Domingo, 5 de julho de 2015. Os resultados do plebiscito grego acabam de ser divulgados. Em poucos minutos milhares de pessoas responderam à convocação dos líderes de todos os partidos de esquerda (menos, é claro, o Partido Socialista do presidente François Hollande) e agora se manifestam na Place de la République. Os manifestantes comemoram a extraordinária derrota que o povo grego impôs ao imperialismo, a contraposição da Europa democrática à Europa dos bancos. Bandeiras vermelhas tremulam. De punho cerrado, todos entoam a Internacional e mandam “Madame Merkel à la poubelle” (para o lixo).
Será que o jogo começou a virar? A esquerda francesa finalmente vai catalisar o apoio popular, liderando um movimento contra a dominação do capital financeiro sobre a Europa?
Na verdade, nada indica que isso aconteça. A cena descrita acima realmente aconteceu, mas nem de longe reflete a situação na França.
Para começo de conversa, a manifestação foi burocrática e pouco animada. A maioria absoluta dos manifestantes era de pessoas de mais de 50 anos, refletindo o envelhecimento da militância de esquerda. Mas, além disso, a situação atual do país não autoriza o otimismo. A França vive um momento de absoluta prostração do país como um todo, e da classe trabalhadora em especial, diante do agravamento da crise econômica. Tal crise vai sendo paga com a constante retirada de conquistas sociais que, até agora, eram consideradas intocáveis.
A prostração francesa pode, senão justificar, pelo menos explicar os motivos que estão por trás do recuo do primeiro-ministro grego, Alexis Tsipras – que, pouco mais de uma semana após o plebiscito, aceitou todas as imposições da União Europeia e do capital financeiro.
Se a Grécia for esperar o apoio do proletariado francês, está condenada ao isolamento. Aqui no Brasil estamos vivendo uma enorme ofensiva conservadora. No dia 10 de julho, a Assembleia Nacional (que seria a Câmara de Deputados brasileira) aprovou uma lei que na prática anula a competência do equivalente francês da Justiça do Trabalho. Além disso, fixa tetos para indenizações trabalhistas. Como sempre, essas leis usam a justificativa de “retomar o emprego”. Os métodos usados para aprovar o pacote lembram muito os do presidente da Câmara dos Deputados brasileira, Eduardo Cunha (PMDB-RJ). A lei, chamada “Loi Macron”, foi aprovada porque teve o apoio do mainstream socialista e é na verdade um programa de governo de longo prazo. Durante o pleito eleitoral, ninguém discutiu esses assuntos; eles foram totalmente omitidos dos debates. A lei tem um cronograma de implantação que se estende por anos e abrange assuntos como:
- desmonte da Justiça do Trabalho;
- redução das verbas sociais;
- desregulamentação de profissões regulamentadas, como, por exemplo, a de farmacêutico;
- liberdade para o trabalho dominical;
- liberdade para o trabalho noturno;
- afrouxamento das regras de uso do solo urbano;
- afrouxamento das leis de guarda dos resíduos radioativos;
- venda de participação residual do Estado em empresas privatizadas;
- desmonte da SNCF (a estatal das estradas de ferro).
O desmonte do Estado do bem-estar social francês já está em curso. Andando por Paris, é possível ver em escolas e hospitais a faixa “Non à la fermeture” (contra o fechamento da instituição). No mês passado passou a vigorar uma lei ao estilo do pacote “fiscal” Levy-Dilma. A pretexto de combater os abusos, o governo reduz as “allocations familiales” (programa que vem do pós-guerra, de renda pública para as famílias mais pobres. Lula não inventou nada quando fez o Bolsa-Família).
A sensação é que estão todos amedrontados pelo desemprego. O trabalho precário, que até uns 20 anos atrás tinha o nome pejorativo de “travail au noir”, agora virou regra. Os jovens vegetam por décadas de subemprego em estágio, de estágio em períodos parados, de períodos parados em novo subemprego. Muitos emigram. Já é um fenômeno notado pelas estatísticas.
A sociedade, por outro lado, está ficando mais brutal e insensível. Embora os índices de criminalidade estejam estagnados, a grita por uma escalada repressiva domina a mídia e a política. Nunca se prendeu tanto. Pesquisas de opinião já detectam amplo apoio ao porte de armas e à volta da pena de morte.
A insensibilidade também se manifesta na reação do governo à tragédia dos refugiados. Mais de 3 mil deles estão na França. São, esses sim, os verdadeiros “famélicos da terra”. Vêm de nações em ruínas, como a Síria, a Eritreia, a Líbia e o Afeganistão. Em Paris, nos últimos meses, foram desalojados de acampamentos no mínimo umas quatro vezes, com extrema brutalidade. Sem lugar para ir, levantam novos acampamentos em outros lugares. Voltar para os seus países, para esses refugiados, pode significar a morte.
Não existe nenhuma estrutura para receber essas pessoas, nem o poder público está interessado em criá-la. A França não os quer, mas não pode mandá-los embora. De acordo com a lei, e também com os acordos internacionais dos quais o país é signatário, teria que asilar esses refugiados. Então, emprega mil artimanhas para que não peçam asilo. Mas – requinte extra de crueldade – também os impede de ir para outro países, para não criar problemas com a vizinhança.
Em Calais, cidade da França à beira do Canal da Mancha, a poucas dezenas de quilômetros da Inglaterra, 2 mil refugiados se amontoam há meses num acampamento. Esta já é a maior favela da França. São fustigados pela imprensa, que os acusa de “trazer a violência à França”, e pelo governo, que se omite criminosamente, afirmando que é “muito perigoso os agentes públicos entrarem nessa comunidade”. Mentira! Os voluntários das organizações humanitárias e religiosas entram e trabalham lá sem problema.
Nesse clima, a Frente Nacional nada de braçada. O seu 1º de Maio em Paris, na Place de l’Opéra, foi bem mais expressivo do que o da esquerda na Place de la Nation. Entre os adeptos da FN há muitos jovens e trabalhadores. Marine Le Pen, sua dirigente, já fez do partido um dos principais do país. Tem prefeitos, deputados e dirigentes regionais, todos eleitos pelo voto. Agora, almeja a Presidência da República.
A esquerda não-liberal (ou seja, não-socialista) está totalmente fragmentada. Não tem uma cara e um programa que possam ser apresentados ao público, e com os quais amplos setores possam se identificar, como aconteceu na Grécia e na Espanha.
Claro que isso tudo pode mudar. Grandes greves e mobilizações na última década mostraram isso. Mas o momento atual, na França, é de prostração. Madame Merkel e os bancos agradecem.