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A pesada herança histórica da China moderna

Retomada de Anqing, durante a Revolta Taiping (1850-1864)
A retomada de Anqing, durante a Revolta Taiping (1850-1864)

Os romanos chamavam de Serica o desconhecido país de onde vinha a seda, intermediada pelos povos da Ásia Central e do Oriente Médio. Correspondia ao que hoje é a China do Norte, excluída a Mongólia. Ali, a partir de aproximadamente 1050 a.C., surgiram, no vale médio do rio Amarelo (Huang he), uma série de Estados que foram se estendendo para o sul, para o vale do rio Azul (Chang jiang, mais conhecido como Yangzi). Esses Estados foram pela primeira vez unificados em 221 a.C. e, pouco depois (202 a.C.), o império assim criado passou a ser governado pela dinastia Han, que, com um pequeno interregno entre 6 e 25 d.C., durou até 196 d.C., ou seja, durou quase 400 anos. Daí o uso do nome “Han” para designar etnicamente os chineses. Esse império, a partir de cerca de 100 d.C., passou a dominar mais uma área ao sul do rio Yangzi, hoje constituída pela província de Guangdong, onde está o importante centro econômico de Cantão. Todos os habitantes dessas áreas se consideram Han e falam línguas do grupo mandarim e algumas outras de características semelhantes, das quais uma, o mandarim de Pequim e províncias vizinhas, é a língua chinesa oficial. Mas nem todos os povos da China atual são Han ou mesmo se consideram chineses, e nem todos os habitantes da China atual são considerados chineses autênticos pelos Han.

1. O Estado dos mandarins

Na China, o escravismo de tipo clássico, como o praticado na área greco-romana, não se desenvolveu. Não foi necessário. Os camponeses da antiguidade chinesa tinham um status social inferior ao dos escravos contemporâneos gregos e romanos. Só não eram comerciados. Mas estavam praticamente equiparados ao gado. Eram trancados em suas aldeias no inverno, como o gado era fechado nos currais. Com o tempo foi se desenvolvendo uma classe de artesãos, pequenos comerciantes e mercadores, acompanhando o surgimento de centros comerciais. A ascensão dessa classe urbana, entretanto, foi sempre bloqueada de todos os modos possíveis pela aristocracia. Na Antiguidade, a liberdade de movimentação necessária às atividades comerciais não era tida como direito, mas apenas tolerada; e não podiam usar seus recursos para se tornar proprietários de terra, que era um privilégio exclusivo da nobreza. Nas cidades, os não-nobres que ostentavam riqueza e tinham direito de fazê-lo eram os altos funcionários das grandes qing (famílias aristocráticas). Os mercadores que mais enriqueciam eram os estabelecidos nas estradas, fora das cidades. Estes foram se tornando exploradores de camponeses endividados, que permaneciam na terra, porém na condição de cultivadores com direito parcial a suas colheitas (metade ou um terço, conforme o lugar e a época). Mas os mercadores da China nunca obtiveram os direitos políticos trazidos noutros lugares pelo enriquecimento e a burguesia nunca chegou ao poder nas grandes cidades comerciais, como aconteceu em outras partes da Ásia e na Europa.

A distância que a aristocracia antiga mantinha com as classes inferiores era suficientemente grande para colocá-las fora da humanidade. A maioria, inclusive artesãos e mercadores, na condição de rebanho sub-humano exterior à vida social das qing, e outros na de “bárbaros”, por serem de etnias diferentes, incluídas no mundo Han em épocas diversas. A ponto de haver religiões separadas para o povo e para a aristocracia, que não reconhecia capacidade de vida espiritual nas classes inferiores. A religião da aristocracia antiga tinha como centro o culto dos ancestrais. Dos camponeses, os aristocratas sabiam que tinham algumas práticas classificadas como feitiçaria, que eventualmente podiam ser requisitadas. Caso os feitiços falhassem, os prestadores do serviço (geralmente mulheres idosas) eram sacrificados. Compare-se isso com as relações sociais da Roma antiga, que não pecavam por excesso de doçura, mas que integravam os escravos no culto doméstico das famílias patrícias e bem cedo admitiram uma representação política regular da plebe.

A separação hostil da vida espiritual da classe dominante e das classes inferiores tornou-se uma marca constante da história da China, onde até hoje os cultos religiosos são controlados pela burocracia estatal. É uma marca herdada da antiga separação entre a vida religiosa da aristocracia e a do povo, que praticava uma espécie de paganismo (geralmente referido pelos historiadores como “taoismo”, termo que o confunde com uma corrente filosófica). A forma original dessa separação foi sofrendo transformações, porque as grandes qing decaíram, as pequenas empobreceram e, em 18 a.C., os títulos de nobreza passaram a ser vendidos aos novos detentores de riqueza monetária, saídos das atividades mercantis. Logo se tornou necessário adaptar o velho culto aristocrático dos ancestrais aos recém-chegados à classe superior. E a adaptação veio sob a forma de uma espécie de agnosticismo moralista, o confucionismo, corrente filosófica de pouco sucesso durante a vida de seu criador (tradicionalmente datada entre 551 e 479 a.C.), mas que atraiu a nobreza decadente e bastarda do fim do Império Han pela importância que dá à cultura tradicional, às celebrações ritualísticas e, principalmente, à organização hierárquica da sociedade, baseada nas “três relações” de submissão: do filho ao pai, da mulher ao marido e do homem ao governante. Essas relações têm um fundamento não-religioso, mas que não impediu que o confucionismo fosse mais tarde colocado no lugar de uma religião, graças ao culto dos ancestrais, que Confúcio apreciava como instrumento de preservação da hierarquia familiar. O confucionismo é uma filosofia que renunciou a suas raízes laicas para melhor se opor à ascensão da religião popular, e depois do budismo, este percebido como religião “bárbara”, porque vinda do exterior pela rota da seda, e que por isso passou pelas “quatro grandes perseguições”, como é lembrado pela história oficial, fora as pequenas.

De seu lado, a religião popular deu origem na Antiguidade a uma filosofia profundamente relativista da natureza e da vida humana, o taoismo, do qual uma característica notável é a crítica aguda dos hábitos refinados da classe superior, expressando assim a forte tensão social existente entre as classes na China. É o que se pode ver nos escritos dos filósofos taoistas do século IV a.C. Principalmente o autor do Daodejing, Lao Dan, mais conhecido como Laozi (de quem pouco se sabe e que viveu ao redor de 400 a.C.), e Zhuang Zhou (de 370 a 300, aproximadamente) demonstram uma tomada de consciência precoce da contradição entre os interesses de estado e as necessidades do povo, entre o formalismo da sociedade estratificada e as relações humanas autênticas, que se manifestou até como exposição do lado ridículo das práticas religiosas da classe superior. E o povo, embora simplesmente continuasse apegado a sua religião natural, por efeito da opressão religiosa, terminou também desenvolvendo um lado rebelde, sob a forma de uma religiosidade refratária à influência do culto oficial. Todas as revoltas camponesas da China, até o século XIX, tiveram uma expressão ideológica “taoista”.

O abismo social que separava os donos do poder político de seus súditos nos pequenos reinos em que se dividia a China antiga foi inicialmente preenchido por cortesãos de origem plebeia, que se encarregavam da administração e das relações com o povo, livrando a nobreza dessas tarefas desagradáveis. O espaço para esse corpo social intermediário ampliou-se muito quando todos os reinos foram integrados num império unificado em 221 a.C. E o problema da fiscalização dos pouco confiáveis potentados regionais pelo estado imperial foi solucionado em 165 a.C., com a criação de um sistema de concursos para a seleção de um corpo de funcionários do Império. A regra da ascensão por concurso não impedia a nomeação dos candidatos das famílias tradicionais aos melhores postos, com base no critério da lealdade à dinastia. Os nomeados e os aprovados nos concursos formaram uma classe de letrados ligada ao poder central, depois conhecidos como mandarins, que bloqueou a ascensão da burguesia às funções políticas e reproduziu, nas relações entre o aparelho de estado e a massa administrada, o grande hiato social que sempre separou a classe dominante chinesa do povo. Não é sem razão que tais concursos foram restabelecidos, após cada grande abalo da história chinesa, por todas as dinastias posteriores, até 1901. Mas nem os inestimáveis serviços recebidos inibiram os imperadores de deixar claro que também os mandarins pertenciam a um mundo infinitamente inferior ao da nobreza. Na época Han, havia o costume de periodicamente decapitar funcionários que caíssem em desgraça. Sob as dinastias posteriores, a decapitação foi substituída por surras diante da corte.

Com a decadência do Império Han e as invasões de povos nômades, tornou-se inevitável a ascensão da religião vinda com os nômades, o budismo, assim como o surgimento de cultos religiosos populares em várias regiões da China. Porém a reconstituição da dominação aristocrática sob a forma clássica na segunda metade do século VI restaurou o distanciamento tradicional entre a classe dominante e o povo em geral e, junto com ele, a intermediação do mandarinato, cuja ideologia é o confucionismo. Por isso as dinastias Sui (581-618) e Tang (618-907), apesar de serem de origem turco-chinesa e forçadas a adotar oficialmente o budismo de seus exércitos mistos de homens de origem nômade e chinesa, não aceitaram de bom grado a fé budista de seus soldados. Sob a dinastia Sui foi criado o “budismo imperial”, com o enquadramento dos mosteiros no aparelho de estado, sob o controle das famílias da nobreza oficial (aceitas como nobres pelo imperador). E a doutrina ensinada nesses mosteiros foi adaptada à mentalidade dessa nobreza. Por exemplo, a frase de um texto budista: “a esposa conforta o marido” era confucianamente traduzida para: “a esposa reverencia o marido”. Sob os Tang, os monges foram obrigados a passar por exames oficiais, nos quais se exigia o conhecimento dos clássicos confucianos. Sendo que os Tang também se notabilizaram por lançar duas das “quatro grandes perseguições” religiosas.

Após os Tang, não sendo mais possível erradicar o budismo e os cultos religiosos populares, estes foram enquadrados, pelo mandarinato confucionista restaurado, numa lista de divindades e cultos religiosos oficialmente admitidos, cujas divindades e corpos sacerdotais passaram a depender do aval da burocracia mandarim para existir legalmente. O que forçou o mandarinato a transformar a veneração de Confúcio em religião principal, com a elevação de templos confucionistas, para que as demais divindades e cultos pudessem ser colocadas no lugar inferior que lhes cabe.

A oposição da classe dominante contra toda religião popular reaparece hoje sob a máscara do ateísmo oficial do Partido Comunista chinês. Ao povo não é permitido criar uma divindade ou santo novo sem submetê-lo à aprovação das autoridades, que também determinam o tipo de culto a ser praticado. Aos católicos chineses é imposto um pontífice nomeado pelo estado, assim como aos budistas chineses e tibetanos, enquanto a “seita” falungong sofre uma perseguição encarniçada, porque não se enquadrou no formato religioso requerido. Razão pela qual a maioria do povo adotou essa mistura de ceticismo prático e ritos tradicionais admitidos pelos detentores do poder que é hoje a religião ou irreligião geral da China.

2. Uma história bifurcada

É normal que os Estados aristocráticos entrem em choque com os efeitos sociais do desenvolvimento mercantil. No caso do Estado aristocrático chinês, porém, o choque foi extraordinariamente aguçado pela bifurcação do desenvolvimento comercial, que só se deu de modo normal na fronteira sul, na costa do Mar da China Meridional, que é continuação do Oceano Índico em termos comerciais. Ao passo que na fronteira norte, entre a Ásia Central e o centro político do Império, a rota da seda, que atravessava terras sempre disputadas por povos nômades belicosos (até o fim do império Djungar em 1759), nunca superou completamente o estágio primitivo, em que a razzia e o saque complementam o comércio normal entravado pelo estado de guerra, latente ou agudo.

Em consequência disso, depois da queda do Império Chinês clássico em 311, a reconstrução econômica recomeçada cerca de 300 anos mais tarde se dá de modo divergente, com um forte desenvolvimento do Sul, onde se expande um comércio regular com o Sudeste Asiático e a Índia, baseado no chá e nas especiarias. Enquanto que o Norte estagna, devido à retração do fluxo da seda para a Europa, invadida por povos germânicos, e que também passara a produzir seda em Bizâncio a partir do século VIII.

Isso tem uma importância decisiva na história da China, porque o Norte, em guerra permanente com os nômades e por isso mais militarizado, terminou sempre voltando a dominar a totalidade da área Han, embora o centro econômico maior fosse cada vez mais o Sul. Assim se criou uma combinação da violência tradicional da aristocracia chinesa contra as classes inferiores com a oposição entre o poder imperial centrado no Norte da China e o poder econômico centrado no Sul, combinação geradora de verdadeiras guerras do poder imperial contra o povo da China Meridional.

Uma dessas guerras se deu em torno da moeda de cobre, o qian, usada em toda a área Han desde a Antiguidade. Acontece que a expansão para o Sul e o comércio com navegadores malaios e indianos, e também arábicos mais tarde, colocou os chineses meridionais em contato com o sistema monetário baseado nos metais preciosos, principalmente na prata, metal mais usado no Sudeste da Ásia. Ora, o qian, desde a Antiguidade, era praticamente fiduciário. Mais precisamente, era fiduciário quando o poder central funcionava e podia impor o curso de suas cunhagens; então estas se depreciavam ou apreciavam, conforme o volume dos negócios e a quantidade de moeda em circulação. Mas quando a autoridade central perdia o controle do Império, as peças de cobre voltavam a ter o poder de compra correspondente a seu valor em metal. Não por acaso, a prata começou a entrar com força no comércio chinês após a queda da dinastia Tang, que imperou até 883 (oficialmente até 907), ou seja, na época de fragmentação política conhecida como “das Cinco Dinastias” (simultâneas, entre 883 e 979), quando o comércio marítimo se desenvolveu livremente no Sul. Mais tarde, após um interregno de invasões dos djürtchät e dos mongóis gengiscanidas, novamente uma dinastia chinesa passa a dominar toda a área Han: a dinastia Ming (1368-1644), que pela primeira vez é de origem meridional. Mas o predomínio do Sul durou pouco. Em 1402 volta a nobreza do Norte ao poder com o golpe de Estado de Yong Le, um membro da família Ming que chefiava o exército em Pequim. E a primeira coisa que ele faz é abrir um grande conflito com os mercadores e com o povo para impor a moeda única de cobre.

O imperador Yong Le, que reinou até 1424, não queria que a circulação da prata fortalecesse o poder econômico dos mercadores do Sul, pelas mãos dos quais passava a maior parte da prata que circulava no país. Resolveu por isso proibir a exploração de minas de prata no império; e, para evitar a fácil reprodução da moeda oficial, proibiu também a exploração privada de minas de cobre, o que gerou a mineração clandestina e, para impedi-la, uma gigantesca repressão. A prata, porém, vinha também do exterior, principalmente do Japão, que nessa época tinha minas de prata, e também levava à China enxofre para a fabricação de pólvora, além de vender ali seus excelentes sabres, para comprar seda, porcelanas e artigos de luxo. Isso era bom demais para a burguesia meridional, que recebia boa prata em troca de moeda de cobre sobrevalorizada, que os japoneses eram obrigados a obter para comprar os produtos chineses. Tão bom que o imperador Yong Le resolveu proibir a entrada de mercadores japoneses nos portos da China. Foi quando os japoneses criaram o sistema das “embaixadas diplomáticas” à China. Em cada uma delas vinham dezenas de milhares de sabres e outras mercadorias, além de prata. A reação imediata de Yong Le foi restringir as embaixadas diplomáticas japonesas a uma a cada dez anos. Em consequência, logo começaram a aparecer paradoxais embaixadas clandestinas, dirigidas a personalidades do Sul, acrescidas de um vasto contrabando dominado pelos famosos Wokou, tratados na historiografia tradicional como “piratas japoneses”. Na realidade, os Wokou eram em parte mercadores chineses forçados à vida aventurosa, e em parte japoneses, alguns deles a serviço de senhores feudais do Japão meridional. O maior dos Wokou foi o mercador chinês Wang Zhi, originário da província de Anhui (China Central), que criou um reino em Hirado, ilha próxima a Kyushu (sul do Japão) e foi assassinado ao tentar negociar um acordo de coexistência pacífica com os Ming em 1557.

Yong Le, no fim de seu reinado, não podendo mais combater ao mesmo tempo o contrabando, a burguesia mercantil, o povo inteiro das regiões de mineração e até os mandarins do sul, que já recebiam e preferiam pagamentos em prata, permite, a partir de 1423, que algumas administrações regionais aceitem pagamento de impostos em prata, criando então o liang, unidade monetária de cerca de 38 gramas de prata. Mas não levanta a interdição das minas de cobre e de prata, que seus sucessores passam a aplicar com grande empenho. Em 1448-49 há a grande revolta de Deng Maoqi, na área de mineração de prata a sul de Xangai. Em 1458 um milhão e meio de residentes das regiões mineiras são expulsos delas ou exterminados. Ainda assim, em 1565 se levanta novamente a população da área da revolta de Deng Maoqi. E em 1476 voltam a acontecer revoltas generalizadas em todas as áreas de mineração. Mas desta vez, para reprimir toda a grande área novamente em revolta, já foi necessário apaziguar parte dos mandarins com a autorização, aos mercadores e aos produtores de sal, para pagar os impostos provinciais em prata. Nova autorização se segue em 1485. A partir daí, a generalização dos pagamentos em prata torna impossível evitar a vitória definitiva da nova moeda, o que termina por levar à volta da livre exploração das minas, embora fortemente tributadas. Nunca uma simples mudança de moeda custou tanto sangue.

O peso da dominação hostil do Norte guerreiro e economicamente estagnado sobre o Sul mercantil e dinâmico manifestou-se ainda no bloqueio do avanço tecnológico, e, num dos casos, de um modo aparentemente irracional, que intriga muitos historiadores. Trata-se do encerramento abrupto das grandes navegações chinesas. Desde o século XII, a civilização material da dinastia Song Meridional (1127-1276) já estava à frente do mundo inteiro. No século XIII desenvolveu-se uma grande marinha mercante, acompanhando a expansão do comércio com o Sudeste Asiático e a Índia. Mesmo a ocupação mongol (1276-1364) não interrompeu esse desenvolvimento. No século XIV construíam-se na China Meridional veleiros de seis mastros e quatro cobertas, capazes de transportar mil homens. Ao redor de 1340 , o viajante árabe Ibn Batuta se admirou do tamanho gigantesco dos navios mercantes chineses, um dos quais escolheu para ir da Índia à China, porque oferecia apartamentos privativos aos passageiros. Esse desenvolvimento naval teve seu ápice nas grandes navegações de Zheng He, que em 1413 fez uma travessia direta do Oceano Índico, indo da costa de Sumatra à África, e, até 1433, fez mais três expedições à África. Pois bem, em 1434 o sucessor de Yong Le, o imperador Xuande (1424-35), proíbe a construção de navios transoceânicos. As navegações à África são imediatamente interrompidas. Os historiadores discutem essa “retirada” até hoje. Mas certamente o prosseguimento das grandes navegações chinesas deslocariam ainda mais o centro de gravidade da economia para o Sul e trariam maiores ameaças à política de imposição da moeda de cobre do Norte, então ainda em curso.

Essa automutilação naval da China foi verdadeiramente providencial para os portugueses, quando estes vieram impor seu monopólio comercial no Oceano Índico, após a navegação de Vasco da Gama em 1498. Quando chegaram as esquadras de Afonso de Albuquerque e Francisco de Almeida (1503), só encontraram pela frente os pequenos navios arábicos de tábuas amarradas e sem artilharia. A única oposição potencial séria aos portugueses, a do Egito, que dispunha de uma grande frota de galeras artilhadas, usada para impor tributos ao comércio entre o Mar Vermelho e o Índico, saiu de cena em 1515, quando entrou em guerra com o Império Otomano. A frota de guerra egípcia era antiquada, mas o país tinha meios técnicos e recursos para modernizá-la, o que certamente teria feito, porque podia inclusive contar com os conhecimentos técnicos dos construtores navais venezianos, que ofereceram sua ajuda para impedir o novo monopólio português, que arruinou Veneza. Mas o Egito caiu sob a dominação otomana em 1517. E os otomanos, prioritariamente voltados para a disputa da hegemonia política na Bacia do Mediterrâneo e inimigos mortais de Veneza, não davam muita importância aos acontecimentos do Oceano Índico. Esse acidente histórico, ocorrido no momento da grande expansão marítima ocidental, pôs em evidência o fato de que a presença da China, única grande potência naval a leste da África até o século XV, tinha uma importância crucial para a sobrevivência do antigo comércio que ligava a África Oriental à Índia e à China. d. Manuel, rei de Portugal, deve seu título “o Venturoso” a Xuande.

3. O primeiro encontro com o Ocidente

A restrição à navegação imposta pelos Ming de Pequim aos mercadores do Sul foi o fator fundamental que abriu também o Mar da China à penetração portuguesa e à posterior dominação do Ocidente. Mesmo depois de superada a situação de guerra civil criada pela resistência do povo à imposição da moeda única de cobre, ao redor de 1490, fortes restrições ao comércio marítimo persistiram. O imperador pretendia que os mercadores chineses autorizados a ir ao Japão só o fizessem por Ningbo (porto um pouco a sul de Xangai) e que o comércio com o Sudeste Asiático e a Índia só se realizasse pelo porto de Cantão. Mas os povos costeiros meridionais, dedicados à navegação desde muitos séculos, pretendiam continuar comerciando com o exterior em todos os numerosos portos do Mar da China. E isso foi mais uma força a empurrar a maioria dos mercadores meridionais para um retorno ao estado primitivo natural do comércio marítimo, que é a pirataria.

Quando os portugueses chegaram à China, em 1517, puderam tirar grande proveito dessa situação. Esta lhes permitiu, por um lado, graças à supressão da frota transoceânica chinesa em 1434, ter suas bases em Goa e Malaca livres de ataques das forças imperiais, flagelo que periodicamente atingia as bases chinesas “piratas” da Costa e ilhas próximas. Aliás, os portugueses só puderam instalar-se em Malaca, dependência chinesa, porque esta fora classificada como transoceânica pelo imperador. E, por outro lado, isso lhes permitiu fazer um acordo vantajoso quando a política de truculência adotada por Albuquerque no Índico não funcionou no Mar da China. Assim, após uma série de derrotas ante as forças imperiais nas águas costeiras chinesas, os portugueses, apesar de passarem à negociação em condições de inferioridade, obtiveram um excelente tratado com os Ming. Para isso bastou-lhes aceitar que seu comércio se fizesse por um único porto, que lhes foi concedido em 1557: Macau, justamente em frente a Cantão, a grande porta de acesso da China ao Sudeste Asiático e ao Oceano Índico. Em seguida puderam dedicar-se tranquilamente a liquidar seus concorrentes comerciais chineses e japoneses, dando a impressão de prestar um serviço de polícia “antipirata” ao Celeste Império. Desse modo quase conseguiram estender seu monopólio de comércio, já obtido no Índico, ao Mar da China.

Não conseguiram porque os povos do sul da China não aceitaram passivamente o estrangulamento de seus negócios tradicionais. De modo que, quando os holandeses chegaram aos mares do Oriente no início do século XVII para disputar suas rotas comerciais aos portugueses, a situação na China já estava mudada. A decadência da dinastia Ming tornara possível, desde o fim do século XVI, um ressurgimento do comércio marítimo no Sul, cujo resultado político foi a criação, pelos mercadores do Fujian (região em frente a Formosa), de um reino rebelde, possuidor de uma grande esquadra, armada de abundante artilharia, que dominou o Mar da China durante a maior parte do século XVII, e cuja existência costuma ser assinalada pelos historiadores como “ressurgimento da pirataria”. Mas o imperador de Pequim teve que reconhecer oficialmente esse reino em 1627. E por influência dele os portugueses foram excluídos do comércio com o Japão em 1638.

Mas a reação a essa nova ascensão da burguesia da China Meridional não se fez esperar. Em 1644, quando mais uma revolta camponesa toma Pequim, a aristocracia do Norte chama os seminômades mandchus da fronteira nordeste e, depois de vencer os camponeses, alia-se a eles contra o novo imperador Ming, que fora restaurado pela burguesia do Sul (1647). Toda a China do sul foi devastada, mas Macau não foi incomodada. Mesmo em meio a essa guerra, o segundo titular do reino de mercadores do Fujian, Zheng Chenggong (1646-62), citado pelos portugueses como Coxingá, nome derivado do título imperial (Guoxingye) assumido por ele, teve força para expulsar de Formosa os holandeses, então a principal potência naval europeia. Entretanto, a coalisão dos aristocratas do norte com os mandchus, militarmente superior em terra, abateu-se sobre as bases de apoio do Coxingá nas províncias de Fujian e Zhejiang e, em 1662, transferiu grande parte da população litorânea dessas províncias para o interior, assim destruindo também a maior parte do comércio marítimo chinês. Logo as marinhas ocidentais voltaram a dominar o Mar da China. E para o Japão, os navios holandeses passaram a ser o único meio de ligação comercial com o resto do mundo.

A ascensão da dinastia Qing, de linhagem mandchu, em 1644 (a última, que durou até 1911), trouxe inicialmente uma retração do comércio marítimo. A destruição da faixa litorânea reduziu extremamente as atividades dos mercadores, que, além do mais, sofreram numerosas interdições no comércio com o exterior. Continuaram abertos os portos de Cantão e Amoy (hoje Xiamen, no Fujian), além de Macau, mas os navios de maior porte que neles circulavam eram principalmente portugueses, holandeses, ingleses. Essa política hostil à burguesia do Sul, resultado natural da aliança que determinara a invasão, foi reforçada quando os mandchus, apesar de serem budistas, perceberam que o único meio de organizar um aparelho de Estado eficiente e fiel, sem abri-lo à burguesia mercantil que vieram combater, era valer-se do mandarinato, com sua ideologia da organização hierárquica da sociedade, o confucionismo. Os Qing restauram os concursos para a carreira de letrado e instauram o culto estatal de Confúcio. Razão pela qual o novo Estado é lembrado pelo historiador Jacques Gernet como “Império Confucionista”. Mas a relativa paz social de que gozou o império na primeira fase da dinastia Qing (até meados do século XVIII), se deve principalmente às medidas favoráveis aos camponeses, principalmente a diminuição de tributos, o que lhe permitiu vigiar eficazmente a inquieta burguesia e a classe proprietária chinesa, que se sentia oprimida (e humilhada pela famosa trança única sobre a nuca, tornada obrigatória para que os chineses não fossem confundidos com os mandchus).

A China dos Qing tornou-se praticamente autárquica até meados do século XVIII. A extensão da área unificada sob a dominação Qing parecia tornar possível aos chineses viver sobre seus próprios recursos. A Inglaterra, que em 1715 havia aberto uma feitoria em Cantão, de onde importava principalmente porcelanas, chá e panos de seda, envia em 1793 lord George Macartney a Pequim, para pedir a abertura dos portos chineses às novas manufaturas inglesas. O imperador Qianlong (1735-96) responde que a China não tinha a menor necessidade de manufaturados ingleses. De fato, não só a agricultura da China era muito eficiente, como muitas manufaturas chinesas ainda utilizavam técnicas mais avançadas que o resto do mundo.

Porém, uns poucos portos bastam para estragar uma autarquia. Certos produtos da China sempre foram muito apreciados no exterior, como a seda, as porcelanas, os utensílios de laca. A seda passou a ser produzida pelos europeus na Idade Média, mas o século XVII trouxe a voga da porcelana chinesa na Europa; e logo em seguida veio o costume de tomar chá. “Chá” é uma palavra chinesa. Em troca, nenhum produto europeu atraía significativamente os consumidores chineses. Isso resultou num superávit constante do comércio exterior e numa acumulação de prata no país. O superávit não era novidade, pois já ocorria desde as grandes navegações chinesas; e a acumulação de prata havia deixado de ser um problema político após sua aceitação oficial como metal monetário. O que mexeu com a autarquia chinesa foi o volume crescente do comércio com a Europa durante todo o século XVIII, a ponto de mudar a vida de uma parte importante da população. Nas províncias de Guangdong (onde está Cantão) e Fujian, as atividades artesanais e comerciais logo se tornam mais importantes do que a produção agrícola e em toda a costa do Mar da China as plantações de chá deslocam a agricultura de subsistência. Isso é acompanhado de um crescimento populacional para mais do que o dobro entre os recenseamentos de 1741 (143 milhões de habitantes) e 1794 (313 milhões), o que torna a China dos Qing dependente da importação de arroz. Qianlong não se dava conta de que sua autarquia estava se encerrando.

Enquanto isso, as marinhas das potências europeias cresciam e tomavam o Oriente de assalto. A Índia era disputada por franceses, ingleses e holandeses. E a dominação da Índia mudou o equilíbrio de forças nos mares orientais a favor do Ocidente. Em 1757 (batalha de Plassey) a Inglaterra é vitoriosa na Índia e, em 1773, a Companhia das Índias impõe seu monopólio de comércio do ópio indiano, que muitos chineses gostavam de fumar.

Em 1820 a China importou cerca de 5.000 caixas de ópio, o que refletia um crescimento moderado do consumo (4.000 caixas em 1790). Mas entre 1820 e 1830 a importação sobe a 30.000 caixas. Não é que os chineses tivessem subitamente passado a fumar em massa. É que em 1790 a produção inglesa de ópio engatinhava e a oferta era irregular; e por um tempo continuara assim porque a Inglaterra, envolvida na guerra de independência americana (desde 1776) e nas guerras napoleônicas (até 1815), só pudera organizar a exploração da Índia a partir de 1818. Em seguida, com ópio abundante nos portos, as oportunidades de obtê-lo a preços estáveis aumentaram e os mesmos chineses que antes fumavam pouco passaram a fumar regularmente, além dos outros que foram mais facilmente atraídos ao hábito. E assim, depois do fim da autarquia, era o superávit externo que se encerrava.

Foi só quando o superávit comercial com o Ocidente acabou que os Qing se deram conta de que precisavam dele para sobreviver. Porque a burguesia chinesa meridional, que lutara a favor da dinastia Ming, e resistira aos invasores mandchus vindos em socorro da aristocracia do Norte até 1662, só terminou por se conformar com a dominação Qing porque a paz lhe deu algum enriquecimento. Este veio com o constante aumento das exportações para o Ocidente, que vivia o longo período de expansão subsequente ao fim das guerras de religião europeias em 1648. Foi isso que deu à China o desenvolvimento da agricultura e das manufaturas, juntamente com a grande expansão demográfica do século XVIII. E o superávit externo mais a política de apaziguamento dos camponeses deram os quase 100 anos de paz social do Império Confucionista. Só que o comércio com o Ocidente, ao mesmo tempo que sustentava o superávit externo chinês, preparava problemas futuros; e não só devido ao desenvolvimento das marinhas de guerra ocidentais, mas também porque o crescimento das manufaturas aumentava a importância da agricultura mercantil na China. As cidades chinesas, que na época da visita de Ibn Batuta (século XIV) se espalhavam pelos campos cultivados e viviam da agricultura local, na época dos Qing são centros manufatureiros concentrados (pelo menos as da costa), cujo abastecimento vem de cada vez mais longe, passando a vir também do exterior desde 1728.

As manufaturas, como sempre, não trazem felicidade a todos. No Norte, mais prejudicado pela cessação do comércio com o Japão, a diminuição da produção de alimentos aumentou a miséria, que já era grande sob os Ming, e lá recomeçaram as revoltas camponesas desde 1774. Nesse ano, a seita “taoista” Bailianjiao (Lótus Branco), que aparecera pela primeira vez em 1622, no tempo da crise dos Ming, ressurge com uma grande revolta, que é ferozmente reprimida. O Sul teve mais cerca de 30 anos de paz relativa, por ser mais favorecido pelo comércio com o Ocidente. Ali a importação de arroz revelava o crescimento das manufaturas e das plantações de chá, o que trazia benefícios materiais à maioria do povo. Essa situação mudou quando o comércio com o Ocidente passou a ser deficitário, porque então o poder aquisitivo da moeda divisionária de cobre, recebida por artesãos e trabalhadores das plantações de chá, começou a cair em relação à prata que ia ficando rara; e o arroz importado acompanhava a prata.

4. O choque com o Ocidente

Para a Companhia das Índias Orientais inglesa, vender ópio aos chineses foi a grande solução para não mais ter déficit com a China. Em seu projeto, os ingleses foram favorecidos, como os portugueses no século XVI, pela oposição imperial ao enriquecimento dos mercadores do Sul e a consequente indiferença com os prejuízos que os estrangeiros pudessem lhes causar. O comércio do ópio fora proibido em 1729, muito antes do monopólio inglês, e de novo em 1795, 1800, 1822 e 1829, o que indica que o contrabando sempre reflorescia. É que as proibições só atingiam os navios chineses, não os estrangeiros. Ou seja, navios chineses carregando ópio eram confiscados e seus tripulantes presos; navios estrangeiros passavam sem incômodos. Só em 1834 os Qing se decidiram a reprimir a distribuição de ópio dos ingleses, agora monopolistas, a seus agentes comerciais na China. A reação imediata dos ingleses foi bombardear os fortes do estuário do Zhu jiang (rio das Pérolas), no fundo do qual está Cantão. Nada diferente do que haviam feito os portugueses entre 1519 e 1555. Só que agora os únicos que tinham uma força de guerra naval eram os ingleses. O Império recua e o ópio inglês volta a entrar na China.

A dinastia Qing não sabia avaliar com precisão o perigo representado pelos ingleses, mas estava preocupada com o retorno da guerra social. O Sul já estava novamente em revolta. No início do século surgira a poderosa sociedade secreta conhecida como Tríade (Sanhehui), que em 1802 organizara uma revolta geral no Guangdong (a importante província onde está Cantão), revolta que se estendera ao Guangxi (província a oeste do Guangdong) em 1820, que se reacendera no Guangdong em 1832 e iria explodir mais uma vez no Guangxi em 1836. Em meio à tensão social desses anos, os Qing hesitam sobre o que fazer com os ingleses, enquanto a arrecadação em prata diminui, porque o principal imposto interno da época incidia sobre as terras e os proprietários tinham cada vez menos prata para pagá-lo. Porém ao ver a importação de ópio de 1838 chegar a 40.000 caixas, os Qing tentam mais uma vez impedir sua entrada em 1839. Dá-se então a famosa Guerra do Ópio de 1840-1842.

Para evitar a guerra, o conselheiro da corte Xu Naiji vinha propondo uma taxa de importação em prata desde 1836. Mas em 1839 o imperador Daoguang (1820-1850) envia a Cantão outro conselheiro, Lin Zexu, com plenos poderes, que declara a proibição total, apreende 20.000 caixas de ópio e ordena aos mercadores ingleses o abandono imediato do porto. A proposta de Xu Naiji fora recusada porque Lin Zixu havia explicado ao imperador que a taxa, se fosse baixa, seria inócua e se fosse alta, boa parte do ópio entraria por contrabando, o que enriqueceria os mercadores de toda a Costa do Mar da China. Depois veio a guerra, na qual os ingleses não só bombardearam fortes e cidades e ocuparam ilhotas costeiras, como também desembarcaram tropas junto a Cantão para atacá-la em 1841. As tropas invasoras não chegaram a somar 5.000 homens, mas, por incrível que pareça, não foram esmagadas. Em vez disso, sua retirada foi comprada por 6 milhões de liang. É que os conselheiros acharam temerário deslocar tropas Mandchus de outros pontos da Costa para Cantão e também não queriam armar milícias provinciais na área costeira. Ou seja, os ingleses não foram esmagados em Cantão porque os conselheiros achavam que os inimigos mais perigosos não eram eles e, portanto, o enorme aparelho militar Qing devia ser mantido em sua ocupação principal, que era vigiar os chineses. E a comprovação final disso se deu no Tratado de Nanquim, que encerrou a guerra em 1842: os Qing, não só aceitaram a reabertura do porto de Cantão e a abertura dos portos de Xangai, Ningbo, Amoy e Fuzhou (no Fujian, em frente a Formosa) ao comércio inglês, mais o pagamento de uma indenização de 21 milhões de liang, como também aceitaram suprimir o monopólio de distribuição interna de mercadorias importadas, pertencente ao Gonghang (o “Kohong” dos comentaristas ingleses), que era a corporação oficial dos mercadores de Cantão. Mas, segundo o critério da corte de Pequim, o resultado da guerra não teria sido inteiramente mau para a China; pelo menos se evitou um surto do contrabando. Nesse quadro, a cessão de Hong Kong à Inglaterra, no mesmo tratado, não foi mais que um brinde pelo benefício obtido.

É bom lembrar que isso aconteceu em 1842, quando as esquadras ocidentais eram constituídas por navios de madeira, armados com canhões de antecarga, que a China sabia fabricar e suas tropas de desembarque usavam fuzis que a China também sabia fabricar. Sendo que a Inglaterra tinha dificuldade em recrutar tripulantes para sua marinha, ao passo que a China tinha uma enorme população litorânea afeita à vida no mar pelo menos cinco vezes maior que a da Europa inteira. É bom lembrar isso, porque a história oficial costuma apresentar a China da 1ª Guerra do Ópio como uma pobre coitada, vítima impotente da invencível Inglaterra, colocando-a abaixo das minúsculas cidades-Estado árabes do Golfo Pérsico, hoje federadas nos Emirados do Golfo, que nos anos 50 do século XIX ainda se mantinham no mar, defendendo seu comércio com a África Oriental e a Índia contra os ingleses, sendo por isso sua região conhecida então como Costa dos Piratas. Os ingleses devem ter tomado dos chineses do Norte o costume de chamar de “pirata” todo povo navegador que não se submetesse a eles.

Depois veio a 2ª Guerra do Ópio, em 1856, declarada pela Inglaterra por causa do apresamento, pela polícia marítima imperial, de um navio chinês, mas portador de bandeira inglesa. É que os mercadores do Sul estavam alugando a bandeira inglesa para escapar das restrições imperiais ao comércio marítimo chinês. Em 1856, porém, já estava em curso o acontecimento mais importante do século XIX: a guerra civil iniciada no Sul, que decidiria o destino da China. Acontece que após a 1ª Guerra do Ópio, Cantão perdera importância comercial. A entrada de estrangeiros em posição dominante no comércio de Cantão e a queda dos recursos do governo provincial, voltara a revigorar a Tríade, que era hostil aos ocidentais. Estes, buscando um lugar mais seguro, passaram a privilegiar o porto recém-aberto de Xangai, desviando o comércio mais para o norte. As províncias mais a sul começaram a derivar para a miséria. A grande revolta estoura no Guangxi, onde ocorrera a última insurreição da Tríade. O líder da revolta é um filho de aldeões empobrecidos, Hong Xiuquan, reprovado nos concursos para a carreira de letrado, que, ao redor de 1849, organiza a Baishangdihui (Sociedade dos Adoradores de Deus). A ideia de um deus supremo (shangdi) é novidade; influência de missionários cristãos. Mas a organização da sociedade e o programa da revolta são muito típicos dos camponeses da China tradicional: igualitarismo (propriedade comum da terra) e feminismo (direitos iguais para as mulheres). Esse tipo de programa, que fora levantado por todas as grandes revoltas “taoistas”, desde a Antiguidade, revela que se trata de um puro movimento de camponeses e artesãos, sem liderança burguesa. E só podia ser assim, porque a burguesia mercantil da China Meridional, que tantas vezes se revoltara contra os Ming de Pequim, e depois contra os Qing, por meio de uma nova “pirataria vietnamita”, até o início do século XIX, finalmente estava morta como força política e se resignara a alugar a bandeira inglesa para simplesmente sobreviver no comércio de cabotagem. Por isso a revolta surge no campo em 1850, em seguida atraindo a vasta rede urbana de artesãos e pequenos comerciantes da Tríade para o movimento de Hong Xiuquan, que funda no Guangxi, em 1851, o Reino Celestial da Grande Paz, de onde deriva o apelido da revolta: Taiping (Grande Paz).

A revolta vai se espalhando do Sul para o norte, pelas províncias de Hunan, Jiangxi, Zhejiang e Jiangsu. Em 1853 toma Nanquim sobre o baixo Yangzi, antiga capital da China Meridional, que se torna seu centro político. Continuam avançando para o norte e tentam atacar Pequim em 1854, mas fracassam pela desorganização das linhas de suprimento de suas tropas. Entretanto, continuam firmes no Sul, onde infligem uma grande derrota aos exércitos Qing em 1856. Após esse desastre, não só a China Meridional parecia perdida, mas a própria dinastia Qing. Porque em 1853 ressurgira no Norte, com grande violência, o Lótus Branco, agora apelidado de Nian. A rigor, a dominação Qing teria acabado quando do ataque Taiping a Pequim, não fosse o socorro da classe superior chinesa. Desta vez, em lugar da alta nobreza do Norte, que os mandchus haviam destruído entre 1673 e 1681 para dominar sozinhos, é a classe dos letrados que vai impor a dinastia Qing ao povo chinês. Os mandarins se mobilizam para salvar o Império Confucionista. Propõem e obtêm a criação de um tributo sobre a circulação de mercadorias, o lijin (1853), e emitem moeda-papel para financiar o recrutamento de três exércitos e a construção de uma frota de guerra para controlar a navegação no Yangzi. Em 1862 recebem o apoio das potências ocidentais, porque estas haviam sido impedidas de entrar no Yangzi pela artilharia Taiping em 1858, e porque os letrados lhes concederam a isenção do lijin para mercadorias estrangeiras. E é com a ajuda de mercenários europeus que eles alcançam a vitória dois anos depois. E assim, o mesmo serviço que fora prestado aos Mandchus pela aristocracia do Norte, quando da guerra de instauração da dinastia Qing 1644-62, foi prestado agora pelos letrados, desta vez com apoio ocidental, para a tomada de Nanquim em 1864 e a dispersão dos Taiping em 1866; assim como para vitória sobre os Nian em 1868.

Enquanto esse grande drama se desenrolava, prosseguia a pirataria (de verdade) das potências ocidentais. Apesar do tratado de Tianjin, que deveria encerrar a 2ª guerra do ópio em 1858, os ingleses houveram por bem continuar as hostilidades. O objetivo agora era o saque da China. E os atos de guerra continuaram, em meio à guerra civil chinesa, logo aumentados pelos franceses, que também queriam uma parte do butim, sempre repetindo o mesmo formato de ataques costeiros, apenas ressaltando-se a novidade do raid anglo-francês de 1860 até a abandonada Pequim (a corte, temendo os Nian, fugira para o Jehol, na Mongólia), onde incendiaram o Yuanmingyuan, o palácio de verão do imperador Qianlong, construído segundo o projeto de um jesuíta que frequentara a corte. Os principais resultados obtidos pelos ocidentais nessa sequencia de hostilidades foram, além da isenção do lijin, os direitos de extraterritorialidade para suas instalações (direitos já recebidos pelos ingleses em 1843), agora também no porto de Tianjin (na Costa próxima a Pequim, 1860). Depois, quando a frota construída pelos mandarins conseguiu impor-se no Yangzi, os ingleses receberam os mesmos direitos em Hankou, porto sobre esse rio (na província interior de Hubei) e em Cantão (ambos 1861); em seguida, em Jiujiang (outro porto sobre o Yangzi, mas na província de Jiangxi, mais a jusante, 1862) e, em 1863, todas as potências ocidentais receberam a concessão internacional de Xangai, cuja área portuária se tornaria uma cidade europeia e que passaria a ser o grande porto do comércio transpacífico dos EUA.

A China que sai da guerra dos Taiping e Nian não é mais dominada pela dinastia Mandchu, mas sim pelos mandarins chineses, só que erguidos contra a construção de uma nação chinesa, porque a guerra civil se dera em meio a uma agressão estrangeira e o povo chinês fora vencido por eles, em aliança com os mesmos estrangeiros. As estimativas cautelosas do massacre oscilam entre 20 e 30 milhões de vítimas. Talvez outra estimativa possa ser feita com base na queda de 30% da arrecadação dos tributos agrícolas, considerando que mais de 90% da população total de cerca de 350 milhões antes da guerra civil vivia no campo. As áreas mais afetadas pela repressão ficaram praticamente desertas. O jornalismo ocidental da época chegou a falar da China “aliviada da pressão demográfica”. As grandes fomes, porém, começaram a acontecer depois do “alívio” (exemplos famosos: 1876-79, de 9 a 13 milhões de mortos; 1892-94, um milhão de mortos; 1920-21, um milhão de mortos; 1928, três milhões de mortos). O Yangzi, o grande rio navegável da China é aberto à navegação das potências ocidentais, que assim passam a ter acesso direto ao comércio interno chinês. A administração das alfândegas marítimas, que fora entregue aos ingleses durante a guerra civil, assim continua depois, porque os ingleses têm indenizações a cobrar. Deixando de lado o que isso significa em termos de soberania chinesa, é preciso reconhecer que a arrecadação melhorou. De qualquer modo, as alfândegas externas, com sua taxa única de 5%, tinham pouca importância. O tributo principal do novo fisco organizado pelos letrados em 1853 é o lijin, seguido de impostos sobre o consumo. A classe mercantil chinesa, sofrendo restrições ao comércio e tributos de que estão livres os estrangeiros, fica reduzida ao papel de burguesia compradora, expressão portuguesa de Macau, que logo passa para outras línguas europeias, para indicar uma sujeição semicolonial. O caso da China, porém, é específico, porque ali o inimigo maior da burguesia era o estado de seu próprio país e isso não deveria ser confundido com o caso dos países capitalistas periféricos em geral, onde a burguesia sempre tem acesso ao poder e pode influir em alguma medida nos rumos do Estado nacional.

Em termos políticos, o efeito mais importante da grande guerra civil do século XIX, é que a China deixa de ser um império centralizado. Isso porque a vitória sobre os Taiping e Nian só fora possível com a criação de forças mercenárias regionais recrutadas pela pequena nobreza rural a serviço dos letrados fiéis aos Qing, sustentados pelas receitas dos novos tributos. Esse é o novo aparelho militar feudal que mantém de pé o Estado Qing. Os estandartes (exércitos) imperiais dos mandchus passam a um plano secundário nas funções repressivas, ficando mais voltados para a guarda das fronteiras e a proteção direta do imperador. Em consequência, as províncias adquirem grande autonomia e lá fica a maior parte das receitas tributárias: 4/5 do lijin e 3/4 do resto. Quer dizer, o império vitorioso, além de descentralizado, é impotente.

Depois da revolta Taiping, o único acontecimento importante da história da China da segunda metade do século XIX é a revolução Meiji do Japão. A partir de 1871, o Japão, que também sofrera bombardeios das marinhas ocidentais, começa a industrializar-se e a impor-se como potência, o que acende nova esperança em muitos chineses. Surge entre as camadas superiores da população, principalmente no Sul, uma corrente a favor de reformas semelhantes às japonesas, enquanto que os letrados passam a se apresentar como líderes naturais de uma nova potência chinesa em construção. Isso porque os letrados, que confundiam industrialização com reforma social, pretendiam já estar fundando a nova China em Xangai, onde estão os novos arsenais e estaleiros construídos em 1865-67, que já em 1870 estão entre os maiores do mundo, e, principalmente, em Mawei, junto ao porto de Fuzhou, onde estão os estaleiros navais mais modernos, construídos com a ajuda de técnicos franceses em 1866, por iniciativa de Zuo Zongtang, o exterminador dos Taiping. De Mawei sai a primeira canhoneira a vapor chinesa em 1868.

Os letrados, porém, não pretendem apoiar-se no povo para quebrar os obstáculos ao prosseguimento de sua industrialização, e menos ainda pretendem aliar-se à burguesia, pela qual têm uma repulsa atávica, que vem das raízes históricas do mandarinato. Seu campo de ação é a corte, onde buscam o apoio de personagens influentes, também impressionados com o Japão. E é nesse terreno bloqueado que se dá o choque entre “modernizadores” (na realidade, ocidentalizadores) e conservadores. A divisão na corte se acirra com a morte do imperador Tongzhi (1852-75) e a ascensão da rainha-mãe Cixi, em nome do herdeiro, então com 4 anos. A regente, que, no fim de seu reinado, concedeu longas entrevistas à americana Pearl Buck, das quais resultou uma biografia romanceada (“Tzü Hsi, Mulher Imperial”), se orgulha de ser mandchu, o que a livrara de ter os pés enfaixados quando criança, e denota não confiar em chineses em geral, provavelmente com boas razões, considerando que os melhores exemplares que conheceu eram os letrados da corte. Cixi não gosta de ocidentais (“homens de olhos de tigre”) e bloqueia as iniciativas dos letrados “modernizadores”, que são pela industrialização subordinada às potências europeias, exatamente o inverso do que fizera o Japão. Além disso, a principal reforma da revolução Meiji fora a eliminação das forças militares feudais, substituídas em 1872 por um exército baseado na conscrição universal masculina. Na China isso é impensável para os homens do aparelho de Estado em geral, mandchus e chineses, que pretendem guardar os frutos de “sua” vitória na guerra civil. Para os conservadores em particular, o interesse maior é torpedear os projetos de centralização fiscal, que acabariam com o poder dos governos provinciais e das milícias feudais que, são suas bases de sustentação. E os letrados, criadores desse Estado, depositam todas suas esperanças na ascensão de um imperador modernizante.

Enquanto isso, fora da corte, os conservadores, que não admiram o Ocidente nem têm boas relações com os ocidentais, ficam com as mãos livres para combater a influência dos letrados, apoiando-se, por incrível que pareça, no povo, valendo-se do sentimento popular profundamente antiocidental e do ódio geral aos letrados autoritários, centralizadores e ocidentalizantes. E o efeito social disso é a volta das sociedades secretas, agora parcialmente secretas, porque discretamente estimuladas pela corte. Essas novas sociedades populares não atingem o campo, onde a destruição da guerra ainda era visível e reinava a apatia, mas florescem nas cidades depois de 1875. A que se torna mais importante é uma revivescência urbana do antigo Lótus Branco, porque apoiado pela corte. Sua implantação se limita à região mais próxima da capital, principalmente as províncias de Shanxi e Hebei (esta última sendo a da capital), mas ganha fama internacional ao organizar manifestações contra missionários cristãos e seus conversos chineses, chegando a realizar ataques a lojas que vendem produtos importados. Seus membros são apelidados pelos ingleses de “boxers”, por seus exercícios de arte marcial chinesa. Eles não precisavam esconder-se.

Esse é o Império absolutista que o filósofo inglês Bertrand Russel disse ser o país mais democrático do mundo. De fato, o país que ele viu no início do século XX encontrava-se em estado de liberdade geral. Os estrangeiros tinham suas próprias forças militares e eram governados por suas respectivas embaixadas e consulados, a polícia corrupta dividia suas tarefas com os serviços de segurança organizados pelos clãs (guanxi) em que tradicionalmente se dividem os chineses, sendo que os clãs haviam criado também um sistema judiciário paralelo, para se livrar do aparelho judiciário Qing, no qual uma testemunha, sendo do povo, podia ser submetida a um procedimento regulamentar de tortura. Esse modo de vida dos súditos do Império Qing espalhou-se pela diáspora, como puderam notar os americanos em São Francisco da Califórnia, onde os habitantes da Chinatown não chamavam a polícia e resolviam seus litígios sem recorrer ao judiciário dos EUA.

5. A reconquista da soberania

A nova relação de forças na sociedade chinesa, estabelecida sob a agressão externa e os efeitos da grande guerra civil do século XIX, entre, de um lado, a massa degradada de camponeses, artesãos e proletários urbanos, acrescida de um operariado industrial nascente, e, de outro, o estado chinês dos letrados, protetor das novas relações capitalistas, que se desenvolvem sob a tutela estrangeira, é o novo quadro no qual se movem as classes sociais e vão surgir as novas forças políticas da China moderna.

Enquanto manteve sua plena dominação sobre a China, até 1853, a dinastia Qing foi um baluarte contra a intrusão ocidental, embora cada vez menos eficaz, por impedir o desenvolvimento de uma classe mercantil chinesa e se recusar a mobilizar o povo chinês contra a agressão externa. Já a elite dirigente de letrados que ascende ao poder a partir de 1853, busca deliberadamente associar-se às potências ocidentais em condição subalterna, porque quer salvar a dinastia Qing, e não defender a burguesia chinesa. Mas nessa associação subalterna, a dinastia Qing se torna supérflua. Porque, depois de ter se mostrado incapaz de organizar a luta contra os Taiping, a única base social chinesa que lhe resta no fim da guerra civil, os mandarins tradicionais, começa a perder autoridade intelectual, a partir da fundação do Tongwenguan, escola de línguas e ciências ocidentais de Pequim em 1862, primeira escola superior de tipo europeu. A multiplicação de instituições desse tipo (dois anos depois já há mais duas, em Xangai e Cantão) leva à extinção dos concursos para a função de letrado tradicional em 1901. E a dinastia, de 1853 em diante, não fez mais que sobreviver, até a abdicação do último imperador, Xuantong (1908-12, depois conhecido por seu nome pessoal, Puyi), neto de Cixi.

A ocidentalização da China termina se dando pelo esvaziamento do comércio tradicional interno. Os grandes massacres de 1853-68 combinados com o predomínio crescente dos capitalistas ocidentais e a concentração das iniciativas industriais nas cidades da Costa vão gradualmente criando nessas cidades uma economia integrada ao mercado mundial, dominado pelas grandes potências. É na Costa que surge um proletariado industrial de tipo ocidental, uma burguesia de negócios mais ligada ao Ocidente do que ao interior da China e uma nova intelectualidade formada em universidades de tipo ocidental e no exterior. Ao mesmo tempo, o campo se diferencia segundo o grau de integração à economia capitalista. Nos anos 20, nas planícies do baixo Yangzi e da China Meridional, onde se desenvolve a agricultura comercial, 26% das terras estão concentradas nas mãos de 3% dos proprietários, muitos deles absenteístas, residindo nas grandes cidades costeiras, enquanto que nas províncias interiores, a decadência econômica atinge os próprios senhores feudais, que vivem na pobreza, explorando camponeses miseráveis.

O último Lótus Branco é abandonado pela corte quando, em reação a um movimento popular de cerco das sedes de embaixadas, uma coalizão de potências estrangeiras lança uma grande expedição “punitiva” contra Pequim em 1900. Cixi e o Imperador Guangxu (1889-908) simplesmente se retiram para Xi’an, na província interior de Shaanxi, abandonando a cidade de Pequim e a província de Hebei, onde ela se encontra, à devastação das tropas inglesas, francesas, alemãs e japonesas. Em seguida se dá a dispersão das sociedades secretas, que passam a buscar a sobrevivência em atividades semilegais ou ilegais, enquanto nas áreas rurais do Interior uma parte das milícias feudais, abandonada pelos senhores empobrecidos, cai no banditismo. A empreendedora pequena burguesia do Guangdong, Fujian e outras áreas costeiras emigra em massa para as colônias francesas, inglesas e holandesas do Sudeste Asiático, onde encontra melhores condições para desenvolver seus ofícios e negócios, indo assim formar uma grande diáspora, que lá se encontra até hoje.

Nessa China esvaziada de sua alma, a nova classe intelectual, exatamente como os letrados ocidentalizantes do século XIX, procura a salvação do estado chinês no exterior. Até 1919 continuam atraídos pelo exemplo do Japão, em cujas universidades os filhos dos mais abastados iam buscar formação. Os homens que lideram a falsa revolução de 1911, são outsiders da sociedade chinesa. Sun Yat-sen, o “Pai da República”, é do Guangdong, de um lugar próximo de Macau, mas passa a infância em Honolulu, no Havaí, estuda medicina na colônia inglesa de Hong Kong e funda em 1905 sua Liga revolucionária com estudantes chineses reunidos em Tóquio. Encontra-se na Inglaterra quando estouram os motins militares que resultam na proclamação da república. Outro grande personagem da China republicana, Chiang Kai-shek, também do Guangdong, que funda com Sun Yat-sen em 1911 o Partido Nacionalista (Guomindang), é um militar de carreira educado no Japão. E a República, cujo único atrativo para os militares amotinados era a inutilidade da monarquia mandchu, revelou-se como pura ideia importada do Ocidente quando a corte enviou Yuan Shikai, comandante do exército Qing, para negociar uma solução pacífica. A direção republicana, um mês e meio após a posse de Sun Yat-sen, oferece a presidência a Yuan Shikai, que aceita a oferta. Sun Yat-sen exila-se no enclave estrangeiro de Xangai e Yuan Shikai faz o imperador abdicar.

É um caso raro de revolucionários vitoriosos que colocam o chefe dos reacionários no poder. Na realidade, o arranjo que levou Sun Yat-sen ao exílio e Yuan Shikai ao poder foi uma exigência das potências estrangeiras. Arranjo obviamente insustentável. A morte de Yuan Shikai em 1916 leva à fragmentação da China. Os principais chefes militares de província tornam-se independentes. Inicia-se o período (1916-27) dos dujun ou governadores militares (mais conhecidos como “senhores de guerra”, expressão traduzida do inglês, warlords), cada um buscando o apoio de uma potência estrangeira. Mas 1916 já é a Grande Guerra de 1914-18, durante a qual há a Revolução Russa de 1917. Em seguida, as potências europeias vencedoras, que estão economicamente quebradas pela guerra e politicamente abaladas pela Revolução Russa, entregam ao Japão, seu aliado na guerra, os territórios alemães da costa chinesa e a tutela política da China. Isso dá origem ao Movimento 4 de Maio (1919), pela devolução daqueles territórios à China, uma vez que esta, apesar de suas divisões internas, também fora aliada das mesmas potências. O movimento é impulsionado por estudantes, intelectuais desiludidos com a política anexionista do Japão e parte da burguesia mais ligada aos interesses europeus, mas igualmente impressionada com a dimensão das manifestações populares, cuja abrangência territorial colocava pela primeira vez em termos práticos a perspectiva de uma nação chinesa.

O ano de 1919 é o ponto de virada da intelectualidade, que passa a se afastar do Japão e a olhar a Rússia revolucionária como a nova esperança de salvação. Em 1921 é fundado o Partido Comunista chinês, que cresce explosivamente (300.000 filiações no primeiro ano). A influência avassaladora do Movimento 4 de Maio entre os intelectuais força também o Guomindang (Partido Nacionalista) a mudar de rumo. Em 1923 Sun Yat-sen faz um acordo de cooperação com a União Soviética e vai instalar a sede do partido em Cantão, onde tem prestígio (conseguira fazer-se eleger presidente da província em 1921 mas fora derrubado pelo dujun local em 1922), envia Chiang Kai-shek a fazer um estágio numa academia militar da URSS, enquanto esta faz o Partido Comunista chinês entrar no Guomindang. A virada política e a entrada do partido comunista faz com que o Guomindang se consolide como partido com base popular própria, e não mais como mera expressão do prestígio de Sun Yat-sen. Em 1924 já é o partido dominante no Guangdong, província que se torna um grande centro de agitação política. No início de 1925 Sun Yat-sen reassume o governo do Guangdong e chama conselheiros russos, que vão se instalar em Cantão. Mas já antes de assumir o governo, em 1924, havia criado a academia militar de Huangpu (perto de Cantão, também transcrita Whampoa), enquadrada por oficiais russos, que forma 6.000 oficiais até 1926 e cria um exército de 85.000 homens, recrutados e comandados pelo Guomindang, que então se dizia regido pelo centralismo democrático. Essa força disciplinada se torna um pólo de atração das forças políticas do Sul. Cinco dujun das províncias meridionais aceitam a liderança do Guomindang para tentar a reunificação da China. Mas reunificar a China com um exército do Guomindang aliado a dujun feudais mantidos por patronos externos exigia previamente a destruição do Partido Comunista.

Entre 1924 a 1927 ocorrera uma grande expansão dos sindicatos e das uniões camponesas nas províncias ribeirinhas do Mar da China e do baixo e médio Yangzi. Esse movimento social mudara a relação de forças entre as classes a favor do operariado ocidentalizado das cidades industriais e dos camponeses da área de agricultura comercial, que novamente passara a se organizam em massa, pela primeira vez desde a grande derrota dos Taiping.

O Partido Comunista chinês vem da mesma raiz histórica de onde viera o Guomindang, pois ambos foram criados por intelectuais ocidentalizados, sucessores dos letrados do século XIX, imbuídos da ideia de construir uma nação chinesa. Inicialmente, nem os fundadores do Guomindang representavam a burguesia chinesa, nem os militantes socialistas que organizaram Partido Comunista representavam o proletariado. O que diferencia qualitativamente o Partido Comunista é a revolta que lhe dá vida, pois ele é filho do Movimento 4 de Maio, diferentemente do Guomindang, que nascera dos motins anti-Qing de 1911. A diferença é qualitativa porque o Guomindang, retomando o projeto de industrialização dos letrados do século anterior, aceita a tutela estrangeira como um mal necessário, ao passo que o Partido Comunista continua o Movimento 4 de Maio, que quer a nação independente. A cidade mais europeizada da China, Xangai, foi onde mais cresceu o Partido Comunista nos primeiros anos e foi isso que fez dele o partido do operariado chinês, uma vez que Xangai era também a cidade mais industrializada. E o espírito anti-imperialista do Movimento 4 de Maio fez do Partido Comunista também o partido dos camponeses, que viram nele um apoio para retomar a luta anti-Ocidente dos Taiping. Não por acaso a grande expansão das uniões camponesas se dá na mesma área em que existira o estado Taiping. Em 1929, Mao Zedong (nome também transcrito Mao Tse-tung), dirigente do Partido Comunista nessa área, achou necessário fazer uma campanha contra a “tendência errônea” do igualitarismo no Jiangxi, província então em revolta. O que indica que era forte a tendência dos revoltosos a assimilar o comunismo ao “taoismo” igualitarista dos Taiping. Note-se o contraste entre o Partido Comunista chinês, a fazer campanha contra o igualitarismo, na mesma época em que o Partido Comunista da URSS desencadeava sua campanha contra as tendências capitalistas dos camponeses russos.

Em 1924 a burguesia chinesa ainda se opõe ao governo do Guomindang em Cantão e organiza contra ele uma milícia de “voluntários do comércio”, subvencionada pela Inglaterra, que é desmantelada pelos cadetes de Huangpu. Mas após a virada do Guomindang para uma política de repressão do movimento operário, a partir das grandes greves de Xangai e Cantão em meados de 1925, virada facilitada pela morte de Sun Yat-sen em março, a burguesia começa a se orientar para a adoção do Guomindang como seu partido de classe, ainda antes da ruptura de Chiang Kai-shek com a URSS. Porém o Guomindang não precisava ser pressionado pela burguesia para chegar a essa ruptura. O partido nascido do movimento de letrados anti-Qing, não podia ver em sua aliança com a URSS mais que uma opção forçada de patrocínio externo, por falta de outra melhor em 1923. De modo que, para o Partido Comunista, a integração no Guomindang, imposta pela URSS, se torna um fardo quando os camponeses passam a se servir do comunismo para recriar a luta dos Taiping. E para o Guomindang, esse fato crucial passa a exigir imperativamente a destruição do Partido Comunista. Em 1926 Chiang Kai-shek expurga os comunistas dos postos de direção do Guomindang. É preciso uma forte pressão da URSS para forçar os comunistas a permanecer no Guomindang até 1927, quando acontece o massacre de Xangai, magistralmente rememorado por André Malraux em La Condition Humaine. Seis dias depois do massacre, Chiang Kai-shek se sente seguro para reproclamar a República da China em Nankim, em 18 de abril.

Mas no fim desse mesmo ano se levantam os camponeses do Jiangxi, área central do antigo Estado Taiping, onde os comunistas haviam organizado um grande número de uniões camponesas. Ali Mao Zedong, que, em 1925, fora dirigir essa tarefa a mando da antiga direção Guomindang/PC, recebe a adesão de Zhu De (também transcrito Chu Te), um dujun que, no emaranhado dos conflitos regionais do período, ficara sem apoio estrangeiro. Zhu De, que em seguida se tornaria o principal apoio militar de Mao, era do fundo da China, do Sichuan, província do oeste, e fora parar no Jiangxi porque a revolta camponesa era forte e parecia oferecer boa oportunidade para seus serviços. Esse novo aporte de forças aumenta a confiança dos revoltosos o suficiente para proclamar, em 1929, a República soviética do Jiangxi, da qual Mao Zedong se torna presidente. Ali resistem aos ataques dos exércitos do Guomindang até 1934, quando abandonam a província e iniciam a “longa marcha”.

Após a destruição das organizações operárias da área costeira industrializada, o isolamento da República soviética do Jiangxi leva a uma transformação do processo revolucionário chinês em revolta camponesa, que se acentua com a retirada dos revoltosos ainda mais para o interior em 1934. E a transformação prossegue em 1936, quando um importante corpo de exército do Guomindang adere aos comunistas. A nova adesão traz para o exército camponês um grande número de militares de carreira, revoltados por não se conformarem com a recusa de Chiang Kai-shek a unir a nação contra a invasão japonesa no Norte da China, em curso desde 1932. A situação é clássica. O Guomindang, repetindo o comportamento dos letrados do século XIX, buscava um acordo com os agressores externos para esmagar os camponeses revoltados. O motim contra Chiang Kai-shek tinha suas raízes no fato de que muitos oficiais das tropas do Guomindang haviam sido formados por militares russos na Academia de Huangpu, o que tornava difícil fazê-los aceitar que a defesa da China contra a agressão externa fosse menos importante do que exterminar camponeses fugitivos, os quais, ao término da “longa marcha” (1935), se encontravam na região árida em torno de Yan’an, no Shaanxi setentrional, quase na Mongólia. Para complicar ainda mais a situação de Chiang Kai-shek, os camponeses passaram a ter, logo após a adesão do corpo de exército do Guomindang, um fornecimento externo de armas e munições. Porque, junto a sua área de refúgio, a URSS veio criar em 1937 uma “zona soviética”, para tentar conter a expansão japonesa.

O conjunto das forças que agora entravam na guerra civil era bem diferente daquele movimento comunista que ingressara no Guomindang em 1923. Antes de tudo era uma força militar, cujo contingente principal saíra do Guomindang para integrar-se na luta contra o Japão. Era, portanto, uma força patriótica, o que casava bem com o modo russo de tratar a 2ª Guerra Mundial (oficialmente chamada “Grande Guerra Patriótica” pelo PC da URSS). Socialmente, porém, estava integrada num grande movimento camponês a recriar a revolta Taiping. E esse fato colocava firmemente nas mãos da direção comunista o comando da força militar. Mas o mergulho no mundo camponês após a derrota de 1927 também transformara o Partido Comunista numa nova direção de tipo confucionista, isto é, colocada numa altura vertiginosa em relação à base camponesa. Nem a pobreza uniforme do exército camponês foi obstáculo a esse distanciamento entre direção e base, porque o aparelho comunista era o único intermediário da relação com a URSS, necessária para a vitória. E a mentalidade desse aparelho se revela na prática de “campanhas de retificação”. Ou seja, campanhas para ensinar o que devia pensar e como devia se comportar gente que se havia jogado de corpo inteiro na guerra social. Coisa de mandarim. O procedimento autoritário, que na Rússia aparecia sob a forma de ordens emanadas de líderes carismáticos a militantes disciplinados, na China aparece sob a forma de lições de mestres letrados a discípulos respeitosos. No Partido Comunista chinês pós-1927 não se discute. Ensina-se.

Em 1942 a Inglaterra e os EUA, pressionados pelas vitórias do Japão, que haviam tomado Cingapura e expulsado a marinha inglesa do Sudeste Asiático, tentam legitimar ao máximo o governo do Guomindang (Chiang Kai-shek era então apresentado como “líder de milhões de chineses”). Para isso renunciam a seus direitos de extraterritorialidade na China (a França ainda estava ocupada pela Alemanha). Após uma tentativa de criação de um governo de união nacional PC-Guomindang em 1945, patrocinado pelos então aliados URSS e EUA, a guerra civil recomeça em 1946 e se conclui com a retirada de Chiang Kai-shek para Formosa em 1949 e a proclamação da República Popular da China em 1º de outubro. Assim, invertendo o resultado da última revolta “taoista” de 1851, cuja derrota havia entregado a China aos estrangeiros, a vitória da revolta camponesa de 1927 evitou que fosse perdida a oportunidade de emancipação da China, surgida com o enfraquecimento das potências colonialistas na 2ª Guerra Mundial. Chiang Kai-shek sabia que a derrota da Alemanha e do Japão significaria a devolução das propriedades capitalistas (exceto as japonesas) e a integração da China na área econômica dos EUA. Estes, aliás, não deixaram de lembrar esse detalhe à URSS na discussão dos acordos de Ialta em 1945, razão pela qual a China ficou fora da área de influência russa, criada nesses acordos. Foi a vitória da revolta camponesa que engavetou definitivamente esse projeto.

6. O socialismo mandarim

A ascensão ao poder do Partido Comunista chinês em 1948-49 foi um movimento ordenado de ocupação da China. Bem mais ordenado do que a instauração do Estado Taiping. No processo vitorioso do século XX, o exército popular de libertação entrava nas cidades e o Partido Comunista instalava as novas autoridades. O lado espontâneo do processo se manifestava no campo, onde as terras eram ocupadas por iniciativas dos próprios camponeses. Mas foi uma revolução tríplice: camponesa, de libertação nacional e proletária por procuração, os proletários urbanos sendo representados pelo Partido Comunista, transformado em direção social-confucionista durante a guerra civil de 1927-49.

O lado socialista do estado chinês fundado em 1949 era o programa anticapitalista do Partido Comunista, fundamentado na teoria e na prática do governo da URSS, cujo apoio também era importante para impedir ataques diretos dos EUA contra a China. Esse lado socialista, fundamentado desse modo, deveria, teoricamente, ter levado à organização da agricultura em fazendas sob controle estatal, como os kolkhozes da URSS, e a uma rápida industrialização, ordenada por planos quinquenais.

A primeira parte desse programa socialista à russa, a criação de kolkhozes, era inviável na China, porque sua implantação na URSS fora um processo violento, que não podia ser repetido na terra da revolta camponesa vitoriosa. Por isso (e não por uma suposta “flexibilidade” dos comunistas chineses, como se disse no Ocidente), o Partido Comunista inicialmente se limitou a fazer promulgar uma lei (junho de 1950) que distribuía as terras de modo a garantir um mínimo de 1/6 de hectare a cada camponês adulto. E a agricultura floresceu, apesar da pressão dos comunistas pela formação de cooperativas. Em 1952 a produção agrícola já ultrapassava a dos melhores anos anteriores à guerra civil, o que salvou os chineses da fome durante o embargo comercial sofrido pelo país por seu envolvimento na Guerra da Coreia (1950-53). No final de 1956 quase a totalidade dos camponeses estava organizada em cooperativas. Mas estas haviam sido criadas num processo horizontal de agrupamento dos camponeses, o que era muito diferente do processo vertical de integração forçada dos camponeses russos em kolkhozes. Porém, o maior poder de resistência dos camponeses chineses implicava a elevação de seu nível de consumo e, consequentemente, menor disponibilidade de excedente para a industrialização. Para minimizar esse efeito, os planificadores mantiveram os preços agrícolas baixos administrativamente. Mas essa política tinha limites estreitos, porque os camponeses podiam aumentar sua produção voltada para a subsistência, caso a produção vendável se tornasse desinteressante. E, com isso, a segunda parte do projeto, a industrialização, devia ter um ritmo mais lento do que o ambicionado pelo Partido Comunista chinês. Mesmo assim, o primeiro plano quinquenal 1953-57 não foi um fracasso: quadruplicou a produção de aço e multiplicou por 2,3 a produção industrial como um todo.

Entretanto, justamente em 1953 ocorre a morte de Stalin. Na URSS se desencadeia um movimento irresistível pelo afrouxamento do sistema repressivo, que levou à anulação de centenas de milhares de condenações, proferidas pela justiça de Stalin. Para a cúpula do Partido Comunista chinês, porém, esse afrouxamento do regime soviético só trazia problemas, porque ameaçava levar águas abaixo seu esforço pelo enquadramento da base do partido na linha política tendente à redução das liberdades dos camponeses e operários, para acelerar a industrialização. Dessa preocupação nasce a campanha de retificação “contra os intelectuais discordantes” em 1955 e, depois, quando a reação da base comunista a essa repressão, lançada na contracorrente do movimento comunista da época, se torna muito forte, a cúpula do Partido Comunista lança a campanha “das cem flores” em 1956. “Cem flores” porque foram excepcionalmente convidados a se manifestar intelectuais e estudantes de fora do partido, supostamente para enriquecer a discussão, mas, na realidade, para diluir as questões candentes numa enxurrada de assuntos ultrapassados, levantados pela intelligentsia sobrevivente do regime anterior, e esvaziar o debate político. Foi esse talvez o momento de ansiedade máxima na direção do Partido Comunista chinês, porque justamente em 1956 Nikita Khruchtchov inicia sua “desestalinização” na URSS. A cúpula comunista chinesa, aflita na ceifa de indesejadas flores, é peremptoriamente contrária à “desestalinização”, apesar do risco trazido pela divergência pública com os comunistas russos para a continuidade da ajuda vinda da URSS, que era importante naquele momento. Criou-se assim uma situação em que a liberdade de ação dos camponeses limitava as metas do plano quinquenal, ao mesmo tempo em que o conflito com a URSS aumentava a urgência da industrialização.

Daí a decisão do “grande salto para a frente”, que seria uma espécie de superplano quinquenal, a ter início em 1958. Já que os camponeses não iam em massa à indústria das cidades, decidiu-se levar a indústria das cidades ao campo. Para isso, primeiro foi necessário desfazer o sistema de cooperativas, que não interferia no livre uso das horas do dia pelos camponeses. O “salto” acabou com essa folga, substituindo as cooperativas por comunas populares. Nas comunas, além do cultivo coletivo (o que, em si, não seria problema para camponeses de tradição “taoista”), havia a organização em brigadas de trabalho com jornada obrigatória, o que criava um enquadramento semimilitar. E, para que os camponeses se fiscalizassem mutuamente, instituiu-se um complicado sistema de contagem de horas de trabalho, por indivíduo, que criava credores e devedores dos “pontos” em que isso era contabilizado. Os litígios sobre pontos devidos e a receber eram arbitrados em longas reuniões, pós-jornada, que esgotavam as energias e a paciência dos camponeses. Tal invenção, típica de mandarim, foi saudada no movimento socialista ocidental como criação genial das massas chinesas. E, graças a essa invenção, foi possível desviar 20 milhões de camponeses de suas ocupações normais para construir e fazer funcionar pequenas fundições e aciarias rurais. A produção de cereais caiu 30% entre 1958 e 1960. E nem a apressada importação de alimentos evitou que a fome fizesse entre 10 e 15 milhões de vítimas, números admitidos só muitos anos depois (há estimativas americanas que dão entre 20 e 30 milhões, não admitidas oficialmente). O tempo do “grande salto” teve que ser encurtado para quatro anos, sendo encerrado discretamente em 1961.

O plano foi chamado de “aventurista” por Khruchtchov, que em 1959 fizera a primeira visita de um chefe de Estado da URSS aos EUA. O plano pode ter sido uma aventura, mas não foi inútil. Porque funcionou como uma derrota para os camponeses, cuja ascensão social foi quebrada. Foram arregimentados nas comunas e transformados em operários de indústria sem se livrar do trabalho do campo. Enganados com promessas de produtividade fantástica, aceitaram, porque eles próprios acreditavam na sociedade igualitária que a organização em comunas parecia prometer. De qualquer modo, mesmo que se revoltassem, não poderiam contar com a adesão das cidades, apesar do ritmo de trabalho frenético que o “salto” exigiu do operariado urbano. Porque este era majoritariamente recente e teve seu status social elevado na China Popular. Em 1949 havia 3 milhões de operários; três anos depois já eram 15 milhões. Isso porque todo operário de empresa estatal (zhigong) ficou submetido a um estatuto de funcionário, com direito a aposentadoria, assistência médica e educação, extensivos a filhos e ascendentes, todos recenseados como “operários” das unidades de trabalho (danwei) em que foram distribuídos. A pretensão dos planificadores era que os camponeses pagariam as melhorias dos operários, como acontecera na URSS. E os camponeses, que em 1958 ainda acreditavam nas virtudes do cultivo da terra em comum, caíram numa espécie de desalento conformista ao constatar a irracionalidade evidente das ordens recebidas. A reação ao desastre ficou confinada na cúpula, onde Mao Zedong, responsável maior pelo plano, foi questionado quanto a sua competência como chefe supremo. Entretanto, a derrota dos camponeses permitiu que o Partido Comunista chinês se elevasse a um grau superior de poder sobre as massas proletárias, rurais e urbanas. Ela deu à direção comunista a liberdade de ação dos mandarins clássicos.

O objetivo político embutido no plano de industrialização rural lançado por Mao Zedong em 1958 explica a determinação do Partido Comunista chinês em seu conflito com Khruchtchov, apesar das dificuldades enormes criadas com a perda da ajuda e a retirada dos técnicos russos da China, que ocorreram no pior ano para os chineses: 1960. Mas acontece que a “desestalinização” russa, ocorria exatamente quando a direção chinesa tentava realizar o movimento inverso, isto é, encerrar o período das liberdades revolucionárias e iniciar o enquadramento dos camponeses e operários numa disciplina mais estrita. Secundariamente, havia o problema do “degelo” entre a URSS e os EUA, lançado no momento em que os chineses se sentiam ameaçados pelo aumento da interferência dos EUA no Vietnã.

Nos anos seguintes a 1961, enquanto a vida voltava ao normal possível nas comunas e fábricas, trava-se uma luta interna na cúpula do Partido Comunista, que desemboca na chamada “revolução cultural”, iniciada veladamente no fim de 1965 pelo grupo de Mao Zedong, com críticas na imprensa a “intelectuais liberais” não nomeados, e lançada oficialmente em maio de 1966 com um manifesto “contra os elementos burgueses do Partido”. O alvo principal dos ataques, só revelado mais tarde, era Liu Shaoqi, histórico fundador do sindicato geral dos operários de Xangai em 1925 e candidato natural à sucessão do enfraquecido Mao Zedong. Este, naturalmente, não aceitava o questionamento de sua autoridade a pretexto de um reles fracasso econômico e reivindicava seu direito à chefia do mandarinato enquanto artífice do imensamente mais importante enquadramento dos camponeses num sistema de trabalho totalmente controlado pelo Partido. Mao Zedong mobiliza os não-derrotados pela operação “grande salto”: a base do partido entre os estudantes e a juventude das cidades em geral, o que incluía boa parte do operariado. Em 1966 a agitação paralisa as universidades, onde os cursos são abandonados pelos estudantes, que realizam assembleias e atividades políticas por quatro anos a fio. Enquanto isso, os opositores, igualmente interessados no rebaixamento do status social dos camponeses, ficam paralisados ante o ataque dos jovens chamados a defender o voluntarismo econômico, porque precisam fingir, juntamente com a direção comunista inteira, que não houvera uma destruição das liberdades camponesas em 1958-61 e que toda revolução social possível já fora realizada. Só faltaria o coroamento “cultural”.

Após quatro anos de depredação do patrimônio cultural da China, a título de luta contra a “arte burguesa”, e de peregrinações a Pequim para ver Mao Zedong acenar de dentro de uma limusine fechada em movimento rápido, a tarefa dos jovens “guardas vermelhos” maoistas chega ao fim: o mandarinato está alçado ao poder absoluto sob a liderança do vencedor da crise interna. Isso é alcançado em 1970, quando as universidades reiniciam suas atividades com cursos sobre o “Pensamento-Mao-Zedong”.

Oficialmente, a “revolução cultural” só termina em 1977, após a morte de Mao Zedong (1976), quando seu sucessor na direção do Partido Comunista, Hua Guofeng, a declarou “concluída”. Porém, desde 1970, a cúpula mandarim já dispõe do poder necessário para mudar completamente as relações sociais nascidas em 1949, o que torna possível o abandono do sistema econômico baseado no modelo russo, já percebido por toda a cúpula do Partido Comunista como inaplicável na China. O próprio Mao Zedong começa a encaminhar uma nova orientação da economia, voltada para o reatamento do comércio com a área econômica centralizada pelos EUA. Em 1971 se iniciam os contatos que abrem caminho à visita “secreta” do chefe do Departamento de Estado americano, Henry Kissinger, em julho de 1971, que vem confirmar o aval dos EUA à readmissão da China na ONU, efetivada no fim desse mesmo ano, e preparar a visita do presidente Richard Nixon em fevereiro de 1972. O comandante dos “guardas vermelhos” não precisou temer o aperto de mão do ultradenegrido chefe do imperialismo. Os jovens devotos, que haviam reprimido cerca de cem milhões de pessoas por mínimas manifestações de bom senso que pusessem em dúvida a infalibilidade do “pensamento-Mao-Zedong”, haviam perdido completamente a capacidade de questionar qualquer ato do “Grande Timoneiro”.

Após 1972, da “revolução cultural” só restou o linguajar pseudorrevolucionário na imprensa oficial, até que, durante o processo de consolidação do poder dos sucessores de Mao Zedong, é desencadeada uma campanha de cartazes políticos (dazibao) em 1978, aberta ao público, da qual participam numerosos intelectuais libertados das fazendas de “reeducação pelo trabalho”. Na crista dessa campanha, o grupo sobrevivente daqueles que haviam criticado Mao Zedong na época do apressado encerramento do “grande salto para a frente” começa a mudar as fórmulas dos discursos do Partido Comunista. Mas esse grupo, liderado por Deng Xiaoping, só conseguiu sobreviver e se impor contra seus adversários porque se tornara necessário ao próprio Mao Zedong para a reaproximação com os EUA.

É preciso reconhecer, por outro lado, que, para industrializar a China, nem o sistema russo original nem suas versões mandarim de 1950 e 1958 podiam funcionar, mesmo por um curto período, como se dera na URSS, onde funcionou razoavelmente por cerca de 30 anos (descontado o período de economia de guerra 1941-45), de 1933 a 1966. Porque na URSS o movimento operário das cidades foi hegemônico no processo revolucionário, o que tornou possível, depois da vitória, a transferência de um enorme excedente do campo para as cidades, a partir da organização dos kolkhozes, a qual acarretou um grande êxodo do campo, que forneceu mão de obra abundante para a industrialização. Ao passo que na China, a hegemonia do processo revolucionário caiu nas mãos do movimento camponês, única base real do Partido Comunista durante a guerra civil. Depois da vitória foi possível quebrar as liberdades camponesas nas comunas semimilitarizadas, mas não era possível confiscar seu gado e suas colheitas e tangê-los para as cidades. Em contrapartida, a economia chinesa não ficou presa a uma poderosa indústria estatal, como a da URSS, onde a organização paralela dos gerentes tornou o sistema irreformável, até o fim por desabamento. Na China, que abandonou o modelo russo antes de industrializar-se, a ala partidária ligada à indústria não tinha poder político. Após o acerto de contas na cúpula em 1976 (eliminação da corrente liderada pela viúva de Mao Zedong e sua “banda dos quatro”) a nova direção do Partido Comunista ficou com as mãos livres para preparar o lançamento da China no mercado mundial. A partir de 1978, todas as condições para isso, que vinham sendo criadas desde 1958, estavam prontas.

7. O salto para o mercado mundial

O fechamento para a China da área econômica centralizada pela URSS em 1960, cuja economia, aliás, logo começaria a fazer água, só deixou aos chineses, para industrializar-se, o caminho da integração no mercado capitalista centralizado pelos EUA. Para isso era preciso, além de obter o acesso ao mercado mundial, atrair indústrias que trouxessem a tecnologia mais competitiva para a China. O novo plano econômico previsto para iniciar em 1978 precisava, portanto, ir muito além da economia. Terminou sendo um ambicioso plano que se estendeu até 1985, devido às reformas sociais de grande envergadura a realizar, além da virada ideológica para fundamentá-las. Desde o começo dessa virada em 1978 (campanha dos dazibao), o Partido Comunista foi abandonando o jargão “luta de classes” e passou a exaltar a “modernização socialista”. O objetivo da “modernização”, não aparecia claramente no opaco estilo social-confuciano dos comunistas chineses. Só aos poucos as medidas práticas foram mostrando que o objetivo era transformar a China numa grande exportadora de produtos industriais. O que implicava “por ao trabalho capitalista” a população chinesa, segundo a expressão do sociólogo Jean-Louis Rocca.

Na China de 1978, os que estavam postos ao trabalho, em termos gerais, eram de dois tipos básicos: os camponeses, arregimentados em comunas, e os operários urbanos, integrados em suas danwei (unidades de trabalho). Por ao trabalho capitalista esses dois grupos implicava destruir suas respectivas formas de organização, que haviam sido criadas por razões já caducas. De imediato seria arriscado mexer no operariado urbano, que já atingia então a massa de 70 milhões, ainda era oficialmente definido como zhurenweng (algo como “classe hegemônica”) e havia atravessado a “revolução cultural” mais ou menos incólume. Seriam, portanto, os camponeses os primeiros a ser metidos no novo molde. E assim, depois das cooperativas, depois das comunas, os camponeses chineses foram postos mais uma vez a recriar suas vidas, agora no trabalho capitalista.

Além do mais, a escolha das comunas como primeira estrutura do socialismo mandarim a ser demolida era óbvia. Os camponeses detestavam as comunas. O desmantelamento se deu sem conflitos: as terras foram distribuídas entre as famílias camponesas, as quais, fora o uso da terra, perdiam todos os benefícios das comunas, como educação e assistência médica gratuitas. Mas valia a pena. Apesar de todas as desgraças que vieram depois, os camponeses continuam a falar mal das comunas até hoje. E assim, finalmente, depois de serem infernizados durante um terço de século (1949-78) pelos coletivismos oficiais, os camponeses chineses ficaram totalmente curados de sua mania de reviver periodicamente o velho sonho de igualdade das comunidades “taoistas”. A luta de Mao Zedong contra o igualitarismo camponês tradicional, iniciada no longínquo ano de 1929, no Jiangxi, alcançara enfim a vitória definitiva. Os camponeses se puseram ao trabalho capitalista com afinco, abandonando de vez as lembranças saudosas das bandeiras igualitárias dos Taiping, por medo de qualquer semelhança com as comunas populares.

A dissolução das comunas estendeu-se até 1983 porque o Partido Comunista queria garantir fornecimentos para as cidades e a indústria. Criou-se para isso um sistema de contratos, no qual os meios de produção das comunas funcionaram como instrumentos de barganha, sendo vendidos ou alugados, conforme a conveniência da administração comunista local. Esta exigia pagamento adiantado de produtos industriais (adubos, inseticidas) e, além disso, os camponeses deviam dedicar-se a trabalhos de infraestrutura, como manutenção de estradas e canais de irrigação, a suas próprias custas. Os camponeses aceitaram tudo, mas barganharam os preços, pois achavam que os preços irrisórios contabilizados em nome das comunas não lhes permitiriam sobreviver. Terminaram obtendo uma elevação média de 25% para os fornecimentos principais e de 30% a 50% para os acréscimos acima das quantidades contratadas.

De imediato, isso permitiu que os camponeses passassem a se alimentar melhor, pois no regime de quartel das comunas, os “pontos” de trabalho duramente conquistados e volta e meia sonegados, nunca permitiram ganhar mais que a ração mínima. Porém, a melhoria imediata camuflava uma realidade mais profunda: os camponeses estavam descendo mais um degrau na escala social. Passaram a fazer parte de uma camada social que paga tudo e tem direito a nada. Principalmente, não tem plena garantia da posse da terra, que continua sendo propriedade do Estado. A terra lhes é alocada por períodos renováveis automaticamente, em princípio indefinidamente, mas sem o direito de devolvê-la e mudar-se para a cidade. Em suma, em troca da libertação das comunas, voltaram ao status dos camponeses presos à terra, do tempo dos mandarins clássicos.

Uma vez recolocados os camponeses em seu lugar histórico de párias da sociedade chinesa, só faltava, para que pudessem ser postos ao trabalho capitalista, trazer o capitalismo, que em 1978 ainda estava no exterior. Em 1979 são abertas aos estrangeiros quatro “zonas econômicas especiais”: Shenzhen, (junto a Hong Kong), Zuhai (junto a Macau), Xiamen (antiga Amoy) e Shantou (ambas na costa do Fujian, em frente a Formosa). Às empresas ingressantes oferecia-se liberdade para a remessa de lucros, baixa tributação sobre os lucros e franquia de tarifas para insumos destinados à produção para exportação. Em 1984 são criadas ainda 14 “zonas de desenvolvimento econômico” na Costa Sul, sendo uma delas a grande ilha de Hainan. E, paralelamente, para facilitar as exportações, iniciou-se uma política de depreciação da moeda, que foi bastante forte nos primeiros anos: o renminbi (yuan) cai de 17 por dólar em 1980 para 27 por dólar em 1986.

As zonas econômicas especiais tinham um brilhante futuro garantido, apesar da desconfiança de muitos capitalistas ocidentais em relação ao comunismo oficial do estado chinês. Por duas razões: a primeira é que havia, muito próximo da China, grandes reservas de capital nas mãos da diáspora chinesa espalhada por Hong Kong (ainda inglesa), Indonésia, Malásia e Cingapura, que abandonara a China no século XIX e prosperara nas então colônias europeias do Sudeste Asiático. Esses emigrantes se haviam tornado o grupo economicamente mais dinâmico dessa área geográfica e podiam ser facilmente convencidos a investir na China, em função das relações de parentesco e afetivas com suas províncias de origem (Guangdong e Fujian, principalmente), justamente onde estavam as zonas econômicas especiais. O capital da diáspora aflui por inúmeros canais, em parte por uma rede de relações pessoais, fora dos bancos, e trazem consigo conhecimentos tecnológicos e uma refinada experiência de negócios. Esse fenômeno é de grande importância histórica, porque significa a reconciliação da burguesia da China Meridional com o Estado chinês. Esse fato passará a exercer uma forte influência na política do Partido Comunista e nos rumos da sociedade chinesa.

A segunda razão do brilhante resultado das zonas econômicas especiais é a disponibilidade de mão de obra barata e abundante para os capitais que afluem. Essa mão de obra não é local; é constituída pelos camponeses das comunas dissolvidas que não conseguem sobreviver na terra que receberam. Passam a ser conhecidos nas cidades como mingong (camponeses-operários). É um termo híbrido, não apenas descritivo; pois também qualifica os homens, seu trabalho e suas condições de vida. Trabalho rude e pouco dignificado é “trabalho de mingong”. Esse é o novo termo que designa os párias da China, que precisam ir em busca de dinheiro fora de sua terra porque devem pagar todos os serviços sociais que precisarem, assim como a escola dos filhos, além das inúmeras taxas e impostos de que os outros chineses são isentos. Teoricamente, os camponeses não têm direito de abandonar suas aldeias, mas as administrações locais vendem “permissões de saída”, graças às quais é mantido um constante fluxo de força de trabalho aos empreendimentos capitalistas da Costa, onde os mingong são figuras sem face, sempre presentes nas tarefas mais duras. Por serem trabalhadores informais recenseados em seus lugares de origem, e não nas cidades em que vivem, seu número total é incerto, havendo grandes discrepâncias entre as estimativas, que vão de 100 a 200 milhões. Em qualquer caso, o suficiente para garantir o bom andamento das zonas econômicas especiais e de toda a economia capitalista da China.

A essas duas razões locais dos bons resultados imediatos da abertura das “zonas econômicas especiais” deve-se acrescentar o esgotamento da economia do Estado de bem-estar na Europa e da prosperidade nos EUA. Os capitalistas do Ocidente estavam fortemente premidos a buscar novas áreas de investimento que oferecessem força de trabalho mais barata e garantias de estabilidade política, coisas que então não andavam juntas na maior parte da periferia capitalista. A estabilidade política da China é proporcionada pela ascensão da nova cúpula do Partido Comunista Chinês, solidamente assentada sobre o deserto de almas criado pela “revolução cultural”, e em boas relações com o governo americano. E o aval dos EUA, que restabelece relações diplomáticas plenas com a China em 1978, garante o livre acesso ao mercado mundial para o capital ingressante. Entre 1979 e 1982 a China recebe mais de 12 bilhões de dólares em investimentos externos, pouco menos que o equivalente ao total do Plano Marshall para a Europa inteira entre 1948 e 1958.

Se a China tivesse passado por uma revolução semelhante à da Rússia de 1917 e interrompesse suas transformações sociais nesse estágio, seria possível imaginar a consolidação de uma sociedade de dois estamentos, um inferior de camponeses, a trabalhar para uma burguesia capitalista sem poder político, condição que sempre foi característica da burguesia chinesa desde a Antiguidade, e, acima disso, um estamento superior constituído por operários de empresas estatais, o todo sendo governado por uma burocracia de mandarins. Na China Popular, porém, o operariado urbano havia tomado o poder por procuração. Ele não estava presente como força organizada nos exércitos vencedores em 1949, cuja direção era o aparelho social-confucionista em que fora se transformando o Partido Comunista a partir de 1927. Consequentemente, não havia fundamento político que sustentasse o operariado urbano chinês em estado de bem-estar permanente.

Dizer que o operário urbano chinês usufruía de bem-estar é, sem dúvida, exagerado. O salário do trabalhador designado oficialmente pelo termo híbrido zhigong (funcionário-operário) era baixo e o consumo restrito; o bem-estar consistia em estabilidade de emprego, seguridade social, escola para os filhos e moradia grátis na danwei em que estava alocado. Porém, detalhe importante, não tinha esses benefícios como operário, mas sim como membro, juntamente com sua família, de uma danwei, que era uma fábrica ou grupo de fábricas funcionando como uma comunidade. Os direitos funcionais do zhigong e sua família provinham de sua participação nessa comunidade, não do Estado chinês, que só vigia o fisco e os costumes e nada provê, como cabe a um Estado mandarim. E nada como ter cabeça de mandarim para entender classe operária como rede de comunidades produtivas de famílias operárias.

Como o conjunto das danwei tinha prestigio de “classe hegemônica” e seus dirigentes, apesar de serem disciplinados burocratas comunistas, resistissem à ideia de destruir aquilo que estavam acostumados a ver como a grande realização social da China Popular, elas resistiram a todas as tentativas de demolição, desencadeadas desde 1982. Mas em meio ao jogo de empurra e de fazer corpo mole dos anos 80 veio a perestroika na URSS. Se existia uma coisa que a indústria chinesa tinha de perfeitamente igual à da URSS era o sistema de preços administrados, que tornava impossível conhecer o grau de sustentabilidade econômica das empresas estatais. A discussão pública levantada pelos economistas da URSS e da Europa Oriental durante a perestroika puseram a nu o risco de colapso da indústria estatal embutido nas danwei. E o pavor toma conta da direção comunista em 1989, quando uma gigantesca manifestação de massas abala Pequim.

A explosão estudantil de junho, na esplanada da Porta da Paz Celestial (Tiananmen), que se expandiu para uma manifestação popular geral, antes de tudo repercutia as explosões populares que varreram a Europa Oriental. Mas se a repercussão foi tão forte é porque as tentativas de demolição das danwei já estavam causando mal-estar social. E o mal-estar vinha de duas medidas, que estavam sendo implementadas desde meados dos anos 80. A primeira era a nova diretriz: “deixar cair os pequenos, guardar os grandes”, versão modernizada de um dito de Confúcio. Traduzindo: as pequenas unidades produtivas integradas nas danwei deviam cair na estrada e pegar o ar fresco do “mercado”. Os zhigong nelas alocados poderiam ser demitidos, assim perdendo o salário e, juntamente com ele, todos os benefícios sociais que vinham com a danwei, a começar pela moradia. Essa foi a medida que encontrou mais resistência nos anos 80 e, por isso, foi pouco efetiva. A segunda medida foi a abertura das danwei à criação, em seu interior, de empresas capitalistas privadas, que contratavam mão de obra de fora e começaram a absorver as atividades mais lucrativas, esvaziando lentamente a indústria estatal de suas funções economicamente úteis. Foi a medida que melhor funcionou e acumulou as maiores inquietações entre os filhos de zhigong, que sentiam a aproximação da parede onde iriam se espatifar. Os estudantes de junho em Pequim representavam principalmente essa inquietação, embora o que mais tenha aparecido fosse o anseio por liberdades democráticas, que também existia.

O movimento foi forte em Pequim, mas não foi geral. As grandes cidades da costa, onde o peso econômico das empresas capitalistas predomina amplamente, foram pouco afetadas. E no Interior, o submundo camponês não foi sequer tocado. Entretanto, os acontecimentos de junho desencadeiam o chamado “miniterror” de 1989-1990, que se segue ao massacre de Pequim. Dá-se nesse período uma virada no clima político da China, que foi fatal para os zhigong. O “miniterror” realiza uma reacomodação de forças no interior do Partido Comunista. Os quadros hesitantes quanto à liquidação das danwei são rapidamente substituídos. Ganham força os mais decididos a acabar com o sistema danwei, que a alta cúpula já via desde 1978 como um obstáculo à “modernização socialista”. Surgem no aparelho partidário quadros entusiastas dos princípios de administração capitalista (muitos deles com cursos em business schools dos EUA), dispostos a aplicá-los nas empresas privadas que pretendem criar com o desmembramento das danwei.

O grande ataque começa com a “viagem ao sul” de Deng Xiaoping em 1992. O episódio lembra gestos de imperadores antigos em viagem de cerimônia para “conhecer seus súditos” após a ascensão ao trono. Deng Xiaoping, alçado a líder incontestável depois dos acontecimentos de 1989, vai encontrar-se com os filhos da diáspora que criavam milhares de empresas nas “zonas de desenvolvimento econômico” e dar aos capitalistas de todo o mundo a garantia solene de que seus investimentos eram bem-vindos e seu capital seria respeitado. Num dos discursos dessa viagem, Deng Xiaoping solta a frase famosa: “a ideologia não pode substituir o arroz”, versão dengiana do dito de Milton Friedman: “there is no free lunch”. Em termos práticos: a China do Norte deveria seguir a rota para o “mercado”, apontada pelo sul. A Assembleia Nacional do Povo aprova nesse ano uma lei autorizando a declaração de falência por empresas estatais. E, para enquadrar a nova orientação, muda a própria definição do sistema econômico da China, que passa a ser oficialmente “economia socialista de mercado”.

O alvo das novas mudanças é o sistema danwei, para cuja reforma adotou-se a seguinte fórmula: as pequenas unidades deviam ser desligadas das danwei e encontrar por conta própria os meios de se adaptar ao “mercado”; as grandes deviam liquidar seus ativos não-rentáveis e reagrupar os rentáveis em companhias inteiramente novas e lucrativas; e as empresas estatais restantes devia transformar-se em sociedades por ações. Nos três casos, o estatuto da mão de obra devia mudar para contratos de trabalho capitalista “normais”, isto é, os contratos deviam comportar “flexibilidade”, critério que passa a reger as novas relações de trabalho na China. Restava um problema a enfrentar: como fazer essa liquidação sem causar uma catástrofe social. Razão pela qual ela se estendeu pelo decênio de 90 e este início de milênio. De qualquer modo, o efeito da virada vai aparecer parcialmente nas estatísticas oficiais de desemprego: cerca de 60 milhões de demitidos até 2003. O número é enganador, porque ignora as aposentadorias antecipadas (de valor extremamente variável) e as transferências para falsos empregos, cujos titulares só recebem “ajuda”.

Nasce assim a nova categoria social do xiagang zhigong (literalmente, “funcionário-operário fora de seu posto de trabalho”), abreviadamente, xiagang. O termo foi criado pelas autoridades locais, das quais os zhigong passaram a depender quando foram desligados das danwei; e foi criado porque, teoricamente, os xiagang têm direito de ser realocados em novos empregos (sob novo estatuto de trabalho) após passarem por cursos de reciclagem, a ser fornecidos pelas autoridades locais. O governo central não se considera implicado nesse direito teórico, que é definido como direito de âmbito local. Quer dizer, os direitos teóricos dos xiagang só podem ser exigidos das autoridades locais, não do estado chinês, que só oficializa a categoria dos xiagang em 1998, com a conotação de fato econômico com implicações sociais estritamente urbanas e localizadas. E as autoridades locais vão por em execução os direitos dos xiagang conforme os recursos disponíveis e o temperamento dos titulares. Vê-se aqui o sistema mandarim de governo a determinar o modo de funcionamento do socialismo de mercado. Os zhigong, que só tinham direitos práticos no interior das danwei, mas nenhum direito em relação ao Estado chinês, ao ser transformados em xiagang, só podem adquirir direitos teóricos em relação às autoridades locais da área de suas antigas danwei. Na cabeça da cúpula mandarim, a coisa funciona assim: as danwei, comunidades de produção supostamente pertencentes aos trabalhadores urbanos, faliram; o que vai acontecer com os falidos é problema dos burgomestres.

Por causa de seus direitos teóricos, os xiagang não entram nas estatísticas de desemprego. Os cerca de 60 milhões recenseados até 2003 se referem a demissões. Os demais atingidos pelo desmantelamento das danwei estão todos, oficialmente, ou aposentados ou empregados sem posto de trabalho fazendo cursos de reciclagem ou empregados “em transferência” para outro posto de trabalho. Seja como for, o reconhecimento oficial dos xiagang como nova categoria social (1998) fornece a data em que é oficialmente apresentada ao povo chinês a realidade da economia socialista de mercado.

8. O capitalismo mandarim

O salto da China para o mercado mundial mudou a sociedade chinesa. O socialismo mandarim era uma sociedade sem classes verdadeiras, mas com estamentos sociais. Não tinha uma classe burguesa no comando das relações de produção porque, ao ruir o regime do Guomindang, a burguesia chinesa, cujo poder político fora o das potências capitalistas que patrocinavam Chiang Kai-shek, havia majoritariamente fugido. E a que ficara e sobrevivera à caçada de “contrarrevolucionários” de 1949-50 era um componente negligenciável em termos econômicos e políticos. Não obstante, foi mantida a ficção da “burguesia nacional” associada ao novo Estado “popular”, para que os operários não alimentassem ambições excessivas quanto ao peso de seus interesses na definição dos rumos da nova China. Começou assim a ser gestada uma nova sociedade chinesa, de certo modo socialista, por não ser dominada por uma burguesia, mas diferenciada em estamentos, com direitos diferentes para o campesinato e o operariado urbano, sob uma burocracia de Estado a encarnar os interesses gerais da nação chinesa, fundamentada numa ideologia social-confucionista.

Entretanto, a explosão de atividades empresariais a partir de 1979 passa a criar uma verdadeira classe burguesa na China, criada em parte pela diáspora retornada para montar empresa exportadoras e em parte por burocratas comunistas lançados em empreendimentos capitalistas na cidade e no campo, assim como por pessoas comuns, do Partido Comunista ou não, mais ou menos forçadas a se lançar em negócios privados, para não cair na categoria de vítimas, quando perceberam que as empresas estatais em que estavam empregadas iam declarar falência.

Nas zonas econômicas especiais há grandes empresas de capital estrangeiro e, ao redor delas, uma multidão de médias e pequenas empresas, subcontratantes e independentes, operadas por chineses vindos da diáspora e nativos. A mão de obra de todos é fornecida pelos mingong. Estes, só nas grandes têm contrato escrito. Nas demais há um acordo oral, tratado na rua, nos pontos de chegada dos que vêm do interior, onde se agrupam os mingong a exibir cartazes sobre suas aptidões. Escrito ou oral, o salário é sempre baixo, mas os mingong se preocupam menos com isso do que com a incerteza dos recebimentos. O costume de impor multas por infrações mínimas e reter parte do salário sob inúmeros pretextos, inclusive criação de poupanças forçadas, raramente recebidas no fim do prazo previsto, está muito difundido entre as pequenas empresas, sem deixar de existir também entre as grandes.

Nas cidades em geral, a partir do desmembramento das danwei, há, em primeiro lugar, as empresas de grande porte, cedidas a preços irrisórios aos próprios ex-administradores. Dedicam-se principalmente ao comércio dos insumos industriais que antes as danwei fabricavam e a serviços diversos, como hotelaria. São atividades protegidas pelo emaranhado de licenças necessárias para entrar no ramo. Serviram para realocar pequena parte dos xiagang, sendo as tarefas de carregar peso e de faxina entregues aos mingong. Em segundo lugar, há empresas privadas menores, em geral lançadas por burocratas do Partido Comunista, que também absorveram pequena parte dos xiagang, além de mão de obra mingong para os trabalhos menos qualificados. Em todas essas empresas, a realocação dos xiagang é feita por contratos classificados como linghuo (flexíveis).

E no campo há o desenvolvimento de uma nova burguesia, que se superpõe à massa camponesa, mantida na condição de estamento inferior da sociedade chinesa. Ali surgem empresas agrícolas capitalistas montadas por ex-membros da burocracia das comunas, assim como empresas maiores, montadas por administradores de aldeia e de cantão, que se aventuram também em atividades industriais. Os dois tipos de empresários enriquecem empregando o “excesso de população” do campo. Sabe-se que o “excesso” são pessoas que não receberam a “permissão de saída” para ir procurar emprego na cidade ou não puderam pagá-la. São camponeses proletarizados, que já eram 30 milhões em 1980, e estavam em 120 milhões quando começou a liquidação das danwei no início dos anos 90. Depois cresceram a um ritmo menor, sendo cerca de 140 milhões em 2006.

A demonstração última da penetração das relações capitalistas na China está na evolução das “empresas coletivas” em que foram transformadas algumas comunas onde a industrialização rural deu certo e a terra não foi dividida. O caso exemplar é Huaxi, “aldeia n°1 da China” por sua alta renda per capita, na província de Jiangsu, ao norte de Xangai. A indústria siderúrgica e têxtil da comuna é uma sociedade por ações, negociadas em bolsa a partir de 1995, e também distribuídas entre os aldeões, que ainda recebem bônus anuais sobre os lucros. A família do dirigente comunista local domina a sociedade e todas as crianças aprendem na escola que elas e seus pais devem tudo que têm a “nosso industrioso chefe de aldeia”. Os aldeões têm 80% de seus bônus e 95% de seus dividendos retidos para reinvestimento na sociedade. De qualquer modo, eles não teriam como gastar todo o dinheiro, porque diversões noturnas são proibidas (há toque de recolher na aldeia), para que todos estejam cedo no trabalho de manhã. Talvez ainda se pudesse dizer que em Huaxi continue em vigor o socialismo monástico instaurado nas comunas populares, não fosse por um detalhe: a altíssima renda per capita da comuna vem em grande parte do trabalho de 30.000 mingong, que recebem salário de mingong, sem mais nada.

Está presente, portanto, uma nova sociedade de classes na China. Nela se pode ver também a conversão em empresariado capitalista de parte importante da burocracia do Partido Comunista, que não é mais um corpo político exterior ao capitalismo chinês. Podia-se considerá-lo predominantemente exterior até 1992, antes do desmantelamento das danwei, depois não mais. O que continua sendo não-capitalista na sociedade chinesa é o Estado mandarim, isto é, o Estado guardião das relações sociais que mantêm o campesinato na situação de estrato social inferior, tanto para ser posto ao trabalho capitalista como para ser posto a sustentar o novo mandarinato, por meio do confisco direto de uma parte da riqueza por ele criada e não apropriada pelo capital.

A pobreza, que cresce rapidamente nas cidades chinesas, tem uma dimensão surpreendente, com características que não decorrem só da tendência à concentração de renda, inerente ao capitalismo. Na China essa tendência capitalista está presente, mas parte da pobreza é burocraticamente determinada. Há pobres que devem ser pobres, que são os camponeses, e que, portanto, não podem ser oficialmente classificados como pobres. E há pobres cuja pobreza é reconhecida e tratada como problema, que são os habitantes das cidades em geral. Mas ser reconhecido como pobre não é fácil nas cidades chinesas. Porque a definição do nível de rendimento abaixo do qual a pobreza é reconhecida, está a cargo das autoridades de cada cidade, o que torna possível ser muito pobre, mas não ser reconhecido como tal. A partir de outubro de 1999, em comemoração aos 50 anos do nascimento da China Popular, os citadinos que estão abaixo do rendimento mínimo definido localmente passaram a ter direito a uma ajuda, sendo incluída no orçamento central uma verba destinada a cobrir parte dela. Ao mesmo tempo foi organizado um controle cerrado sobre os candidatos a essa ajuda, para distinguir o “bom pobre” do “mau pobre” e do “falso pobre”. Na primeira categoria estão os pobres dispostos a aceitar qualquer ocupação proposta pela autoridade local, nas duas outras estariam os rebeldes e os “espertalhões”, periodicamente excluídos da ajuda. Mesmo assim, em 2003 foram recenseados 22 milhões de citadinos pobres aptos a recebê-la.

No caso específico dos xiagang, há uma espécie de má consciência da burocracia estatal com sua situação, principalmente em relação aos mais idosos. Já aos xiagang mais jovens informa-se preliminarmente que devem abandonar a pretensão de ser ajudados pela sociedade e devem passar a contar exclusivamente com suas próprias forças. Enquanto não conseguem safar-se de algum modo, procura-se oferecer-lhes “empregos comunitários”, que vão desde prestar serviços auxiliares em creches ou no controle do trânsito de veículos, até trabalhar na limpeza de jardins e ruas. Não são empregos públicos. São falsos empregos, classificados como feizhenggui (fora de padrão), cujo salário tem o caráter de ajuda, e onde os xiagang suficientemente desesperados para aceitá-los procuram evitar certas tarefas, para não descer ao nível dos mingong. Para os inconformados, a proposta padrão é que “se lancem ao mar”, isto é, que montem algum negócio por conta própria. “Lançar-se ao mar” (xiahai) é a nova palavra de ordem oficial do socialismo de mercado chinês.

Em todo caso, as políticas antipobreza se referem exclusivamente aos citadinos, porque para candidatar-se a qualquer benefício-pobreza é preciso apresentar o hukou (comprovação de local de origem). Hukou de camponês não vale para ajuda. Mas mesmo para os residentes urbanos não basta ser pobre para receber ajuda; é preciso também estar legalmente desprovido de salário, ainda que este seja apenas teórico. É o caso dos que foram aposentados, mas não estão recebendo a aposentadoria porque o responsável local não está pagando; o caso dos que aceitaram um “emprego comunitário”, mas a autoridade local não está pagando a ajuda; o caso dos que estão em transferência para um novo posto de trabalho, ainda não definido, mas já pararam de receber pelo antigo; e há o caso simples de atrasos de salários, devidos por empresas estatais incluídas em planos de privatização ou demolição, que se prolongam por meses a fio, talvez para que os empregados se deem conta de que está na hora de “lançar-se ao mar”. Os citadinos que estão em todos esses casos são incandidatáveis a ajuda. E não são poucos. A maior revolta de xiagang aconteceu no nordeste da China em 2002, em Liaoyang, no Liaoning, sul da ex-Mandchúria, onde 6.000 demitidos de uma usina de ferro-liga estavam sem receber o salário “de transição” estipulado quando foram avisados do fechamento da empresa. Segundo uma estatística de Hong Kong, em 1998, 17% dos pobres urbanos chineses eram aposentados que haviam parado de receber suas aposentadorias.

Na economia socialista de mercado a parte socialista funciona mal por muitas razões. E a primeira é que ela não deve atrapalhar a economia de mercado. Por trás de muitos fatos geradores de miséria urbana está a intenção deliberada de usar todos os expedientes possíveis para que só se conceda ajuda social aos deficientes incapazes de trabalhar e sem família para ajudá-los, intenção baseada numa ideia liberal bastante antiga no Ocidente. A segunda razão é o sistema mandarim de governo. À primeira vista parece incrível que, mesmo num período de alto grau de crescimento econômico, a China não consiga pagar as aposentadorias em dia, sem falar nos salários formalmente estipulados pelo Estado e não pagos. O que se passa é que o governo central da China de hoje, como as antigas administrações imperiais, não assume responsabilidade direta sobre a vida dos súditos. Estes podem recorrer ao governo central em caso de injustiça, mas quem comete injustiça é sempre o governo local, que intermedeia tudo com grande autonomia. A China de hoje, como a do tempo dos mandarins clássicos, é um conglomerado de administrações locais dominadas por um poder central absolutista, que regula a autoridade dos potentados locais, mas não administra diretamente.

Entretanto, o mau funcionamento do socialismo mandarim nas cidades é amplamente compensado pelo inestimável serviço que presta no campo à parte capitalista da economia. Porque, para os camponeses saídos do socialismo mandarim e retornados ao cultivo familiar da terra, não foi criada uma legalidade capitalista, como foi criada nas zonas econômicas especiais. Eles ficaram fora da legalidade socialista, sem entrar numa legalidade capitalista. A terra que cultivam pode ser requisitada a qualquer momento e as requisições têm crescido ao ritmo do crescimento do PIB chinês, pois com ele vêm novas áreas industriais e residenciais para administradores e mingong importados de outras províncias. Para evitar que a coisa resulte em grandes fomes, foi instituída a prática de indenizar os camponeses, o que não significa, nem de longe, pagar o preço da terra, nem que a indenização seja um direito líquido e certo. Um caso bem noticiado no exterior, porque aconteceu no Guandong, província costeira de ponta do capitalismo chinês, e terminou em pancadaria e prisões (de camponeses), é o da expropriação de um terreno para um investidor de Hong Kong, que pagou 3,5 milhões de yuan pelo terreno, mas o chefe do distrito resolveu transformar essa soma num “fundo de desenvolvimento”. A revolta explodiu porque a atitude do mandarim foi além da prática mais comum, que é o chefe local expropriar a terra dos camponeses mediante uma indenização pequena e depois negociá-la com os investidores industriais ou imobiliários por dez ou vinte vezes mais. Evidentemente, essas coisas só podem acontecer porque os investidores capitalistas nada devem aos camponeses. O titular real da terra é o mandarim local.

Mas isso não é tudo. Segundo o princípio mandarim, cada província e cada cantão tem seu próprio sistema fiscal, que não depende da aprovação de leis específicas, nem nacionais nem locais. Nas aldeias e cantões há a tributação permanente, sob a forma de incontáveis taxas sobre autorizações e certificados para cada ato significativo da vida, como casar, ter filhos, viajar, entrar numa escola (fora o pagamento dos estudos) e realizar funerais, além de numerosas multas sobre irregularidades surpreendentes, algumas simplesmente supostas. E há a tributação temporária, sob a forma de sobretaxas e contribuições forçadas para qualquer obra de infraestrutura ou benfeitoria local, para as quais há também corveias, à maneira medieval. Algumas dessas contribuições têm o poder de reduzir subitamente a maioria dos camponeses à pobreza ou à miséria, como aconteceu em 1993, no Hunan, onde foi lançada uma requisição de 20% a 30% dos rendimentos dos camponeses para financiar obras contra enchentes. Razão pela qual vem aumentando o número de reações violentas dos camponeses contra os “três arbitrários” (san luan): as sobretaxas sobre autorizações e emissões de documentos legais, as multas abusivas ou imaginárias e as contribuições forçadas. Para ter uma ideia do que isso significa basta constatar que quando, após inúmeros conflitos, o governo central resolveu intervir no assunto em 2001, emitiu uma inoperante circular, sobre o que poderia ser considerado tributação excessiva. Nessa circular, que pôs a nu a dimensão do abuso local e do descaso central, os camponeses são incentivados a recusar-se a pagar o que estivesse fora de uma lista de 313 categorias de tributos, taxas e multas locais. O que serviu para oficializar a cobrança dos 313 itens da lista, sem garantir o direito de não pagar os não listados.

O status social dos camponeses determina a quantidade e a qualidade social da mão de obra no mercado de trabalho existente na China. A quantidade da força de trabalho mingong é regulada, em primeiro lugar, pelo sistema de tributação arbitrária, que mantém um permanente excedente populacional em relação aos meios de subsistência disponíveis no campo e, em segundo lugar, pelo controle dos deslocamentos dos camponeses nos locais de partida e de chegada, por parte das autoridades que emitem as permissões de saída do campo e as autorizações de residência temporária nas cidades; sendo que ainda há uma regulagem fina do fluxo, por meio da variação do preço desses documentos, acompanhada pela vigilância dos migrantes ilegais. E a qualidade social da força de trabalho é definida pela ausência de um quadro legal de reivindicação trabalhista. Sem direitos civis nas cidades em que trabalham, os mingong raramente reagem coletivamente aos abusos patronais, salvo excepcionalmente, quando um abuso acima do suportável atinge um grupo numeroso. Foi o caso dos 4.000 operários da “Stella Shoes”, empresa de Taiwan instalada no Guangdong, que em 2004 realizaram manifestações contra a qualidade da comida nos refeitórios e o atraso de salários, tendo aproveitado a ocasião para reclamar também dos próprios salários, muito baixos. A repressão veio rapidamente e resultou em prisões e condenações dos que foram considerados líderes do movimento. O capitalismo da China é bem guardado pelo Estado mandarim.

9. Tendências em curso

A economia mundializada da China é movida a força de trabalho mingong. O que significa que a economia chinesa de hoje tem por base o sistema mandarim de governo, que é uma criação do Império Han. Essa herança, que mantém o campesinato numa situação de inferioridade social, é uma peça fundamental da prosperidade capitalista da China. Justamente por isso a ideologia oficialmente socialista do Partido Comunista chinês não foi abalada nem pela entrada de boa parte da burocracia comunista em empreendimentos capitalistas, nem pela revisão de seus estatutos em 2002, que permitiu o recrutamento de empresários privados de origem burguesa, vindos diretamente do mundo dos negócios (segundo um artigo da revista “The Economist”, 1.512 empresários capitalistas entraram no Partido Comunista chinês em 2005). Porque mesmo atravessado por mil negócios capitalistas, o Partido Comunista continua dependente da enorme massa de riqueza extraída dos camponeses por meio dos “três arbitrários” para sustentar seu aparelho político, que é enorme e vigia cada quarteirão de cidade e cada aldeia; e, paralelamente, os capitalistas, quer sejam do partido quer não, continuam dependentes do sistema mandarim de governo para dispor de uma abundante a oferta de trabalho mingong a preços deprimidos. Razão pela qual o estado chinês não abre mão de sua doutrina oficialmente maoista. Pois embora os quadros comunistas tenham hoje um linguajar muito afastado do anti-imperialismo do tempo de Mao Zedong, e até condenem abertamente o “grande salto para a frente” e a “revolução cultural”, o regime político chinês ainda tem como tarefa básica a guarda das realizações da época maoista. E isso não é uma falsificação da realidade, porque foi Mao Zedong que quebrou as liberdades camponesas conquistadas durante a grande revolta que levara o Partido Comunista ao poder.

É necessário precisar, entretanto, que o maoismo oficial da China moderna não é mais aquela doutrina de bases vagamente marxistas, declamada na época da guerra civil. Hoje o pensamento social dominante é a doutrina de cunho confucionista das três “representações” sociais, exposta pela primeira vez em 2001 pelo então presidente Jiang Zemin, referindo-se ao que o Partido Comunista representa no poder, a saber: “as exigências do desenvolvimento das forças produtivas progressistas”, que são as exigências do capital; “a orientação de progresso da cultura chinesa avançada”, que passa a ser a nova autojustificativa oficial da dominação mandarim; e “os interesses fundamentais da esmagadora maioria da população da China”. Esta última “representação” está formulada de modo a enterrar definitivamente as ilusões dos xiagang quanto ao caráter de classe do Partido Comunista chinês. Pois este, além de representar os interesses do capital “progressista” e do mandarinato, agora deve representar “a maioria da população”, e não a classe operária, como se dizia em tempos ultrapassados. Considerando que essa tese está inscrita na nova Constituição de 2004, o mínimo que se pode afirmar é que o socialismo do Partido Comunista chinês atual, oficialmente, não é mais o mesmo que proclamava durante sua luta pelo poder.

Esse é o quadro legal em que se movem as classes sociais na China moderna. E nele ficaram bastante reduzidos os direitos do operariado da indústria estatal. Resta ainda cerca de um quarto dele nas empresas consideradas importantes para a segurança dos estado (as chamadas shiye danwei), das áreas de equipamento militar, eletrônica de aviação, telecomunicações, petroquímica, energia elétrica, extração de carvão e petróleo e transportes marítimo e ferroviário. São cerca de 30 milhões de empregados, que trabalham em condições muito variadas. Nas ferrovias, há planos de modernização, com previsão de numerosas demissões. E os mineiros, antes tratados como heróis da classe operária, hoje são submetidos a um ritmo de trabalho intenso, em condições de segurança limite. Segundo estatísticas oficiais, ocorreram cerca de 6.000 mortes por acidente nas minas em 2004. Esse pode ter sido um número excepcional, mas é suficientemente revelador dos novos critérios de gestão das minas. Quanto aos operários que pertenciam às danwei dissolvidas, os mais jovens, ou foram realocados em funções semiqualificadas de novos empreendimentos privados, em regime de trabalho flexível, ou aproveitaram a prosperidade econômica para “lançar-se ao mar”, isto é, montar negócios próprios, passando a constituir uma nova pequena burguesia de microempresas do chamado “setor individual” (geti), hoje presente em todas as grandes cidades chinesas. Os demais, que continuam incluídos na categoria de xiagang, constituem um grupo social politicamente desmoralizado, que sobrevive na condição de semiclientela dependente de aposentadorias precárias e das diversas formas de ajuda à pobreza dirigidas a essa categoria social. Esses, que deixaram de ser classe operária, são os únicos que ainda reivindicam o socialismo na China, como se pode ver pelas palavras-de-ordem de suas manifestações: “Queremos um verdadeiro socialismo, não um falso!”, “Abaixo a nova classe burocrática capitalista!”, ao lado de “Queremos [o pagamento de] nossas aposentadorias!”. Na realidade, reivindicam direitos perdidos daquilo que achavam ser o socialismo.

O verdadeiro lugar de uma classe operária na China está hoje ocupado, em esmagadora maioria, pelos mingong. Estes estão colocados diretamente face aos patrões, sem proteção legal e sem intermediação sindical. São tratados pelas autoridades como estrangeiros nas cidades em que trabalham, onde devem pagar periodicamente pelo direito de continuar residindo, fora os mil certificados exigidos, alguns absurdos, como o certificado de não ser pessoa nascida além do número de filhos permitido aos pais. Se pegos em situação ilegal são espoliados de tudo e espancados, antes de serem deportados para o torrão natal. Os patrões se aproveitam da condição social dos mingong para dar-se todas as liberdades e, principalmente nos casos em que fornecem alojamento e refeitório, comportar-se como se estivessem fazendo um favor em pagar-lhes também um salário, motivo pelo qual este é freqüentemente atrasado e comumente não pago integralmente. O movimento dos mingong é impulsionado estritamente por reivindicações materiais, porém a própria situação extrema de exploração impele-os a unir-se contra os patrões. É uma classe-em-si em estado quase puro. A luta de classe dos mingong, além de pouco ativa, está hoje isolada em meio a uma classe média de empregados qualificados e a uma numerosa pequena burguesia de serviços diversos. Mas essa baixa atividade do movimento social nas cidades chinesas depende do bom andamento da economia, o que, aliás, é reconhecido pelo próprio governo.

Os camponeses, ex-sonhadores do igualitarismo Taiping e hoje profundamente desiludidos do falso socialismo da China Popular, estão inteiramente absorvidos pela luta desesperada contra a tirania dos mandarins locais, que não lhes dão trégua. As expropriações de terras para investimentos imobiliários e industriais criaram milhões de miseráveis no campo, só parcialmente absorvidos pelos empreendimentos capitalistas de outras províncias na condição de mingong. E sobre os demais pesam os “três arbitrários”, que lhes sugam tudo que conseguem amealhar. O campo é hoje, de longe, o lugar onde há mais conflitos, sempre girando em torno de expropriações de terras mal pagas ou não pagas e sobre cobranças de taxas e multas arbitrárias. É também o lugar onde mais frequentemente as manifestações se tornam violentas, com ataques à sede local do Partido Comunista e sequestro de autoridades. Por acontecerem fora dos grandes centros, são pouco noticiadas, mas são causa de grandes preocupações do governo central. Razão pela qual este intervém de tempos em tempos, hoje servindo-se dos comiês de aldeia eleitos, para coibir os abusos mais gritantes. A prática de eleger os comitês de aldeia começou no Guangxi, no fim de 1980, e tinha de início um caráter informal, para restabelecer relações regulares da direção partidária com os aldeões após a dissolução das comunas. Em 1987 uma lei central passou a regulamentar essas eleições, mas as mantém facultativas. Em muitas aldeias não há eleições e, onde as há, os candidatos são selecionados pelo comitê local do Partido Comunista. O cuidado permanente deste é impedir que algum líder de qualquer mobilização contra abusos burocráticos consiga candidatar-se. Mas o grande sonho dos camponeses, que é ascender socialmente e tornar-se uma verdadeira classe camponesa de pequenos proprietários, gera a todo momento novos choques com o interesse do mandarinato em tirar proveito de sua condição inferior. Ou seja, há um antagonismo total entre as aspirações camponesas e o sistema mandarim de governo. Entretanto, a importância maior da luta dos camponeses vem de sua ameaça às relações capitalistas da China atual, uma vez que de sua inferioridade social depende o tipo de mercado de trabalho que faz hoje a pujança do capitalismo chinês. Por isso, qualquer perda de controle da situação no campo pode ser fatal para o regime político atual. Mais uma vez, o destino de uma dinastia chinesa está nas mãos dos camponeses.

Evidentemente, o campo chinês de hoje tem características que nunca existiram antes. Mas a forma de inserção da China no capitalismo mundializado veio revitalizar relações sociais moldadas na estratificação social clássica da sociedade chinesa. Esta tinha, além da nobreza (estrato superior comum às sociedades mercantis pré-capitalistas), e de um estrato inferior, constituído por um campesinato-rebanho (correspondente aos escravos ou servos do Ocidente), um estrato intermediário de mandarins, fenômeno que excluiu a burguesia chinesa do aparelho de estado, deixando-a numa espécie de limbo social, não-servil, mas sem direitos políticos. Com a passagem ao regime republicano (1927, e não o 1911 da história oficial), os nobres (senhores rurais, dujun e guerreiros profissionais das milícias e estandartes imperiais) tiveram que tomar partido na guerra civil. Uma parte deles, liderados pelo dujun Zhu De, aderiu à República Soviética do Jiangxi; outros aderiram em 1936, no Yan’na. E os que restaram se transformaram em “bandidos” rurais, que foram exterminados nos primeiros anos da China Popular. Os camponeses, alçados da condição de rebanho à de membros plenos da humanidade durante a guerra civil, voltaram a descer socialmente a partir de 1958, chegando em 1978 a uma condição semi-servil, ainda que não tão baixa quanto a do antigo campesinato-rebanho. E os profissionais do Partido Comunista, cuja ideologia evoluíra de um marxismo precário ao social-confucionismo durante a guerra civil, se instalaram no lugar do velho mandarinato. Essa é a configuração social da nova China, mantida até 1989.

O que passou a mudar essa configuração é a industrialização. Tendo fracassado a tentativa de industrialização à russa e tendo-se aberto a possibilidade de industrialização por meio da entrada no mercado mundial capitalista em 1978, surgem as zonas econômicas especiais em 1979 e sua mão de obra, os mingong. É quando o estrato social camponês dá origem a uma classe proletária capitalista, colocada num antagonismo classe-contra-classe com a nova burguesia industrial chinesa. E o proletariado mingong está em toda parte, inclusive em centros pequenos, porque a indústria foi se disseminando no interior, em função das iniciativas empresariais dos chefes dos cantões e distritos rurais. A significação maior disso é que há uma nova dinâmica histórica em curso na China.

Agora a sociedade chinesa é movida pela combinação das contradições próprias do capitalismo (mingong↔patronato) com as contradições próprias da sociedade de estamentos (mingong/camponeses↔burocracia mandarim). A resposta do Partido Comunista a essa combinação de contradições é buscar uma parte das soluções na ideologia capitalista mais ortodoxa, segundo a qual, o crescimento econômico terminará, a longo prazo, por trazer melhorias a todos, eliminando a pobreza extrema e as tensões sociais maiores. Essa vertente ideológica está presente em todos os atos do governo, cuja acessoria econômica é de formação neoclássica estritamente ortodoxa, vinda diretamente das universidades americanas. Um bom exemplo dessa vertente é a orientação aos ex-membros das danwei para “lançar-se ao mar”. Outra parte das soluções é buscada nas práticas da social-democracia europeia, cuja sociedade de bem-estar passou a ser o novo ideal de socialismo das burocracias remanescentes do antigo “socialismo realmente existente”. As escolas do Partido Comunista chinês convidam regularmente especialistas em política dos partidos social-democratas europeus e do Partido Liberal Democrata do Japão, que também é admirado, por sua capacidade de combinar boa administração com um sistema de legitimação eleitoral estável. Esta segunda vertente ideológica, porém, concentra-se na busca de políticas que levem ao aumento do nível de vida geral, e não à ampliação das consultas eleitorais. Eleições nas cidades são consideradas perigosas para a estabilidade política, devido à “qualidade” (suzhi) mais apurada da população urbana. Esta é a forma mandarim de expressar o fato de que o povo urbano está socialmente acima do povo do campo. Porém a tese do possível risco político de eleições urbanas está exposta às avessas. Na realidade, é a “qualidade” social do povo no campo que tornaria perigoso um sistema de consultas eleitorais nas cidades. Porque eleições urbanas, se forem minimamente livres, porão em evidência a farsa do sistema eleitoral das aldeias, cujo sentido é legitimar a negação de direitos civis reais aos camponeses.

A expressão oficial, “economia socialista de mercado”, para designar o sistema econômico vigente na China atual tem um fundo de verdade. Este fundo consiste em dois fatos fundamentais: em primeiro lugar, num mercado de trabalho administrado, que é o imenso mercado baseado na oferta de mão de obra mingong, cujo fluxo é regulado e cujos preços são deprimidos pelo imponente sistema repressivo que mantém esses trabalhadores numa condição social inferior; e o segundo fato é a inexistência de um verdadeiro mercado imobiliário. Não há empréstimo hipotecário na China, porque toda terra chinesa continua sendo propriedade do Estado, que é apenas cedida por períodos determinados (renovados nem sempre automaticamente) às pessoas físicas e jurídicas. E acontece que, se a existência de um mercado de trabalho administrado está em perfeita harmonia com o atual capitalismo financeirizado, a inexistência de um mercado imobiliário está em desarmonia total.

Atualmente está se desenvolvendo na China um movimento pela criação de um mercado imobiliário, o que permitiria a consolidação de um “verdadeiro” capitalismo. Segundo as informações da imprensa ocidental, a cúpula do Partido Comunista chinês estaria inclinada a avançar nesse sentido. Resta ainda ver, porém, até que ponto essa tendência poderá ser inteiramente satisfeita. Restaurar a forma plena de propriedade burguesa do solo em toda a China poderia fragilizar um ponto de apoio importante da dominação mandarim no campo, uma vez que a valorização dos imóveis passaria a se dar também a favor dos camponeses, e não somente a favor da burocracia rural do Partido Comunista. Por isso, o mais provável é que o sistema econômico chinês continuará híbrido, isto é, continuará sendo uma mescla de capitalismo com sistema mandarim de dominação, para não arruinar as bases sociais do mercado de trabalho administrado, que é a grande vantagem comparativa da indústria chinesa no mercado mundial. A economia socialista de mercado, portanto, não pode se livrar inteiramente de seu lado socialista sem perder o brilho que hoje fascina os capitalistas do mundo.

O que brilha na China de hoje é o consumo pessoal de artigos de luxo por uma nova camada social de ricos arrogantes e de uma camada superior de empregados qualificados, que exibem a moda das metrópoles do Ocidente e o uso das últimas novidades eletrônicas. Brilha razoavelmente também uma nova camada social urbana média, favorecida pela prosperidade capitalista, que está satisfeita com a melhoria de seu nível de vida e que é atualmente o principal fator de estabilidade política do regime. Mas abaixo dessas camadas está, nas cidades e no campo, a grande massa da população, que não usufrui das benesses da prosperidade, quando não paga por ela com sua miséria. Entretanto, não há muita queixa de carências materiais na China, porque todos estão definitivamente convencidos de que não existe sistema econômico igualitário. As queixas que aparecem são mais radicais que isso, em dois sentidos: por um lado, há as queixas da classe média, que clama por liberdade religiosa e por um um regime político mais aberto; e há, por outro lado, o clamor contra os abusos da burocracia do Partido Comunista e do patronato capitalista. O que une a grande massa da população abaixo da classe média, inclusive o movimento amargo e desesperançado dos xiagang, é essa opressão. Os mingong reivindicam praticamente nada, salvo que os patrões levem a sério o compromisso salarial. E os camponeses nada exigem dos mandarins, salvo que levem a sério seu direito à terra e que a extorsão fiscal arbitrária tenha um fim.

Essa percepção difusa da injustiça social na China moderna é portadora de um risco mortal para os atuais detentores do poder. Porque qualquer crise econômica, com o consequente enfraquecimento da dominação central, poderá trazer a conjunção das atuais revoltas no campo com o movimento de uma vasta classe proletária industrial igualmente em busca de ascensão social. Em toda a história da humanidade, a acensão de um estrato social inferior oprimido ao nível de povo com direitos civis foi sempre tumultuosa. No caso do sistema de dominação em vigor na China, se os camponeses e mingong chegarem a romper as amarras que os mantêm na condição de estrato social inferior, será difícil encontrar uma razão de ser para o enorme aparelho do Partido Comunista, que hoje enquadra a sociedade chinesa nas relações de dominação do capitalismo mandarim. E uma vez dado esse conteúdo das contradições que movem a sociedade chinesa, perde relevância o fato de que hoje a luta no campo esteja fragmentada numa miríade de conflitos isolados e que o ritmo do movimento reivindicativo dos mingong seja baixíssimo. O fato decisivo é que o antagonismo entre a grande massa do povo oprimido e o aparelho estatal mandarim está em ação e a nova dinâmica histórica está desencadeada.

Simon Leys, comentando algumas características da China de todos os tempos, cita uma frase de um estudioso da literatura chinesa, J.P. Dieny: “A China trata as crianças como homens, e os homens como crianças.” Essa aguda observação é novamente confirmada por um professor de direito da Universidade do Povo, de Pequim, que, buscando justificar a tutela exercida pelo Partido Comunista sobre as eleições nas aldeias, declarou a um jornal do sul da China em 2002: “Os camponeses são como crianças que a mamãe deve ensinar a caminhar” (citado por Jean-Louis Rocca). Eternas crianças, impedidas de caminhar livremente pela feroz mamãe, os camponeses da China estão hoje passando pela dura escola do capitalismo. A menoridade forçada terminará por se tornar insustentável.”



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Publicado em:Vito Letizia

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3 Comentários

  1. Danilo Nakamura

    Cara Amanda,

    esse texto é um capítulo do livro “A grande crise rastejante” de Vito Letízia. Ele foi pensado para o formato de um artigo impresso, daí o tamanho do texto.

    Agradecemos a paciência da leitura!

    Atenciosamente,

    Danilo (Interludium)

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