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Apontamentos sobre o lugar da história em ‘O Capital’ de Marx

§ 1 – Minha comunicação tem como objetivo apontar para o lugar da história no Livro I d’O Capital. Seguindo Ingo Elbe, em Marx im Westen: die neue Marx-Lektüre in der Bundesrepublik seit 1965 (2008), tentarei contextualizar as quatro maneiras em que a história é considerada, a saber: a) o duplo modo em que a história é considerada dentro do modo de apresentação lógico-sistemática: 1) o conteúdo especificamente histórico das categorias; 2) as condições estruturais da dinâmica histórica que se desdobram dentro da formação capitalista, mas cujos resultados não são dedutíveis; b) o duplo modo como a história é considerada como limitação da forma de análise lógico-sistemática: 3) a contingência histórica de um acontecimento singular que não provém necessariamente das estruturas fundamentais do sistema; e 4) o devir histórico externo ao sistema, mas incorporado ao conceito de capital como a pressuposição para a autorreprodução do sistema. Minha hipótese é que essa contextualização me permitirá apontar para a tentativa marxiana de demonstrar o sistema capitalista como um sistema finito e para a dimensão do político implícita nessa tentativa.

1) O conteúdo especificamente histórico das categorias

§ 2 – Marx considerava as categorias da Economia Política como formas de manifestação das relações sociais capitalistas. Para ele, a relação entre capital e trabalho é a relação específica, historicamente determinada, do modo de produção capitalista, isto é, a relação que “capta a differentia specifica do capital na diferença de todas as outras formas de riqueza” (Grundrisse, p. 409). Faltava à Economia Política apreender o caráter historicamente determinado de suas categorias.

§ 3 – A categoria trabalho parece ser uma categoria simples e não uma categoria histórica da sociedade moderna. No entanto, o “trabalho pura e simplesmente”, considerado como atividade criadora de riqueza, afastada de toda determinidade, “pressupõe a existência efetiva de uma totalidade muito desenvolvida de espécies de trabalho”, em uma “forma de sociedade onde os indivíduos possam passar formalmente de um trabalho para o outro, tornando-se-lhes fortuita e, portanto, indiferente, a espécie determinada de trabalho”. Somente sob essas condições históricas o trabalho pode se tornar uma categoria da Economia Política, isto é, quando sua abstração se tornou “efetividade, como meio de criação da riqueza em geral e deixou de ser uma determinação vinculada ao que os indivíduos têm de peculiar” (Grundrisse, p. 25).

§ 4 – A Economia Política definiu a categoria capital como “trabalho acumulado”, “meio de produção”, “soma de valores” ou “o que produz lucro”. Para Marx, essas definições são “a-históricas” ou pressupõem o que deveriam explicar. Assim, como o trabalho considerado como atividade geral criadora de riqueza, o capital tem de ser considerado em sua forma geral. Como “capital em geral”, ele tem de ter também uma existência real, ao lado dos outros capitais particulares: “enquanto o universal é, de um lado, só differentia specifica pensada, ele é ao mesmo tempo uma forma real particular ao lado da forma do particular e do singular” (Grundrisse, p. 353). O que é comum a todos os capitais é a propriedade de expandir o seu valor. O capital industrial se apresenta como universalidade pensada na sua diferença específica e, ao mesmo tempo, como forma real particular ao lado das outras, pois é ele que apresenta a relação fundamental do modo de produção capitalista, a relação de trabalho assalariado, e onde se cria e se apropria diretamente da mais-valia.

2) As condições estruturais da dinâmica que se desdobram dentro da formação capitalista, mas cujos resultados não são dedutíveis

§ 5 – Os assim chamados capítulos históricos d’O Capital – “A jornada de trabalho”, “Cooperação”, “Divisão do trabalho e manufatura” e “Maquinaria e grande indústria” – têm um lugar preciso na obra.

§ 6 – O capítulo 8, “A jornada de trabalho”, pressupõe a apresentação prévia do conceito de capital. Após a apresentação do processo de produção capitalista, o capital torna-se um processo em que ele mesmo açambarca o trabalho vivo, ao se rebaixar de sua pureza como processo para se tornar material, ou seja, capital constante, opondo-se ao trabalho sem-objetividade, ao mesmo tempo em que é imediatamente a própria vivacidade efetiva do trabalho, ou seja, capital variável. Assim, o capital deixa o trabalho desempenhar a sua natureza no processo de produção, incorporando-o como momento seu, suspendendo a separação entre o seu ser-aí mesmo como capital e o trabalho, fazendo de ambos, o trabalho vivo e os meios de produção, o “corpo de sua alma” (Grundrisse, pp. 269-70).

§ 7 – O conceito derivado de capital é uma espécie de “critério de seleção” (Marx im Westen, p. 591) para a análise histórica. O capítulo sobre a jornada de trabalho pressupõe a apresentação desse conceito. A mais-valia só pode ser produzida, neste momento, através do prolongamento da jornada de trabalho, pois o capital não se apoderou diretamente do processo de trabalho, ou seja, pressupõe-se um modo de trabalho aí-presente (vorhanden), correspondente a um dado um dado desenvolvimento histórico das forças produtivas.

§ 8 – Se, nesse primeiro momento, o capital ordena o trabalho nas condições que ele encontra historicamente, formando a “base universal” do sistema capitalista, através da divisão da jornada de trabalho em trabalho necessário e mais-trabalho, esse é o ponto de partida para revolucionar as condições técnicas e sociais do processo de trabalho. O capital assimila o seu pressuposto histórico, tornando-o sua potencia, que só nele se conserva, se desenvolve e se objetiva, pois essas condições técnicas pressupostas desenvolvem-se historicamente apenas como o modo de produção especificamente capitalista. Por isso, Marx considera o capital como um “sistema orgânico”, que tem suas pressuposições, e seu desenvolvimento para a totalidade consiste justamente em subordinar para si todos os elementos da sociedade ou em criar a partir de si os órgãos que lhe faltam. Assim, ele se torna historicamente totalidade. O vir-a-ser para essa totalidade forma um momento de seu processo, de seu desenvolvimento (Grundrisse, p. 189).

§ 9 – A apresentação dos métodos particulares de produção da mais-valia relativa – cooperação, manufatura e grande indústria – é a reconstituição regressiva da lógica histórica do vir-a-ser do capital como totalidade efetiva. Ela fornece a legitimação ou a demonstração da derivação do capital. Ao assimilar a sua pressuposição histórica, o capital cria as condições técnicas e sociais do processo de produção especificamente capitalista, as quais deixam de ser, portanto, condições pressupostas que ele apenas encontrava historicamente. Segundo, J. Grespan:

“Trata-se, antes, da demonstração de como as condições efetivas da ‘subordinação formal’ do trabalho ao capital têm em si mesmas a capacidade de se desenvolver em condições efetivas da ‘subsunção real’, porque levam ao domínio do próprio processo de trabalho pelo capital e à sua fetichização enquanto fator de produção. Esta passagem, portanto, está inserida na lógica de conversão da história em totalidade, em que o capital ‘subordina a si todos os elementos da sociedade’.” (O negativo do capital, p. 255)

3) A contingência histórica do acontecimento singular que não provém necessariamente das estruturas fundamentais do sistema

§ 10 – A passagem da circulação simples de mercadorias ao processo de produção capitalista não é uma passagem propriamente histórica, mas sim lógico-categorial. Para Marx:

“(…) nós não temos de fazer aqui a passagem histórica da circulação ao capital. A circulação simples é antes uma esfera abstrata do processo total burguês, que através de sua própria determinação se indica como momento, como mera forma de manifestação de um processo mais profundo situado atrás dela, que resulta dela como se ela produzisse: o capital industrial.” (Urtext, pp. 68-9)

§ 11 – Essa passagem é a transformação do dinheiro em capital. Para isso, Marx tem de apresentar de onde surge a mais-valia e o problema é posto nos seguintes termos: a mais-valia não pode surgir da circulação de mercadorias, pois na lei do intercâmbio de mercadorias vigora a troca de equivalentes, portanto a troca de mercadorias não é um meio para enriquecer em valor. No entanto, a circulação de mercadorias tem de servir como ponto de partida para a transformação do dinheiro em capital, com base nas leis imanentes ao intercâmbio de mercadorias. O impasse é assim formulado:

“Nosso possuidor de dinheiro, por enquanto ainda presente apenas como capitalista larvar, tem de comprar as mercadorias por seu valor, vendê-las por seu valor e, mesmo assim, extrair ao final do processo mais valor do que nele lançou. Sua metamorfose em borboleta tem de ocorrer na esfera da circulação e não tem de ocorrer na esfera da circulação.” (Das Kapital, I, pp. 180-1)

J. Grespan comenta assim o que está em jogo aqui:

“A própria apresentação categorial chegou a seu impasse, que pode ser resolvido somente com a incorporação de um pressuposto não desenvolvido por ela, mas tomado da consideração de circunstâncias sociais historicamente determinadas, dentro das quais o capital se forma na realidade.” (O negativo do capital, p. 100)

§ 12 – As condições da circulação de mercadorias são realizadas quando o possuidor de dinheiro encontra no mercado uma mercadoria específica, de cujo consumo seja possível extrair valor, ou seja, uma mercadoria cujo consumo é em si objetivação de trabalho, por conseguinte, criação de valor. Essa mercadoria é a força de trabalho. Para que o possuidor de dinheiro a encontre no mercado é necessário que duas condições históricas estejam postas: 1) a força de trabalho tem de ser vendida como mercadoria pelo seu possuidor, que tem de ser livre proprietário de sua capacidade de trabalho, o que exclui outras relações de dependência; 2) o proprietário da mercadoria força de trabalho tem de ser livre de todas as coisas necessárias à realização de sua força de trabalho, ou seja, não pode possuir outras mercadorias para vender, nem outros valores-de-uso para sua própria subsistência, nem meios para produzi-los.

§ 13 – Essas condições históricas se apresentam como uma limitação do modo de apresentação lógico-sistemática, pois se apresentam o resultado de eventos singulares contingentes que não procedem necessariamente da estrutura fundamental do sistema. A dialética marxiana põe da seguinte forma a sua pressuposição histórica:

“O processo histórico passado determinado, no qual essa pressuposição é dada, será formulado mais determinadamente pela ulterior consideração da relação. Mas essa etapa do desenvolvimento histórico da produção econômica – na qual o produto mesmo já [é] o trabalho livre – é pressuposição para o devir (Werden) e ainda mais [para] o ser-aí do capital enquanto tal. Sua existência é o resultado de um longo processo histórico na configuração econômica da sociedade. Neste ponto determinado, mostra-se como a forma dialética da apresentação só é correta quando ela conhece os seus limites (Grenzen). Da consideração da circulação simples resulta para nós o conceito geral (allgemeine) de capital, porque, dentro do modo de produção burguês, a circulação simples só existe como pressuposição do capital e o pressupondo. O resultado da mesma não faz do capital a encarnação de uma ideia eterna, mas sim mostra como só dentro da efetividade, só como forma necessária, no trabalho que põe valor-de-troca, ele tem de desembocar na produção que repousa sob o valor-de-troca.” (Urtext, p. 91)

4) O devir histórico externo ao sistema, mas incorporado ao conceito de capital como a pressuposição para a sua autorreprodução

§ 14 – O “trabalho livre” é o “resultado de um longo processo histórico na configuração econômica da sociedade”. Ele é posto no capítulo 4 d’O Capital, “A transformação do dinheiro em capital”, como uma pressuposição histórica. A citação acima afirma também que a etapa do desenvolvimento histórico da produção econômica na qual o trabalho é livre é uma “pressuposição para o devir do capital enquanto tal”. Ela afirma também que é “neste ponto determinado” onde se mostra “como a forma dialética da apresentação só é correta quando ela considera os seus limites”. É “neste ponto determinado” onde a dialética choca-se com seus limites e onde o capital se mostra não como a “encarnação de uma ideia eterna”, ou seja, onde o sistema capitalista se apresenta como dependente de condições que ele mesmo não produziu.

§ 15 – Essas condições são, de um lado, a existência do trabalho assalariado e, de outro lado, a existência de uma acumulação prévia de dinheiro e meios de produção que possam ser transformados em capital. A existência dessas duas condições é o resultado de um devir histórico, cuja unidade é a acumulação originária, que é a descrição de cada fase do desenvolvimento das relações burguesas apoiada no caso histórico inglês. A aparição de uma massa de produtores separados de seus meios de produção e transformados em trabalhadores assalariados e a acumulação desses meios nas mãos de uma massa de possuidores foi o resultado de um processo histórico violento, que colocou o capitalista de um lado e o trabalhador de outro.

§ 16 – A reprodução das relações entre trabalho assalariado e capital dentro do sistema capitalista é uma “continuidade estrutural” de uma relação fundada através da violência imediata. Por um lado, com a plena organização do processo capitalista de produção, essa violência imediata da acumulação originária dá lugar à coação muda das relações econômicas, pois o trabalhador é abandonado às leis naturais de produção, de modo que a sua dependência do capital surge das próprias condições de produção, reproduzidas em escala ampliada pelo processo de acumulação.

§ 17 – Por outro lado, o processo de acumulação capitalista apresenta palpavelmente o caráter antagônico da relação de propriedade capitalista ao monopolizar as vantagens do progresso em poucos “magnatas do capital”, aumentando, correspondentemente, a massa de miséria da classe trabalhadora. A dissolução desse antagonismo se resolve no campo da luta de classes.

§ 18 – Marx pretende, com isso, legitimar a sua apresentação dialética do sistema capitalista apontando para um diagnóstico histórico do presente. A apresentação lógico-sistemática é uma construção conceitual que torna o presente inteligível e fornece o fio condutor para uma reconstrução regressiva do passado. O presente se mostra, por um lado, como um limite intransponível – isto é, a dependência do trabalhador é garantida e eternizada pelas próprias condições de produção capitalista – e, por outro lado, como ponto de ruptura e lugar de passagem – isto é, a “tendência histórica da acumulação capitalista” mostra que “a produção capitalista produz com a necessidade de um processo natural sua própria negação. É a negação da negação” (Das Kapital, p. 791). Essa dupla caracterização do presente, considerado fio condutor de reconstrução do passado e lugar de passagem, aparece da seguinte maneira nos Grundrisse:

“(…) o que é muito importante para nós, nosso método mostra os pontos onde a consideração histórica tem de entrar, ou onde a economia burguesa, como mera figura histórica do processo de produção, aponta para além de si mesma para modos de produção anteriores historicamente. Por isso não é necessário, para desenvolver as leis da economia burguesa, escrever a história efetiva das relações de produção. Mas a correta observação e dedução da mesma, como relações tornadas propriamente histórica, levam sempre a primeiras equações – como os números empíricos, p. ex., nas ciências naturais – que apontam para um passado situado detrás deste sistema. Tais indicações, juntamente com a correta compreensão do presente, fornecem igualmente a chave para o entendimento do passado (…). Por outro lado, essa consideração correta também leva a pontos nos quais se indicam a superação da presente figura das relações de produção – e, assim, o movimento que vem-a-ser, a prefiguração do futuro. As fases pré-burguesas aparecem como apenas históricas, i. e., como pressuposições suspensas, de maneira que as condições atuais de produção aparecem suspendendo a si mesmas e pondo-se, consequentemente, como pressuposições históricas para um novo estado de sociedade.” (Grundrisse, pp. 364-5)

§ 19 – Marx apresenta o sistema capitalista como um “sistema finito”, que, por um lado, tem pressuposições que não são postas por ele originalmente, mas que são reproduzidas por ele mais tarde; por outro lado, as próprias “condições atuais de produção” aparecem como “pressuposições históricas para um novo estado de sociedade”. Isso porque a subsunção do trabalho ao capital é uma “estrutura de dominação, que permanece dependente dos meios de poder dos dominantes, sejam eles tácitos ou extraeconômicos, e de cuja manutenção depende, igualmente, a estrutura do sistema” (Andreas Arndt, Karl Marx. Versuch über den Zusammenhang seiner Theorie, p. 266). A reprodução das pressuposições históricas pelo sistema repõe o caráter antagônico da relação de propriedade capitalista, cuja dissolução Marx aponta para a luta de classes. Para Arndt, “a teoria revolucionária da economia política, que demonstra o modo de produção capitalista como mera forma histórica e finita de produção, não apresenta nenhuma teoria da revolução. Ela mostra apenas em que lugar o poder, dentro do sistema material de produção, (…) tem de se estabelecer e é atacável” (Ibidem, p. 266). A política se apresenta então como um “campo experimental” ou um “lugar vazio”, diagnosticado em “pontos cruciais” do sistema, sendo, portanto, uma “falta necessária” da teoria em geral (Ibidem, p. 109). Portanto, o campo do político é meramente indicado pela apresentação marxiana. Haveria, assim, uma determinação, pela análise lógico-sistemática, do espaço do político, que em si mesmo, entretanto, permaneceria indeterminado. Essa leitura não só protege Marx de generalizações de um dogmatismo estritamente econômico, como também talvez nos permita encontrar, nesse espaço, as configurações contemporâneas da luta de classes.


Publicado em:teoria

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