Emmanuel Z. C. Nakamura*
Quando a crise econômica se evidenciou com toda a sua força no sistema financeiro, em meados de setembro de 2008, circulou num jornal de grande divulgação de São Paulo uma coluna com uma constatação pertinente, a de que estamos diante da primeira crise global do capitalismo sem adversário. Nesse contexto novo, é pertinente perguntar pelo desdobramento político da crise. Apesar da previsão de alguns economistas de que, no plano econômico, ela se estenderá em razão das características do dólar como dinheiro mundial e dinheiro de crédito, podemos afirmar que, no plano político, hoje o que a população mais anseia é pela resolução breve da crise, pelo retorno do crescimento econômico e do nível de emprego.
Faço essas considerações soltas apenas para trazer para a reflexão esse anseio da população por uma certa “normalidade” não problematizada, pois, analogamente, entrando aqui diretamente no nosso assunto, toda vez que funcionários, professores e estudantes entram em greve, o que a maioria da população dentro da universidade anseia é pelo retorno à normalidade das aulas e pesquisas. Em geral, a população universitária já se acostumou com as greves, encarando-as como uma “anomalia” restrita aos períodos de negociação salarial, à qual, pelo menos na maioria das vezes, os estudantes se juntam incorporando “reivindicações abstratas”. Em geral também, essas reivindicações são feitas por uma minoria dos cursos da área de humanidades. A pergunta sobre a qual gostaria de refletir é por que a agitação política se restringe, salvo algumas exceções, à área de humanas? Meu objetivo aqui é apenas sugerir por que essa pergunta é pertinente e esboçar a seguinte resposta: essa agitação política aparece como uma anomalia localizada na área de humanidades, mas é, essencialmente, o resultado histórico da falta de uma reflexão no país sobre a formação de um sentido integrador das diferentes dimensões da experiência humana.
Minha hipótese é então que uma resposta adequada só pode ser dada analisando não somente a história da universidade no país, mas a formação deste. O país nasceu sendo “empresa Brasil”, onde não houve formação de um povo, mas sim de um agregado atomístico de indivíduos constituídos assim para produzir mercadorias. Dada as limitações de minha formação cultural para abordar o debate de um ponto de vista historiográfico sobre as questões de formação nacional, o debate filosófico sobre as noções modernas de universidade e mesmo minha falta de informação sobre a Univesp, farei aqui apenas algumas considerações soltas, sem muito rigor analítico e apenas com o intuito de contribuir para o debate.
Em geral, nos países onde o modo de produção capitalista teve barreiras sociais para se desenvolver, porque a burguesia precisou derrubar o antigo regime, surgiram projetos de modernidade. Isso porque para que uma revolução seja feita uma classe tem de se confundir com e ser reconhecida pela sociedade como sua representante universal. Em termos de projeto de modernidade, a Alemanha foi onde melhor se formalizou. Faço aqui apenas algumas considerações sobre Hegel. É conhecida a tese de que, no contexto de desenvolvimento capitalista retardatário, a dialética foi a formalização de uma experiência intelectual. Isso tanto no momento propriamente dialético-negativo, como formalização da ironia do intelectual afligido pela miséria nacional, como também no momento positivo-racional, ou seja, a dialética na sua feição afirmativa de reconciliação com o presente, formalizando o empenho do intelectual na redenção do país. Essa é, talvez, a “base material” da inseparabilidade de dialética e sistema. Evidentemente, resumo aqui grosseiramente essa tese, mas o que é importante reter, para nós, é a conversão da negatividade dialética em positividade especulativa, pois é o momento em que Hegel trava um intenso debate com as “ciências positivas” da época, havendo uma relação de pressuposição recíproca entre filosofia especulativa e ciências positivas.
É importante para nós porque o debate sobre a “questão universitária” na época – especialmente entre Fichte, Schelling, Humboldt, Schleiermacher e Hegel – estava alicerçado em teorias da história e orientações filosóficas determinadas. Abstraindo as diferenças entre as visões, o memorando humboldtiano, por exemplo, defendia uma ininterrupta cooperação entre as ciências. Simplificando, não estaria aqui uma das possíveis condições de pesquisa da filosofia especulativa e de melhoramento das ciências positivas? Lembro o memorando porque parece que é a partir dele que a maioria dos historiadores data a origem da redefinição moderna de universidade.
Em termos gerais, o memorando sugere o roteiro que norteia o processo de criação da Universidade de Berlim, através das propostas de uma universidade orientada para a pesquisa, de uma organização interna de maneira que ciência objetiva e formação subjetiva estejam articuladas, de uma atividade cooperativa ininterrupta entre as ciências e de pesquisa incessante. Do ponto de vista externo, o Estado se tornaria o promotor da universidade sem nesta intervir, cabendo a ele, sim, organizar as escolas a fim de que estas trabalhem de acordo com a universidade, preparando o aluno, “ao lhe dar as possibilidades físicas, morais e intelectuais, para consagrar-se à sua liberdade e a uma atividade autônoma”.
No Brasil, um dos sintomas contemporâneos de nunca ter existido projeto moderno, apesar de já nascer moderno, é o fato de o Poder Legislativo ser uma facção criminosa financiada pela população, sem entendermos como isso é possível. Talvez porque nunca houve uma reflexão filosófica que abrangesse o direito como momento do sistema. Mas sempre faltaram condições para tal pesquisa, razão pela qual os intelectuais que colocaram a “questão nacional” na ordem do dia são, com justiça, chamados de “demiurgos”.
Na ausência de projeto moderno, a primeira universidade foi criada apenas formalmente, da pior maneira possível e só em 1920, através do decreto nº 14.343, que criou a Universidade do Rio de Janeiro. Formalmente porque era apenas um mero agregado de cursos “profissionalizantes”. Foi em São Paulo onde se criou, de fato, a primeira universidade. O projeto de fundação da USP foi realmente moderno, feito pela burguesia paulista munida de projeto nacional de poder. A USP, em especial a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, deveria se constituir como um celeiro de formação de dirigentes políticos. Ela deveria renovar profundamente a formação do político e para isso tinha que ser crítica e radical.
Aqui importa escrever que houve uma inserção histórica conflituosa desse projeto, pois a exigência crítica inerente a um projeto de reforma da estrutura de poder se transformou, devido às circunstâncias de autoritarismo, luta de classes e mobilização estudantil, em questionamento radical da ordem burguesa. Em termos de organização interna, houve problemas de integração universitária que até hoje são visíveis, como a organização espacial da cidade universitária e o fato de os cursos profissionalizantes preexistentes nunca terem mudado essa característica através de uma integração completa ao projeto. Soma-se a isso ainda a fragmentação crescente, em contexto geral, das áreas do saber. Mas esses problemas de implementação do projeto não impediram que trabalhos acadêmicos importantes começassem a surgir. A contratação e a formação no estrangeiro revelaram-se adequadas para evitar provincianismo e não cair na pior forma de desprezo de que a filosofia é, na maioria das vezes, a principal vítima. Essa importação do pensamento moderno não reformulou o pensamento nacional, tal como aconteceu, por exemplo, na Escola de Kyoto, no Japão, mas aos poucos deu sustentação a teses importantes de interpretação do país.
O projeto uspiano de ilustração paulista norteou a criação de outras universidades modernas no Estado de São Paulo, como a Unicamp e a Unesp. De fato, os projetos eram elitistas e não demorou a surgir como reivindicação do movimento estudantil identificado com a classe trabalhadora a reivindicação de “expansão da universidade pública”. Convém lembrar que esse tipo de reivindicação só é possível depois da inclusão política da classe trabalhadora europeia na ordem burguesa. Sim, porque antes da inclusão a existência de estabelecimentos de ensino superior gratuitos significava financiar custos de educação das classes superiores através de impostos pagos por toda a população, e a “educação popular através do Estado” era, em bom alemão, “ganz verwerflich” (totalmente rejeitável). Pois era, inversamente, o Estado que precisava ser educado pelo povo.
Mas não é isso o importante para nós, o ponto é que através da reivindicação de universidade pública para todos naturalizamos, talvez, a miséria social do país. É como se nos apoiássemos exclusivamente na bandeira “abstrata” da igualdade. Abstrata porque estorva o concreto, pois afirma apenas que o ensino superior deve ser um direito igual do cidadão, mas, como toda lei igual pressupõe situações diferentes, a expansão da oferta deveria abranger a totalidade da população levando em consideração as desigualdades sociais de acesso. Talvez não seja difícil entender que foi justamente aí que os capitalistas encontraram espaço novo para a valorização do capital, aumentando a oferta de vagas nos cursos através da transformação da universidade em empresas ofertantes de cursos de qualificação profissional, tornando o ensino superior, por meio da concorrência entre os trabalhadores, condição para encontrar um emprego. Essa naturalização da miséria social justifica também a transformação das universidades modernas preexistentes num agregado de cursos profissionalizantes.
A burguesia se apoia ainda numa concepção linear evolucionista da história, rejeitando as universidades do passado e projetando a universidade do futuro. Os decretos estaduais de 2007 (51.460, 51.461, 51.535, 51.471, 51.553, 51.636 e 51.660) e 2008 (53.536) do governador José Serra visam rebaixar o projeto de universidade moderna. No caso do decreto de nº 53.536, que cria a Universidade Virtual do Estado de São Paulo (Univesp), a intenção é transformar a universidade em espaço de qualificação barata de força de trabalho. Talvez isso até não passe na cabeça do burguês prático: num país de gigantesca superpopulação relativa desqualificada para vender sua força de trabalho, o plano, se bem efetivado, elevará as fileiras do exército industrial de reserva, significando aumento da concorrência entre os trabalhadores e rebaixamento dos salários a um nível ainda mais miserável. Portanto, não seriam apenas as condições de trabalho dos docentes e a qualidade dos cursos que estariam em jogo.
O projeto é justificado naturalizando a miséria social, afirmando que até hoje “uma parcela bem pequena da comunidade estadual consegue desfrutar do ensino de qualidade”, que há “inviabilidade geográfica para um deslocamento regular”, que há “incompatibilidade temporal decorrente de atividades profissionais”, etc. Ora, em sua origem os debates sobre a “questão universitária” estavam alicerçados em teorias da história e orientações filosóficas porque o projeto de universidade moderna era alicerçado num projeto de reforma social que desnaturalizava as condições preexistentes. Por isso, talvez possamos afirmar aqui que o acesso à universidade se referia muito mais a uma questão de liberdade, isto é, o cidadão deveria ser preparado através das escolas e ter condições objetivas (liberdade objetiva) para decidir se quer cursar ou não uma universidade (liberdade subjetiva).
Portanto, a situação hoje parece ser a seguinte: de um lado, a burguesia quer rebaixar o projeto de universidade moderna, transformando-a novamente, no país, numa mera forma, mais ou menos como eles criaram a primeira universidade, que era um agregado de cursos profissionalizantes, mas com a diferença, significativa, de que hoje os cursos são oferecidos à totalidade da população como meio barato de qualificação de força de trabalho; de outro lado, funcionários, professores e estudantes, principalmente das áreas de humanidades, resistem a esse rebaixamento, defendendo o projeto de universidade moderna, elaborado pela própria burguesia de outrora. Nesse sentido, não há nada de “abstrato” em reivindicar condições de trabalho e pesquisa.
Talvez uma resolução para esse impasse só possa ser pensada analisando um contexto mais amplo que explique por que lutamos sozinhos. De maneira geral, como o país nunca precisou emancipar-se politicamente, pois a sociedade desde sempre é impolítica, a politização só pode surgir intrinsecamente da população. No âmbito universitário, na área de humanidades, nossa politização em parte foi importada junto com o projeto moderno de universidade, e em parte foi o desdobramento de nossa origem radical. Como a implementação do projeto de universidade moderna estava intrinsecamente relacionado com a criação da área de humanidades no país, talvez esteja em nossas mãos a defesa da universidade moderna, por isso acho que não devemos temer lutar sozinhos.
A violenta atuação da polícia militar no último dia 9 de junho não foi mero erro administrativo da reitora da USP, pois ela age respaldada e pressionada pela burguesia, que intenciona derrotar politicamente a resistência, criando um espaço liso impolítico para implementar as transformações. Talvez seja tachado de “homem ridículo”, mas minha esperança é que aquela violenta atuação da polícia militar – cuja função é atuar contra os Direitos Humanos – possa transmitir à população, pela via negativa daquela brutalidade, as promessas modernas do passado que a burguesia daqui nem se preocupou em prometer, mas que podem ser reconhecidas e retomadas no presente como determinações internas do homem individual efetivo.
Em nossos dias nunca pode ser suficientemente lembrado que aquilo pelo qual o homem se diferencia do animal é o pensar, e que é nossa tarefa levar à consciência a natureza lógica e histórica que anima nosso espírito, que nele impulsiona e atua. A universidade do futuro não pode ser o resultado de uma mera adaptação de nossas ações a uma temporalidade linear, dada como progresso natural, mas deve ser o que os indivíduos em comunidade projetam a partir de suas experiências. Cabe à área de humanidades da universidade a crítica da cultura e a recuperação da possibilidade de presentificar a significação radical da ideia originária de universidade moderna que surgiu em São Paulo. Essa aproximação com o passado soterrado não é mera visão nostálgica e melancólica, pois a crítica deve iluminar reciprocamente o passado esquecido e o presente, rememorando o passado como uma experiência do presente, pondo este reflexivamente como limiar possível de transformação e momento oportuno de formação de outra noção de universidade.
Campinas, 14 de junho de 2009.
* Emmanuel Z. C. Nakamura é doutorando em Filosofia pelo IFCH da Unicamp e graduado em Economia pela PUC-SP.