Faz exatamente 90 anos que aconteceu a “batalha da Sé”, entre militantes da Frente Única Antifascista (FUA) e da Ação Integralista Brasileira. O confronto armado deixou um morto, o militante comunista Décio de Oliveira. A debandada dos integralistas, que eram apelidados de “galinhas verdes” por causa da cor de seus uniformes, ficou conhecida também como “a revoada dos galinhas verdes”.
A importância desse confronto vem do fato de comunistas, trotskistas, socialistas e anarquistas terem se unido na FUA, num momento em que os partidos comunistas de todo o mundo obedeciam às ordens de Moscou, de evitar esse tipo de aliança. Meses antes, os comunistas alemães haviam se recusado a fazer aliança com os social-democratas; o resultado é que o partido com mais votos, o nacional-socialista, acabou sendo encarregado de formar o novo governo alemão, e instaurou uma ditadura logo em seguida.
O episódio, e toda a movimentação para formar a Frente Única Antifascista, são narrados por Fúlvio Abramo no livro A Revoada dos Galinhas Verdes, da Editora Veneta. O texto de Fúlvio que deu origem ao livro foi publicado na primeira edição dos “Cadernos Cemap”, de outubro de 1984.
Para comemorar o aniversário, reunimos aqui depoimentos dados por Fúlvio, sua irmã Lélia Abramo e Mário Pedrosa em entrevistas publicadas há vários anos. Também apresentamos um videodocumentário sobre a Batalha da Sé que integra o site Mário Pedrosa 120 anos, de Cemap-Interludium.
Fúlvio Abramo, em entrevista a Eugênio Bucci para a primeira edição da revista Teoria e Debate da Fundação Perseu Abramo, em dezembro de 1987.
E 1934, na batalha campal da praça da Sé, quando vocês, na direção da Frente Única Antifascista (FUA), colocaram 6 mil integralistas pra correr? Sei que o episódio está detalhadamente narrado na publicação comemorativa do cinquentenário da FUA, editada em 1984 pelo Cemap, mas você poderia resumi-lo em poucas palavras? Como se formou a FUA?
Em 1934, eu tinha brigado com o patrão nos Diários, saí do jornal e fui trabalhar no comércio, numa empresa de transportes. Eu era então o secretário do GB I, perante a Liga, secretário do mesmo grupo perante a direção do PS, e freqüentava muito o Sindicato dos Comerciários, e não era mais da UTG. Lélia era do mesmo sindicato, além de dois dirigentes do Partido Comunista em São Paulo, o Noé Gertel e o Pedroso D’Horta, da juventude comunista. Quando lançamos a proposta de Frente Única contra o fascismo, primeiro ganhamos a UTG, porque a direção era trotskista. Mário Pedrosa, Aristides Lobo e Lívio Xavier militavam lá. Eu e Lélia conseguimos no nosso sindicato compor um grupo minoritário mas muito mais ativo do que o do PCB, que era contra a Frente Única, porque mantinha sua política de aliança com a pequena burguesia. Foram discussões terríveis, mas devo dizer que eu me portei bem, porque ganhei aquela luta contra eles. Foi então que conseguimos reunir cerca de trinta organizações sindicais para a formação da Frente Única.
Qual foi a tática de vocês para dobrar o Sindicato dos Comerciários?
Bem, primeiro nós fizemos na UTG uma reunião menor que conseguiu aglutinar em torno da proposta os socialistas, os trotskistas, alguns grupos e personalidades italianas e duas entidades não sindicais do Brasil. Foi depois disso que, numa reunião nos Comerciários, eu consegui dobrar os comunistas e o presidente do Sindicato – que era um oportunista chamado Américo Paulo Sesti – e convocar a reunião da Frente Única. Foi a partir disso que ela passou a existir. Isso tudo foi em 1933. Eu me tornei o presidente da Frente Única e também de um organismo maior, a Coligação das Organizações Proletários Antiintegralistas, em nome da qual nós passamos a convocar manifestações públicas contra os fascistas, como a comemoração do 12 de maio de 1934. Creio que foi esta a fase mais importante de minha vida política.
Vamos agora para a tarde de domingo de 7 de outubro de 1934, na batalha campal da praça da Sé, onde estava programada uma manifestação que reunia 6 mil integralistas armados. A Frente Única vai até lá e dissolve a manifestação na base do enfrentamento físico e do tiroteio. Quantas pessoas estiveram lá aquela tarde, e quantas morreram?
Só os integralistas eram 6 mil. Armados. Mais os simpatizantes deles, e nós. Eu acho que tinha, no mínimo, umas 30 mil pessoas. Morreram pelo menos seis guardas civis e o militante da juventude comunista, Décio Pinto de Oliveira. Mário Pedrosa foi ferido.
Então o PC aderiu?
Só na véspera. Na última noite, na noite do dia 6, quando não havia como não aderir, por causa da pressão dos militantes de São Paulo, principalmente da juventude comunista. Décio Pinto de Oliveira, que morreu com um tiro na nuca, foi um dos que pressionaram pela adesão da direção do PCB. E Aristides Lobo, da direção da Liga, deixou de aderir e ainda nos denunciou a todos como aventureiros. Depois ele foi expulso, claro.
Vocês foram armados para a praça da Sé?
Não. Não fomos armados. Quem levou as armas para nós foi a minha mulher, Ana, que era operária de uma fábrica de fósforos.
Logo depois disso você foi preso pela primeira vez, não é?
É. O Mário estava ferido e eu fui visitá-lo na Santa Casa. Lá fui preso. Eu fui para o presídio Paraíso. Fiquei apenas 22 dias, mas tive uma infecção seriíssima no dente, que chegou a espalhar-se pelo peito. Fiquei num porão infecto junto com dois militantes do Partido Comunista, que se negaram a falar comigo. Eles podiam falar com os familiares, mas eu estava incomunicável. Só saí de lá porque meu pai conseguiu falar com um deputado estadual, que chegou lá no Paraíso aos gritos e me tirou de lá. Era ninguém menos que Adhemar de Barros. Meu pai sabia que eu estava doente pelo carcereiro e foi aí que o aconselharam a procurar um deputado médico. Adhemar de Barros, veja só.
Lélia Abramo, em entrevista a Alipio Freire e Eugênio Bucci para a edição nº 5 da revista Teoria e Debate da Fundação Perseu Abramo, em janeiro de 1989.
Parece que no dia 7 de outubro de 1934, no dia da Frente Única Antifascista, quando militantes socialistas, anarquistas, comunistas e trotskistas colocaram 6 mil integralistas para correr, numa batalha campal na praça da Sé, você foi uma das que transportou as armas…
Eu não. A mim entregaram uma arma, mas não fui eu quem carregou. Foi uma coisa tão terrível, tão impressionante, que certos detalhes eu nem percebi direito. Na noite anterior, houve uma reunião entre a cúpula do Partido Comunista, os anarquistas, os socialistas e a organização trotskista. Eu estava no Sindicato dos Comerciários, ali na Praça da Sé, de cuja direção participava, mas não sabia da reunião. Na frente tinha o Sindicato dos Bancários. Muitas vezes eu ficava aqui na assembleia dos comerciários, descia a escada, atravessava a rua, e ia lá. Porque eu também trabalhei em um banco. Então eu era bancária e comerciária. Nós éramos elementos de base, não estávamos a par dos movimentos das cúpulas. Nós só recebíamos ordens. Naquele tempo era muito diferente de hoje. Havia um escalonamento hierárquico, que era necessário pois a perseguição era feroz, e se os partidos clandestinos não tivessem a organização férrea teriam sido dizimados, como nos anos 60 e 70, em que ocorreu uma mortandade. Os grandes líderes morreram assassinados da maneira mais bárbara e, sobretudo, da maneira mais lamentável possível, porque deveriam ter sido resguardados. O chefe você não expõe. Isso é contra a teoria da luta clandestina. Bem, mas nessa noite anterior…
Só uma coisa: você está dizendo que o chefe não se expõe. Mas naquela época os chefes da organização trotskista eram o Fúlvio e o Mário Pedrosa, que se expuseram escandalosamente.
Sim, mas estes eram obrigados. Eles eram os elementos atuantes.
Mário Pedrosa até foi ferido…
Foi. Recebeu um tiro. Mas, nessa noite anterior, nós recebemos a ordem, cada um da sua respectiva organização e depois da Frente Antifascista: estar no dia seguinte, às tantas horas, na praça. E recebemos as ordens daqueles que organizavam a distribuição dos elementos, porque cada partido distribuíra seus filiados em determinadas zonas nas proximidades da Praça da Sé. Aquelas ruas adjacentes à praça, todas elas eram ocupadas por membros dos vários partidos. Eram artistas, comunistas, trotskistas, socialistas, anarquistas… Eu estava com meus colegas trotskistas, bem perto da escadaria da catedral, onde estavam concentrados os integralistas. E nossos dirigentes disseram: “Quando vocês receberem ordens, atirem”. É claro que não eram militares que estavam dirigindo a ofensiva [risos], eram militantes comunistas. Não sei se entendiam de estratégia de guerra, mas havia um esboço de estratégia. Eu sei que a ordem era deixar passar as crianças, aqueles menininhos todos fardados. Os integralistas fizeram de propósito, levaram as crianças e as mulheres fardadas. E a ordem era deixar passar as crianças, as mulheres e depois avançar. E foi isso que nós fizemos. Foi terrível, foi um tiroteio feio, pois alguns reagiram. A cavalaria estava ali. Não sei que partido eles tomaram, isso não ficou bem claro, sei que tinha muita fumaça, muita correria, muito grito. Os tiros passaram por cima da gente.
Você nem atirou?
Não. Mas o tiroteio foi bem grande. Como é que eu ia pensar? Eu nem pensei. Eu seria incapaz de dar um tiro, teria morrido, isso sim. Para isso a gente estava lá. Mas para dar um tiro… eu não.
Mário Pedrosa, em entrevista ao semanário O Pasquim, publicada na edição 646, de 12 a 18 de novembro de 1981. Os entrevistadores são Lygia Pape, Pelão, Ferreira Gullar, Darwin Brandão, Hélio Pellegrino, Washington Novaes, Ricky Goodwin, Jaguar, Ziraldo e Félix de Athayde. E entrevista foi republicada em 2017 no número 34 da revista Arte & Ensaios, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Mário – Os integralistas iam fazer um triângulo, começando pela Rua São Bento, passando pela XV de Novembro e entrando no Largo da Sé, onde fariam uma manidfestação diante dos sindicatos. Tinham uma milícia armada, comandada pelo generalíssimo Gustavo Barroso. A Frente Única Antifascista – comunistas, trotskistas, socialistas – resolveu impedir isso, porque na verdade o que pretediam era massacrar os sindicatos. Organizamos a seguinte tática: iríamos até lá, dissolveríamos a manifestação e quando a polícia montada interviesse, saíamos fora, deixando que os dois se enfrentassem. Seria um ataque de provocação. Cada grupo tinha o seu núcleo armado.
Hélio Pellegrino – Quer dizer, seria uma verdadeira guerra.
Mário – Havia uma tensão muito grande. Ficamos postados na XV de Novembro, e quando voltassem, gritaríamos “Abaixo o Fascismo!”, mas com isso desistiram de fazer o triângulo. Tomaram um atalho pela Diogo Feijó. A Praça da Sé tava assim de gente! Havíamos combinado que os camaradas mais visados não iriam com armas, porque a polícia vai vendo alguém com arma vai prendendo. Eu, por exemplo, fui revistado várias vezes, mas estava sem nada. O pvo todo na rua. Aí houve um momento que a polícia veio e espalhou o pessoal todo. Só quando todos foram retirados é que os integralistas entraram por uma ruazinha. Começaram a se armar, a desfraldar bandeiras, e nos reunimos para ver como poderíamos impedir aquilo. Quando estávamos nessa conversa, houve tiros do lado dos sindicatos. Hoje se sabe que isso foi provocação de alguns tiras, para ver se os sindicalistas contra-atacavam. Com esse tiros houve muita correria, e um grupo de integralistas deitou no chão e começou a atirar. Muita gente caía ferida, muitos corriam, e fiquei sozinho num pedaço de praça. Vários integralistas então me cercaram: “Vamos acabar com esse podre!” Só não morri naquele momento porque uma menina de 12 anos colocou-se na minha frente.
Ricky – Colocou-se como?
Mário – Era a filha do Klassemkampf [Rudolf Lauff] – chamado por nós de Luta de Classes – que esteve preso na 1ª Guerra e depois transformou-se num membro do Exército Vermelho. Ele dizia sempre: “Não tenhamos medo, camaradas, que do outro lado eles têm mais medo!” Essa menina estava lá, me viu lá na frente, cercado, saiu e foi se pôr junto a mim. “Não tenha medo, eu vim aqui para ajudar você, pra defender você.” Os integralistas então não ousaram atacar essa menina. Vários episódos assim ocorreram naquele dia. Houve cento e tantos mortos e eu levei um tiro.