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Apagando a história: acervo Marighella ameaçado

Como já virou rotina no governo Bolsonaro, o presidente da Fundação Cultural Palmares, Sérgio Camargo, usou as redes sociais para anunciar mais uma das decisões absurdas que marcam sua gestão. Ele escreveu no Twitter que o acervo de Carlos Marighella é “imprestável” e será “excluído” da fundação.

Camargo chamou Marighella de “terrorista comunista” e afirmou que seus textos deviam ser banidos. “A esquerda precisa parar de empurrar estas tranqueiras comunistas para cima dos pretos. Não queremos, muito menos precisamos, de lixo marxista!”, escreveu. O jornalista e escritor Fernando Morais se dispôs a acolher o acervo.

Cemap-Interludium, como entidade comprometida com a preservação da memória e responsável por um dos maiores acervos sobre a história da esquerda e dos movimentos populares, repudia a atitude de Sérgio Camargo, frontalmente oposta às responsabilidades do presidente de uma instituição voltada à promoção da história e da cultura negra, assim como seu ataque vil à memória de Marighella. Também parabenizamos e aplaudimos Fernando Morais pela iniciativa de resgate do acervo de Marighella.

Fernando Morais.

Segundo informou a colunista da Folha de S. Paulo Mônica Bergamo, Morais disse que pretende incluir a documentação de Marighella no centro de memória histórica do Brasil contemporâneo que faz parte da Casa de Mariana – o instituto criado em parceria com a Universidade Federal de Ouro Preto em Mariana (MG), cidade onde nasceu. Além do extenso material acumulado pelo jornalista em seus mais de 50 anos de profissão, a Casa de Mariana abriga, entre outros, os acervos de José Dirceu e do ex-ministro das Comunicações Sérgio Motta, e 30 anos de cartas de Carlos Lacerda.

Ao anunciar a exclusão de seu acervo no Twitter, em 24 de maio, Camargo afirmou que a Fundação Palmares não é “lata de lixo da esquerda”. Disse, ainda, que os livros serão doados e perguntou se há interessados. “O terrorista comunista, negro falsificado pela esquerda, nunca será herói e referência cultural dos pretos honrados e trabalhadores do Brasil. Seus textos são como os escritos de Hitler. Devem ser banidos!”

De acordo com o site do jornal baiano Metro1, a vereadora Maria Marighella (PT), neta de Marighella, apresentou uma moção de repúdio às declarações de Camargo na Câmara Municipal de Salvador. Na sessão, ela disse que as ofensas do bolsonarista depõem contra a história, a memória e a cultura “do nosso povo” e contra a trajetória política do avô. “Tomei conhecimento, pelas redes sociais, das ofensas do presidente da Fundação Palmares ao inimigo número 1 da ditadura militar. O homem que lutou contra a ditadura militar no Brasil: Carlos Marighella.”

Poeta, jornalista, político marxista, militante do PCB e depois guerrilheiro, Marighella (1911-1969) foi um dos principais organizadores da luta armada contra a ditadura militar, com a fundação da Ação Libertadora Nacional (ALN). Ele chegou a ser classificado de inimigo “número um” da ditadura.

Marighella foi deputado federal constituinte pelo PCB baiano em 1946, e cassado quando o partido foi posto de novo na ilegalidade. Preso e torturado várias vezes ao longo dos anos seguintes, Marighella passou a divergir das posições do PCB, especialmente depois do golpe de 1964. No fim dos anos 1960, rompeu com o PCB e partiu para a guerrilha com a ALN, que foi a principal organização da esquerda armada no Brasil. Acabou assassinado pela ditadura em uma emboscada em São Paulo, em 4 de novembro de 1969.

Em 1996, o Ministério da Justiça reconheceu a responsabilidade do Estado pela morte de Marighella. Boa parte de suas obras como militante pode ser acessada na seção em português do Arquivo Marxista na Internet, entre elas o famoso Pequeno Manual do Guerrilheiro Urbano.

Marighella na redação do Jornal do Brasil, em 31 de julho de 1964, dia em que deixou a prisão. Ele está tirando o paletó para denunciar os maus tratos que recebeu durante a sua detenção. Foto: Reprodução.

A Fundação Cultural Palmares foi criada pelo governo em 1988. De acordo com seu site, a entidade, hoje vinculada ao Ministério da Cidadania, tem como meta promover e preservar “os valores culturais, históricos, sociais e econômicos decorrentes da influência negra na formação da sociedade brasileira”, assim como “promover uma política cultural igualitária e inclusiva, que contribua para a valorização da história e das manifestações culturais e artísticas negras brasileiras como patrimônios nacionais”.

Mas esta não é a primeira vez que Sérgio Camargo provoca indignação. A começar por sua nomeação pelo presidente Jair Bolsonaro para dirigir a Fundação Palmares, em novembro de 2019, que chegou até a ser contestada na Justiça por causa de declarações de que não existe racismo no país e de que o movimento negro é uma “escória maldita formada por vagabundos”.

No fim de 2020, ele tentou retirar vários nomes da lista de personalidades negras “que marcaram a história do Brasil e do mundo” que a entidade mantém em seu site, com o argumento de que as pessoas excluídas não merecem esse reconhecimento. Entre as personalidades a serem removidas da lista estavam Gilberto Gil, Milton Nascimento, Martinho da Vila, a deputada federal Benedita da Silva (PT-RJ), a ex-senadora Marina Silva (Rede) e o transformista João Francisco dos Santos, conhecido como Madame Satã.

A decisão foi revertida em março, quando a Justiça Federal do Distrito Federal acatou ação popular e barrou a mudança. “A exclusão dos nomes das personalidades negras da lista foi uma agressão vil e racista e, agora, com a sua legítima devolução, isso passa a representar um ato de justiça e de reconhecimento da nossa história, cultura e memória”, afirmou Benedita na época. Para ela, a entidade “criada para promover a história e a cultura do povo negro” teve “sua missão sequestrada pela pessoa que o governo racista colocou em sua direção”.

Publicado em:Acervos,memória

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