podia explicar todos os deslizes do governo e da imprensa dos EUA em 1941. O que se passou em setembro de 2001 foi uma gigantesca manipulação da opinião pública pelo comando imperial americano.
Evidentemente, a manipulação não poderia ter sido bem-sucedida sem a conivência exemplar da grande imprensa americana e de seus seguidores pelo mundo inteiro, ingênuos ou sabujos, que se encarregaram de convencer os patriotas americanos e os desinformados de todo o mundo da necessidade de erradicar “o mal” que, como a história já provou inúmeras vezes, é uma coisa simples e fácil de identificar por qualquer criminoso de guerra.
Na realidade, o grande fato histórico que está por trás da facilidade com que foi manipulado o povo americano e a opinião pública de todo o Ocidente pelo comando imperial é o retrocesso do movimento operário ocidental ocorrido a partir do começo dos anos 1980. E o ponto de virada foi o triunfo de Margaret Thatcher sobre os mineiros britânicos no começo de seu governo, seguido pela demolição das políticas econômicas distributivas nos EUA, iniciada sob o governo Reagan na mesma época.
Casualmente, os anos 1980 também marcam o início da difusão dos computadores individuais e da expansão extraordinária das comunicações através da internet. A novidade serviu para dar uma base “técnica” a uma campanha publicitária que passou a divulgar um suposto incremento “fantástico” da produtividade do trabalho como explicação suficiente para o desemprego crônico e para o reaparecimento de sinais de pobreza no Centro do mundo capitalista, assim como para o agravamento da miséria tradicional em sua Periferia. Paralelamente, intelectuais distraídos ou interessados em carreiras cômodas passaram a fazer grandes divagações sobre o “fim do mundo do trabalho”. Michel Husson, num livro pouco lido (Les Ajustements de l’Emploi, Editions Page Deux, Lausanne, 1999), demonstra que do início dos anos 1970 para cá há uma inclinação geral negativa da produtividade do trabalho, a ponto de alguns especialistas terem cunhado a expressão “paradoxo de Solow” (do nome de um Prêmio Nobel de Economia), em função da estranha combinação da aceleração de inovações tecnológicas com a desaceleração da produtividade direta do trabalho. É do próprio Solow a frase: “Pode-se ver a era da informática em toda parte, menos nas estatísticas de produtividade” (citado por Husson, pág.105).
Fato ainda mais estranho, nesses mesmos anos 1980 em que se ameaçava os assalariados com a obsolescência do trabalho começaram a multiplicar-se as constatações de reaparecimento de práticas de trabalho de tipo escravista ou semiescravista, juntamente com uma grande expansão do trabalho infantil, enquanto milhões de trabalhadores regulares eram demitidos ou tinham seus salários rebaixados por meio da terceirização ou de expedientes diversos. Quem ainda tinha olhos para ver conseguia notar que o que estava se tornando “obsoleto” não era o trabalho, mas sim o nível salarial e as conquistas sociais do segundo pós-guerra.
Ao que tudo indica, a derrota dos mineiros britânicos e a ascensão de Reagan nos EUA deram início a um processo que, combinando-se com a desintegração econômica da URSS, levou a história do Ocidente de volta à estaca zero no encerramento do “breve século XX”, com o desmoronamento do Muro de Berlim em 1989. Talvez por isso um representante do pensamento imperial tenha ousado fantasiar um “fim da história” que, no fundo, não seria outra coisa se não o fim da luta de classes, tão desejado pelos que comandam seu mundo.
É possível falar em estaca zero porque no Ocidente a luta de classes é o centro de gravidade dos acontecimentos históricos. E o proletariado ocidental vive hoje o esgotamento de um longo ciclo de combates e conquistas que vai do fim do século XIX aos anos 70 do século XX. Durante esse ciclo houve uma série de assaltos do movimento operário às cidadelas do poder burguês, que tiveram um ponto culminante na Revolução de Outubro de 1917. Não há lugar aqui para discutir por que a Revolução de 1917 retrocedeu e como as grandes direções do movimento operário se meteram numa parceria com o patronato para a reconstrução capitalista do 2º pós-guerra, em troca de um Estado de bem-estar que seria inevitavelmente questionado pelos parceiros burgueses assim que estes se sentissem pressionados pela tendência à queda da taxa de lucro.
Mas é importante ressaltar que, apesar do retorno à estaca zero, o ciclo deixou saldos positivos ainda não perdidos. O simples prolongamento da existência da URSS, em função de seu inevitável significado como Estado nascido a partir da Revolução de Outubro, juntamente com a reconstrução de poderosas organizações sindicais na Europa após 1945, permitiu preservar duas coisas: a libertação das colônias e, em decorrência dela, a aceitação, mesmo pelos piores assassinos, do reconhecimento de direitos humanos e liberdades políticas e individuais “para todos os povos do mundo”.
Em função dessa afirmação de ideias humanistas no 2º pós-guerra, criou-se uma situação contraditória: por um lado a opinião pública do Ocidente tornou-se convicta de que a igualdade dos povos, os direitos humanos e certos direitos republicanos (apresentados mistificadoramente como direitos democráticos) são conquistas intocáveis; por outro, o fim das esperanças na construção de uma alternativa ao sistema capitalista levou à abertura de um processo de instauração do poder absoluto do capital sobre a sociedade e as instituições políticas, que rebaixa os salários, piora as condições de trabalho, faz renascer práticas escravistas e espalha pela sociedade novas e diversificadas manifestações de brutalidade social.
É normal que a realidade seja contraditória. Mas há uma característica inusitada nesta contradição específica: é o fato de que o processo de imposição de velhos remédios do capital para resolver os problemas do mundo à sua maneira aconteceu sem qualquer contestação minimamente articulada, embora nenhuma grande derrota tivesse colocado o movimento operário ocidental em situação de impotência para desmascarar a burla. Surpreendentemente, viu-se o movimento operário ocidental assistir inerte às incríveis acrobacias do discurso burguês, que consegue impingir ideias econômicas do tempo de Walras como se fossem novíssima “modernidade”, saltando alegremente por cima de um século e meio de progresso humano e social.
Na realidade, não foi a massa dos trabalhadores que ficou inerte, mas sim seus dirigentes. Os trabalhadores nunca pararam as lutas em defesa das conquistas sociais do passado e até alcançaram vitórias importantes, como na França em 1995. Tais lutas continuam tendo grande valor, mas até agora têm sido insuficientes para impedir que a expansão da dominação do capital sobre a sociedade continue seu avanço. E assim este vai conseguindo realizar uma espécie de fraude social, servindo-se do apoio dos mesmos partidos e sindicatos que meteram os trabalhadores na parceria de curto fôlego estabelecida no 2º pós-guerra.
A predominância esmagadora do chamado “pensamento único” na grande imprensa é resultado dessa fraude social, e não simplesmente da força da imprensa capitalista. Nela a comum e normal propaganda ideológica burguesa se combina com um charlatanismo operário que é o ingrediente principal da fraude. Tal charlatanismo é um fenômeno novo, que nada tem a ver com o reformismo da social-democracia anterior à 2ª Guerra Mundial. Esta, com todas as suas limitações, realizou a gigantesca tarefa histórica de erguer a massa dos trabalhadores europeus acima do nível de subsistência mínima, que era seu destino obrigatório em meados do século XIX, e conquistar para eles, juntamente com o sufrágio universal, direitos reconhecidos de cidadãos, ainda que nem sempre respeitados.
O que sempre fez a fortuna dos charlatães é a enorme vontade, por parte de seus ouvintes, de acreditar em suas promessas mirabolantes. E é exatamente isso que tem feito a carreira dos dirigentes do movimento operário dos anos 1980 para cá. Os trabalhadores do Ocidente compreensivelmente recalcam a recordação de que, para fazer os capitalistas concordarem em colocar, por uma única vez na história, parcialmente também a serviço do bem-estar dos assalariados o potencial de produzir riqueza que controlam, foi preciso uma revolução proletária vitoriosa, uma guerra mundial e uma forte ameaça de novas revoluções proletárias nos países centrais do mundo capitalista.
A enorme vontade de esquecer essa amarga verdade, mais a desilusão causada pelo desmoronamento da URSS, tornou fácil demais para os charlatães do movimento operário vender as maravilhosas poções de reengenharia e flexibilização da carne e da mente humanas, fabricadas nas melhores universidades do Centro capitalista, que prometem o rejuvenescimento milagroso do sistema. E a dificuldade em combater essa fraude é grande porque implica combater simultaneamente a mistificação capitalista (que é o mais fácil), combater a mistificação dos partidos operários e sindicatos construídos noutra época, cujos dirigentes pretendem continuar as mesmas carreiras na época atual, e combater o mito do Estado capitalista provedor de bem-estar ou de prosperidade para a maioria, gravado como grata recordação na mente dos trabalhadores desde os “anos gloriosos” do Centro capitalista e da industrialização protegida da Periferia.
Mesmo assim, a fragilidade da situação no Ocidente é grande. E ela é causada por dois fatores. O primeiro decorre da fragilidade natural das fraudes, que nunca conseguem enganar o mundo inteiro por muito tempo. No caso, essa fragilidade carrega consigo um potencial explosivo. Os trabalhadores do Ocidente, que desde 1945 não sofreram uma derrota capaz de abater gravemente seu ânimo, mantêm uma capacidade de luta que deixa aberta a possibilidade de fortes convulsões sociais em reação ao inevitável desmascaramento da fraude social mais cedo ou mais tarde.
O segundo fator decorre da contradição, exacerbada pela atual política imperialista, entre o ideário humanista, afirmado no 2º pós-guerra e oficialmente proclamado pelo próprio comando imperial, e a reintrodução de práticas típicas de potência colonizadora na área de vassalagem do Ocidente. Contradição ainda agravada pelo aguçamento da guerra na Palestina. A hipocrisia, que vem recrudescendo desde os anos 1980, está atingindo níveis insuportáveis.
Para a Periferia do Ocidente, há ainda o peso do endurecimento político do império que, em seu tradicional “quintal”, agora exige maior disciplina, com um novo entrosamento de suas polícias com a polícia imperial. É cedo para afirmar que isso pode significar também a volta de uma política sistemática de apoio a regimes ditatoriais. As possibilidades, para o império, de tirar proveito da mistificação que faz passar regimes republicanos corruptos por democracias ainda não se esgotaram.
O endurecimento da dominação imperial na Periferia do Ocidente, em si, não é de causar um tumulto geral, tal a força do hábito de subordinação aos EUA nessa parte do mundo. O que tende a causar tumulto é a devastação que vem sendo realizada pelo capital financeirizado nas frágeis economias dos países nela situados. Os acontecimentos do Natal de 2001 na Argentina mostraram espetacularmente a que grau de desespero pode ser levado o povo de um país cujos governantes se aplicaram com grande empenho no cumprimento das recomendações do Fundo Monetário Internacional.
A ameaça que paira sobre a América Latina na atualidade é o escorregamento para a desagregação social cada vez mais profunda, levando uma parte da população a escapar completamente ao controle das instituições legais do Estado. Situação esta que já pode ser observada em vários países da África Subsaariana.
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O desenvolvimento de todas as contradições acima esboçadas, combinando-se com a resistência dos povos islâmicos ao restabelecimento do sistema de protetorados, na medida em que passe a desencadear novas convulsões sociais no Ocidente e envolver tropas americanas mais profundamente em guerras na área islâmica, tenderá a repercutir dentro da sociedade americana as tensões do resto do mundo. Tal repercussão é o único obstáculo eficaz para bloquear os planos de escalada militar do comando imperial.
Mas enquanto perdurar a grande fraude social que entrava as lutas dos trabalhadores no Ocidente e o comando imperial puder manter o povo americano arregimentado para sua expansão guerreira, o centro da história mundial do século XXI permanecerá no Oriente, e mais particularmente no mundo islâmico, como já vem acontecendo desde os anos 80 do século XX. É a primeira vez que isso acontece desde a Idade Média. Pode ser uma boa oportunidade para os ocidentais descobrirem a humildade e ver que os povos atrasados do mundo podem, em certas circunstâncias, mostrar o caminho da luta pela dignidade humana aos mais avançados.
Quando um jornalista do Washington Post tentou entrevistar no Egito o pai de um dos acusados pelos atentados de setembro de 2001 pôde apenas ouvir, antes que o egípcio lhe batesse a porta na cara: “O Egito é hipócrita e os Estados Unidos são hipócritas. Nós não temos hipocrisia. As companhias de petróleo detêm o poder nos Estados Unidos e estão matando povos.” Esse homem mostrou que é capaz de ver a insuportável hipocrisia dos EUA e que sabe separar a hipocrisia de seus governantes vassalos da atitude do povo (“nós não temos hipocrisia”), certamente referindo-se a todos os povos islâmicos. Infelizmente vive-se uma época em que é preciso procurar fora do Ocidente para encontrar pessoas comuns com capacidade de ver realidades fundamentais que caracterizam o mundo de hoje.
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