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As dívidas ilegítimas

Na primavera de 2010, os grandes bancos europeus, em primeiro lugar os bancos alemães e franceses, convenceram a União Europeia e o Banco Central Europeu de que o risco de falta de pagamento da dívida pública da Grécia colocava em perigo o seu orçamento global. Eles pediram para serem postos ao abrigo das consequências da gestão das referidas instituições. Os grandes bancos europeus foram fortemente ajudados no outono de 2008, no momento em que a falência do banco Lehman Brothers em Nova York conduziu a crise financeira ao paroxismo. Após o seu salvamento, eles não depuraram todos os ativos tóxicos das suas contas. E continuaram, ainda, a fazer colocações financeiras de alto risco.

Para certos bancos, a mínima falta de pagamento significaria a falência. Em maio de 2010, um plano de salvamento foi montado, com uma vertente financeira e uma vertente de austeridade orçamentária drástica e de privatização acelerada: fortes baixas nas despesas sociais, diminuição dos salários dos funcionários públicos e redução do seu número; novos ataques ao sistema de pensões, sejam elas por repartição ou por capitalização.

Os primeiros países a aplicar tais medidas, como a Grécia e Portugal, foram presos numa espiral infernal onde as camadas populares e os jovens são as vítimas imediatas. A cada mês um número mais importante de países na Europa ocidental e mediterrânea é envolvido, depois de ter sido provocada uma devastação nos países bálticos e balcânicos.

É aos trabalhadores, à juventude e às camadas populares mais vulneráveis que é imposto o custo do salvamento do sistema financeiro europeu e, portanto, do sistema mundial.

Precisamos dos bancos na sua forma atual? Será preciso continuar a salvá-los?

Duas séries de ideias estreitamente interligadas nos são veiculadas, com poucas nuances, pelo governo, pelos dirigentes da UMP1A Union pour un mouvement populaire (União por um Movimento Popular) foi um partido francês de direita criado em abril de 2002 pelo então presidente Jacques Chirac com vistas às eleições desse ano. A UMP reelegeu Chirac e em 2007 elegeu Nicolas Sarkozy para sucedê-lo. Na oposição desde 2012 e sacudido por crises internas, o partido foi reestruturado em 2015, por proposta de Sarkozy, com o nome de Les Républicains (Os Republicanos)., do Partido Socialista e pelos partidos ditos centristas.

As primeiras dizem respeito à dívida pública, as segundas aos bancos. Os “sacrifícios” pedidos no plano das pensões, no congelamento dos salários na função pública, nos novos cortes drásticos no orçamento da educação, etc, seriam necessários, segundo eles, afim de que a “dívida da França seja honrada”. É preciso também evitar que a França perca a nota AAA que lhe atribuem as agências de classificação de risco, e que ela não seja obrigada a pagar juros sobre a dívida pública mais elevados do que aqueles que paga atualmente. No que diz respeito aos bancos, segundo o governo, eles têm funções indispensáveis que exercem bem, ou, em todo caso, suficientemente bem, pelo que é necessário e legítimo socorrê-los cada vez que o solicitem.

A obrigação de “honrar a dívida”, como a de “socorrer os bancos”, repousa sobre a ideia de que somas que representam o fruto de uma poupança pacientemente realizada, através de um árduo trabalho, teriam sido emprestadas. “A maioria dos economistas considera que os bancos são simples intermediários entre os depositantes e os que solicitam empréstimos. Outra maneira de exprimir esta crença amplamente aceita é dizer que os bancos recolhem a poupança e financiam o investimento. A partir daí, é fácil concluir que um montante dado de poupança deve ser constituído antes que um investimento possa se realizar”, escreve um especialista do crédito que trabalha nos Estados Unidos.2Robert Guttmann, How Credit-Money Shapes the Economy, M. E. Sharpe, Armonk, New York, 1994, página 33.

A realidade é totalmente diferente. Os empréstimos concedidos pelos bancos não têm nenhuma relação com o montante de depósitos e de pequenas poupanças que lhes foi confiado. Eles nunca foram simples intermediários. Desde a sua transformação em grupos financeiros diversificados, realizando operações transnacionais, isto tornou-se ainda mais evidente.

Os lucros dos bancos provém das suas operações de criação de crédito. A sua origem se encontra no fluxo de riqueza (valor e mais-valia) proveniente das atividades de produção. O caminho seguido variará conforme o tomador do empréstimo. No caso de um Estado, ele passa pelo imposto e pelo serviço de juros da dívida pública. No caso de uma empresa, trata-se de uma fração do lucro. No caso de famílias e particulares, é uma parte dos seus salários ou das suas pensões que é absorvida pelos juros que pagam sobre os seus créditos hipotecários ou pela movimentação dos seus cartões de crédito. Quanto mais um banco empresta, mais os seus lucros são elevados. Durante as últimas duas décadas, eles conceberam meios que pareciam permitir fazer isso. As “inovações financeiras” deram origem a uma rede muito densa de transações interbancárias.

É a partir destas “inovações” que os bancos puderam acionar aquilo que é chamado de “efeito de alavanca” ou “alavancagem”, ou seja, uma relação entre os empréstimos e seus capitais próprios e ativos financeiros disponíveis, cuja proporção (de até mais de 30%) os coloca permanentemente em situação de grande fragilidade. Os bancos sabem disso mas contam com os governos para lhes assegurar em todas as circunstâncias, e qualquer que seja o custo social, uma rede de segurança e, em casos extremos, a socialização das suas perdas.

O FMI publica a cada seis meses, mais ou menos simultaneamente, dois grandes relatórios: um sobre as perspectivas da economia mundial e outro sobre o estado do sistema financeiro mundial. O primeiro atrai a atenção de todos os economistas. O FMI apresenta aí as suas projeções macroeconômicas. Elas são, portanto, terreno familiar. O segundo é lido apenas por aqueles que, no contexto da globalização comercial e financeira, atribuem importância às finanças e às crises financeiras. Em janeiro de 2011, o FMI já estimava que uma das grandes incertezas da situação econômica mundial vinha do fato de que na Europa “a interação entre os riscos soberano e bancário se intensifica”.3FMI, Rapport sur la stabilité financière dans le monde, Note intérimaire, Janvier 2011.

O primeiro capítulo do novo relatório sobre a situação do sistema financeiro mundial confirma essa avaliação. Ele acentua a vulnerabilidade dos bancos, em particular dos bancos europeus.4FMI, Global Financial Stability Report, abril de 2011, capítulo 1, quadro 1.1. A avaliação do diretor do departamento de mercados financeiros e monetários do FMI é a seguinte: “Quase quatro anos depois do início da crise financeira, a confiança na estabilidade do sistema bancário global ainda precisa ser totalmente restaurada.” E salienta, no que se refere aos bancos europeus: “Alguns bancos ainda têm uma proporção de alavancagem muito importante, têm capitais próprios insuficientes, dada a incerteza sobre a qualidade dos seus ativos. Estes níveis baixos de fundos próprios tornam alguns bancos alemães, bem como as caixas de poupança italianas, portuguesas e espanholas em dificuldades, vulneráveis a novos choques.”5Observações de José Vinals citadas por Martine Orange, Mediapart, em 15 de abril de 2011.

O papel dos bancos é fornecer crédito comercial a curto prazo (o desconto de papéis comerciais de curtíssimo prazo) e empréstimos a mais longo prazo às empresas para seus investimentos. Este papel é indispensável ao funcionamento do capitalismo. E seria assim para qualquer forma de organização econômica baseada em modos descentralizados de propriedade social dos meios de produção, pressupondo o recurso à troca.

O balanço de três décadas de liberalização financeira e de quatro anos de crise coloca, em qualquer caso, a questão da utilidade econômica e social dos bancos na sua forma atual. Transformados em conglomerados financeiros, os bancos têm direito ao suporte dos governos e dos contribuintes a cada vez que seus balanços econômicos sejam ameaçados por suas próprias decisões de gestão? Muita pessoas começam a duvidar disso. Elas expressam isso às vezes, como fez Eric Cantona (futebolista francês que teve seu momento de glória na França e na Inglaterra, e fez um apelo pela retirada dos depósitos bancários em dezembro de 2010), de uma maneira que os meios de comunicação não podem ignorar. Não destruir os bancos, mas aproveitá-los para que possam cumprir as funções essenciais que, em princípio, lhes pertencem, é esta a resposta que dou juntamente com outros, como Fréderic Lordon.6Ne pas détruire les banques: les saisir!, Frédéric Lordon.

Para uma definição da ilegitimidade das dívidas públicas

A noção de dívida odiosa foi aplicada desde os anos 1980 à dívida dos países do Terceiro Mundo. Sua possível aplicação no caso da dívida da Grécia foi discutida. Trata-se de uma noção que vem do período entre as duas guerras mundiais. A primeira definição pertence a Alexander Sack, jurista russo e professor de direito internacional em Paris: “Dívida contraída por um regime despótico (nós diríamos hoje ditadura ou regime autoritário), para objetivos estranhos aos interesses da nação, aos interesses dos cidadãos”.7Ver Dette Odieuse no sítio do CADTM. O Center for International Sustainable Development da Universidade McGill de Montreal deu uma definição bastante parecida no princípio dos anos 2000, porém já mais alinhada à financeirização contemporânea. Segundo esta definição, as dívidas odiosas são “aquelas que foram contraídas contra os interesses da população de um Estado, sem o seu consentimento e com todo o conhecimento de causa por parte dos credores”.8Em Global Economic Growth Report, Toronto, julho de 2003.

Esta definição se aplica perfeitamente à dívida específica que pesa na própria França sobre municipalidades, conselhos regionais e até alguns hospitais, cujos representantes eleitos ou diretores acabam de se constituir em associação para desencadear ações judiciárias coletivas contra os bancos.9Ver Prêts toxiques: les élus s’allient pour attaquer les banques, Le Monde, 8 de março de 2011. Eles foram incentivados por estes bancos a comprar “produtos estruturados”, que deveriam facilitar, pelo seu rendimento elevado, o financiamento de projetos de investimentos importantes, num contexto de transferência de despesas do Estado para as regiões. Estes títulos financeiros opacos, transformados em “ativos tóxicos” com a crise do outono de 2008, sobrecarregam os orçamentos. O fato de que eles tenham sido comprados ilustra, obviamente, o fato de que o fetichismo do dinheiro não é apenas próprio dos negociantes, pois ele influencia as opções dos funcionários eleitos e dos administradores locais. Mas os bancos sabiam perfeitamente os riscos que estas compras acarretavam, o jogo de casino no qual faziam entrar os compradores. O endividamento adicional contraído pelas municipalidades como resultado da compra de títulos podres constitui as “dívidas odiosas”.

A noção mais ampla de dívida ilegítima me parece corresponder mais estreitamente à dívida dos países capitalistas avançados, nomeadamente os da Europa. É esta a posição dos militantes do Comitê pela Anulação das Dívidas do Terceiro Mundo (CADTM).10Ver Eric Toussaint, Face à la dette du Nord, quelques pistes alternatives,19 de janeiro de 2011. Os fatores destacados com mais frequência como constitutivos deste conceito dizem respeito às condições que levaram um país a acumular uma dívida elevada e a se colocar nas mãos dos mercados financeiros. Aqui a ilegitimidade tem sua origem em três mecanismos: despesas elevadas com a característica de “presentes” feitos ao capital; um nível baixo da tributação direta (impostos sobre o rendimento, o capital e o lucro das empresas) e sua progressividade muito fraca; uma evasão fiscal importante. Encontramos esses três fatores tanto no caso da Grécia como no caso da França, da mesma forma que em todos os países hoje atacados pelos fundos especulativos e pelos bancos.

No que diz respeito à França, a dívida nasceu, a partir de 1982, do “presente” feito ao capital financeiro durante as nacionalizações do governo da União da Esquerda. O seu crescimento ligou-se, em seguida, ao movimento de liberalização financeira, sendo que a sua primeira fase, nos anos 1980, foi marcada por taxas de juro reais muito elevadas. O endividamento do Estado tem a sua origem na debilidade da tributação direta (imposto sobre o rendimento e imposto sobre as empresas) e na evasão fiscal. Em vez de enfrentar os grupos sociais que são beneficiados e recorrem a esses processos, os governos, tanto do Partido Socialista como do RPR-UMP, “contornaram” o problema da maneira mais favorável ao capital e às fortunas. Eles solicitaram empréstimos àqueles sobre quem renunciaram a cobrar impostos.

A carga fiscal sobre o capital e os altos rendimentos foi diminuída, no início de forma prudente; posteriormente, sob os governos de Jospin (1997-2002), Raffarin (2002-2005) e Villepin (2005- 2007), ela foi reduzida de maneira mais significativa, com a multiplicação de “abrigos fiscais”; mais tarde Sarkozy estabeleceu em 2007, com o “escudo fiscal” (cujo primeiro passo foi dado por Villepin, na sua Lei das Finanças de 2006), mecanismos que restituem aos mais ricos uma parte do imposto. A análise das origens da dívida francesa ajudará a entender a noção de dívida ilegítima e, portanto, a colocar a questão da sua anulação, não somente de um ponto de vista econômico, mas também como uma questão política com fundamento ético.

Mas a ilegitimidade repousa também sobre a natureza das operações de “empréstimos” que devemos “honrar”, para os quais será preciso pagar juros elevados e assegurar o reembolso. A injunção de que pagar uma dívida repousa, há que repeti-lo, implicitamente, sobre essa ideia de que certas quantias, fruto de uma poupança pacientemente acumulada por um duro trabalho, teriam sido emprestadas. Ora, esse será talvez o caso da poupança das famílias ou dos fundos dos sistemas de aposentadoria por capitalização. Não é o dos bancos nem dos fundos de hedge. Quando estes “emprestam aos Estados”, comprando títulos do Tesouro emitidos pelos Ministérios das Finanças, trata-se na realidade de somas fictícias, cuja emissão repousa sobre uma rede de relações e de transações interbancárias. A transferência da riqueza verdadeira, aquela que nasce do trabalho, se faz no sentido oposto.

A dívida e o serviço de juros são um componente da bomba aspiradora financeira (“la pompe à phynance”), assim lindamente chamada por Frédéric Lordon em homenagem a Alfred Jarry e ao seu pai Ubu. A natureza econômica das somas emprestadas é mais um fator a questionar a legitimidade da dívida pública.

A auditoria da dívida pública e sua anulação

O CADTM defende desde sempre a necessidade da auditoria da dívida como etapa para a sua anulação. A auditoria tem como objetivo identificar os fatores que permitem caracterizar a dívida como ilegítima, bem como aqueles que justificam, ou mesmo exigem, o pagamento de uma fração da dívida a certos credores. Eu não estava ainda convencido da importância desse processo até que militantes gregos demonstraram o seu alcance.

Até hoje, o único exemplo de auditoria é a que foi realizada no Equador em 2007. Ela resultou de uma decisão governamental, pois o presidente do Equador, Rafael Correa (2007), queria conhecer as condições sob as quais a dívida do país nasceu. A auditoria permitiu ao governo decidir a suspensão do pagamento da dívida, constituída por títulos da dívida com vencimento, uns em 2012, outros em 2030. Desta forma, ele forçou os banqueiros, sobretudo norte-americanos, detentores dos títulos, a negociar. O Equador pôde recomprar títulos estimados em 3,2 bilhões de dólares por uma soma de pouco menos de 1 bilhão de dólares.

Um cenário semelhante ao do Equador não é concebível na Europa. A reivindicação da moratória imediata e da auditoria preparatória à anulação, deve obviamente ser dirigida aos partidos políticos no momento das campanhas eleitorais. Muitos militantes e talvez até alguns dirigentes serão sensíveis a ela. Entretanto, apenas “comitês” do tipo daqueles que nasceram na campanha de 2005 contra o projeto do Tratado Constitucional Europeu (ou mais recentemente sobre a questão das aposentadorias), podem ser portadores destas reivindicações.

Existe um único país onde um comitê nacional foi criado, permitindo a formação de comitês locais: trata-se da Grécia, onde se criou o Comitê Grego contra a Dívida. É assim que ele define seus objetivos:11Face à la dette: l’appetit vien en auditant!…, de Yorgos Mitralias, publicado em 12 de abril de 2011. O autor é membro fundador do Comitê Grego contra a Dívida. A declaração fundadora deste comitê foi publicada no nº 11 de O Comuneiro.

Auditoria da dívida e exercício dos direitos democráticos

“O primeiro objetivo de uma auditoria é o de esclarecer o passado (…). Que fim levou o dinheiro de tal ou qual empréstimo, em que condições foi concluído? Quanto foi pago de juros e a que taxa, e quanto do principal da dívida já foi liquidado? Como a dívida inchou sem que isto beneficiasse o povo? Que caminhos seguiram os capitais? Para que finalidade serviram? Que parte foi desviada, como e por quem?

“E também: quem pediu o empréstimo e em nome de quem? Quem emprestou e qual foi seu papel? Como o Estado se comprometeu, por meio de que decisão, tomada a que título? Como é que dívidas privadas se transformaram em dívidas ‘públicas’? Quem contratou projetos inadequados, quem forçou essa via, quem lucrou com isso? Foram cometidos delitos ou crimes com esse dinheiro? Por que não são estabelecidas as responsabilidades civis, criminais e administrativas?

“(…) Uma auditoria da dívida pública não tem nada a ver com a sua caricatura, que a reduz a uma simples verificação de cifras feitas por contabilistas rotineiros. Os partidários das auditorias invocam sempre duas necessidades fundamentais da sociedade: a transparência e o controle democrático do Estado e dos governantes pelos cidadãos. São necessidades que se referem a direitos democráticos elementares, reconhecidos pelo direito internacional, apesar de serem violados permanentemente.

“O direito de vigilância dos cidadãos sobre os atos daqueles que os governam, de informação sobre tudo o que diga respeito à sua gestão, seus objetivos e suas motivações, é intrínseco à própria democracia, uma vez que emana do direito fundamental dos cidadãos de exercer seu controle sobre o poder e participar ativamente nos assuntos da comunidade. (…) Esta necessidade permanente de transparência nos assuntos públicos adquire, na época do neoliberalismo mais selvagem e da corrupção mais desabrida – sem precedentes na história mundial –, uma enorme importância adicional. Ela se transforma numa necessidade social e política absolutamente vital.

“O exercício dos direitos democráticos dos cidadãos, antes considerados ‘elementares’, é visto pelos governantes quase como um declaração de guerra ao seu sistema, feita por aqueles que se situam em baixo na escala social. E naturalmente, ele é tratado em conformidade, isto é, de maneira repressiva (…). A auditoria da dívida pública adquire uma dinâmica socialmente salutar e politicamente quase subversiva. A utilidade de uma auditoria não pode se resumir unicamente à defesa da transparência e da democratização da sociedade. Ela vai muito mais longe, pois abre caminho a processos que podem ser considerados ‘extremamente perigosos’ para o poder estabelecido e potencialmente libertadores para a esmagadora maioria dos cidadãos! Efetivamente, ao exigir a abertura e a auditoria dos livros da dívida pública e, melhor ainda, abrindo e auditando esses livros, o movimento de auditoria cidadã ousa ‘o impensável’: penetrar na zona proibida e sagrada do sistema capitalista, onde, por definição, nenhum intruso é tolerado! (grifo no original).”

Compreendida desta forma, a reivindicação de auditoria da dívida, e sobretudo o início de sua concretização pela criação de comitês como instâncias populares nas quais as provas de ilegitimidade seriam reunidas e debatidas, constituiriam uma ferramenta formidável de “redemocratização”.12Em oposição à desdemocratização nascida do neoliberalismo, ver Wendy Brown, Les Habits neufs de la politique mondiale, trad. de Christine Vivier, Les prairies ordinaires, Paris, 2007, bem como Pierre Dardot et Christian Laval, La nouvelle raison du monde. Essai sur la societé néolibérale, La Découverte, Paris, 2009, páginas 457-468.

No caso de detentores da dívida pública, a questão da defesa da pequena poupança é frequentemente levantada como um problema importante, quando não como obstáculo determinante. Ela não colocaria, porém, nenhum problema. No momento das declarações de imposto direto, os bancos calculam com exatidão os montantes relativos às diferentes formas de poupança das famílias. Eles lhes seriam garantidos, uma vez que não representam mais do que uma parte minúscula dos “créditos” reclamados.

A anulação das dívidas públicas não pode, obviamente, ser uma medida isolada. Aqui vamos enfocar inicialmente dois aspectos, de maneira muito breve. O primeiro é a apropriação social dos bancos e sua reconfiguração, de modo a restaurar suas funções essenciais de criação de formas determinadas e limitadas de crédito e colocá-las ao serviço exclusivo da economia. O segundo é a reconfiguração da tributação, que deve cessar de pesar acentuadamente sobre os assalariados e as camadas populares. Os sindicatos, o SNUI (sindicato dos impostos) e o Sud Trésor têm propostas prontas sobre isso. Também é importante o uso que é feito do imposto, seja ele recebido nacionalmente ou localmente. Atualmente, o controle democrático do uso do imposto tornou-se puramente formal.

De maneira geral, o principal desafio é o definida neste documento grego, a saber, a criação de uma dinâmica política na qual aqueles e aquelas que demonstraram, repetidamente, uma forte capacidade de mobilização, encarariam a campanha para a anulação como uma questão essencial que condiciona o futuro.

Na França, mas também em toda a Europa, os assalariados são confrontados com as questões cruciais do emprego e da precariedade. A solução desses problemas passa pelo controle social do investimento. Não pode continuar a depender das estratégias de maximização dos lucros das grandes empresas. A satisfação de necessidades sociais urgentes está inserida no contexto da crise ecológica em todas as suas dimensões. É indispensável que ela se baseie em profundas transformações nos modos técnicos de produção, tanto na indústria como na agricultura. O financiamento seria assegurado pelo imposto e pelo crédito bancário controlado. A “sobriedade energética” e a desmercantilização seriam os complementos necessários.

A liberalização do comércio, cujo custo ecológico é imenso, é uma base do capitalismo financeirizado. O controle social do investimento permitiria a realocação de numerosas atividades e um encurtamento das cadeias de fornecimento, de produção e de comercialização. A anulação das dívidas nos países onde os povos se mobilizassem para impô-la criaria, assim, as condições para uma verdadeira “saída da crise”.

Aproveitar a oportunidade de um combate num conjunto de países

A campanha contra a dívida não pode ser feita “por procuração”. O povo grego não pode conduzi-la para outros povos europeus.

As agências de classificação ainda não se encarniçaram contra a França; esta ainda não sofre de diferenças de taxas de juro significativas. A pressão da “dívida a honrar” não deixa, entretanto, de pesar intensamente sobre a situação econômica e social e sobre a vida política francesa. O governo, bem como os dirigentes da UMP, do Partido Socialista e dos partidos ditos centristas, repetem dia após dia que a decência exige dos cidadãos que estes “aceitem os sacrifícios” a fim de que a França pague suas dívidas. Não divergem senão sobre a melhor maneira de o fazer, sobre a melhor combinação de políticas.

A dívida bloqueia o futuro – o das classes populares, é claro, mas também o de toda a sociedade. Fazer campanha pela sua anulação não é algo que esteja além da capacidade do movimento social francês. A mobilização que centenas de milhares de pessoas fizeram no último outono contra a reforma da previdência social coloca as associações, os sindicatos e os partidos franceses numa situação de responsabilidade particular. A recusa dos trabalhadores franceses em pagar a dívida seria também o apoio internacionalista mais eficaz que poderiam levar aos trabalhadores da Grécia, de Portugal e da Irlanda. Uma campanha popular conduzida pelos comitês por uma moratória imediata e pela auditoria da dívida prepararia o movimento social para os novos episódios da crise financeira.

Os publicistas e os responsáveis políticos que hoje preconizam a reestruturação da dívida da Grécia e da Irlanda reconhecem que os riscos enfatizados pelos adversários desta medida são reais. A vulnerabilidade do sistema financeiro europeu, e também a do mundial, torna possível uma nova crise. A falência de setores do sistema bancário não está excluída. Nos países onde o pagamento da dívida tenha sido posto em causa pelo movimento social, os trabalhadores e os jovens voltados de diversas maneiras para as questões políticas estarão preparados para essa situação, pelo menos um pouco.

Um dos grandes argumentos dos partidários da saída do euro é o de que aqueles que apostam em um movimento social europeu perseguem uma quimera. Mas o desafio é aproveitar o momento para o fazer nascer. Vários países estão em um duro confronto com o problema da dívida. Outros o estarão mais cedo ou mais tarde. Todos estão submetidos às políticas econômicas e monetárias pró-cíclicas. Mesmo a Confederação Europeia de Sindicatos foi obrigada a se destacar da Comissão Europeia e do Banco Central Europeu.

A oportunidade está criada para construir entre os cidadãos dos países da Europa uma verdadeira união. A solução progressista não é a saída do euro. A solução é ajudar na convergência das lutas sociais e políticas, conduzidas hoje de forma dispersa, para um objetivo de controle social e democrático comum dos seus meios de produção e de troca, e portanto do próprio euro. “Tomar os bancos!” Sim, em todos os países onde o movimento social tenha força para isso; sim, incluindo o BCE entre eles.

A campanha pela anulação das dívidas públicas europeias deve ser acompanhada, obviamente, da anulação da dívida dos países do sul detida pelos bancos e pelos fundos de investimento europeus. Para os povos dos países europeus, esta campanha é uma passagem obrigatória e também um trampolim. Passagem obrigatória porque nenhuma política minimamente progressista no plano social, bem como no plano ecológico, pode ser conduzida, nem qualquer grande investimento pode ser feito, enquanto a hemorragia do serviço dos juros da dívida continuar. Trampolim, porque toda vitória arrancada nesse terreno constituiria um verdadeiro terremoto para o capitalismo mundial. A anulação das dívidas modificaria profundamente a relação de forças entre o trabalho e o capital. Ela libertaria os espíritos para o “horizonte do possível”.

Quando uma ocasião como esta se apresenta, torna-se fundamental não desperdiçá-la.

* * *

(*) Este artigo foi escrito pelo economista francês François Chesnais pouco depois do lançamento de seu livro Les dettes illégitimes. Quand les banques font main basse sur les politiques publiques (“As dívidas ilegítimas. Quando os bancos assumem o controle das políticas públicas”. Edições Raisons d’agir, 2011). Ele foi publicado pela revista eletrônica suíça A l’encontre em 15 de junho de 2011 e traduzido e publicado em português pela revista eletrônica O Comuneiro, em sua edição número 13, de setembro de 2011. A tradução é de Ronaldo Fonseca, com “abrasileiramentos” de Interludium.

O Comuneiro traz uma pequena biografia de Chesnais: “François Chesnais é um destacado economista marxista, professor associado da Universidade de Paris 13. Faz parte do Conselho Científico do ATTAC-França, é diretor da revista Carré Rouge e colaborador habitual de “O Comuneiro”. No passado fez parte do coletivo “Socialisme ou barbarie” de Cornelius Castoriadis e militou em pequenas organizações trotskistas. Desde a sua fundação, em 2009, aderiu ao Nouveau Parti Anticapitaliste. Entre as suas obras anteriores destacam-se La Mondialisation du capital (Syros, 1994), Actualiser l’économie de Marx (Actuel Marx Confrontation, Presses Universitaires de France, Paris, 1995), La mondialisation financière: genèse, coûts et enjeux (diretor de publicação e dois capítulos, Syros, Collection Alternatives économiques, Paris, 1996), La finance mondialisée: racines sociales et politiques, configuration, conséquences (sob direção de François Chesnais, La Découverte, 2004).

Nota da edição em 2019: A revista Carré Rouge deixou de existir em 2013. A seção francesa do Arquivo Marxista na Internet abriga a coleção até o nº 33 (de junho de 2005). Os demais números e artigos soltos foram reproduzidos em vários meios, especialmente nas revistas A l’encontre e Contretemps.


NOTAS

1. A Union pour un mouvement populaire (União por um Movimento Popular) foi um partido francês de direita criado em abril de 2002 pelo então presidente Jacques Chirac com vistas às eleições desse ano. A UMP reelegeu Chirac e em 2007 elegeu Nicolas Sarkozy para sucedê-lo. Na oposição desde 2012 e sacudido por crises internas, o partido foi reestruturado em 2015, por proposta de Sarkozy, com o nome de Les Républicains (Os Republicanos).

2. Robert Guttmann, How Credit-Money Shapes the Economy, M. E. Sharpe, Armonk, New York, 1994, página 33.

3. FMI, Rapport sur la stabilité financière dans le monde, Note intérimaire, Janvier 2011.

4. FMI, Global Financial Stability Report, abril de 2011, capítulo 1, quadro 1.1..

5. Observações de José Vinals citadas por Martine Orange, Mediapart, 15 de abril de 2011.

6. Frédéric Lordon, Ne pas détruire les banques: les saisir!

7. Ver Dette Odieuse no sítio do CADTM.

8. Em Global Economic Growth Report, Toronto, julho de 2003.

9. Ver Prêts toxiques: les élus s’allient pour attaquer les banques, Le Monde, 8 de março de 2011.

10. Ver Eric Toussaint, Face à la dette du Nord, quelques pistes alternatives, 19 de janeiro de 2011.

11. Yorgos Mitralias, Face à la dette: l’appetit vien en auditant!…, 12 de abril de 2011. O autor é membro fundador do Comitê Grego contra a Dívida. A declaração fundadora deste comitê foi publicada no nº 11 de O Comuneiro.

12. Em oposição à desdemocratização nascida do neoliberalismo, ver Wendy Brown, Les Habits neufs de la politique mondiale, trad. de Christine Vivier, Les prairies ordinaires, Paris, 2007, bem como Pierre Dardot et Christian Laval, La nouvelle raison du monde. Essai sur la societé néolibérale, La Découverte, Paris, 2009, páginas 457-468.

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