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Vito Letizia propõe uma volta a Marx

“A esquerda deve lutar para que o povo brasileiro tenha acesso a tudo o que lhe foi historicamente negado. Mas, absolutamente tudo lhe foi negado: a terra, o próprio país”, afirma com surpreendente energia e entusiasmo o economista Vito Letizia. Aos 73 anos, o velho guerreiro trava uma batalha duríssima com o câncer, cujos sintomas simplesmente desaparecem quando ele se deixa levar pelo entusiasmo da discussão. Leitor profundo e rigoroso de Karl Marx, Letizia é um crítico implacável dos métodos e concepções sobre classes sociais, partidos revolucionários e direções adotados pela assim chamada esquerda marxista – leninista – trotskista, solo em que germinou, floresceu e ganhou maturidade a sua própria história como militante revolucionário. A demolição do conceito de “vanguarda” é peça central de sua crítica.

Opondo-se frontalmente à ideia segundo a qual a ação revolucionária é “determinada” pela consciência de classe, Letizia observa: “Não seria melhor inverter o sentido da frase? Pois está mais de acordo com o pensamento de Marx dizer que é a ação histórica que determina (melhor seria dizer ‘condiciona’) a consciência de classe, e não o contrário. Porque é a ação dos capitalistas, enquanto compradores de força de trabalho, que condiciona sua consciência burguesa, ainda que esta nem sempre se apresente como consciência de classe burguesa. Igualmente, é a ação dos trabalhadores, em sua resistência à pressão do capital sedento de lucro, que condiciona fundamentalmente sua consciência de classe proletária. Sendo que esta última consciência é, necessariamente, de classe porque só coletivamente os operários obtêm capacidade de resistir à pressão do capital.”

O trecho, extraído de uma crítica recente ao clássico História e consciência de classe, escrito em 1923 pelo revolucionário húngaro Georg Lukács (1885-1971), é premissa para uma reavaliação do papel jogado pelo Partido Bolchevique na Revolução Russa de 1917. Segundo Letizia, a vanguarda bolchevique – com Vladimir Ilitch Lênin e Leon Trotsky à frente – tentou imprimir uma natureza proletária urbana (isto é, socialmente ancorada em escassos 2,5% da população) a uma revolução camponesa (classe absolutamente majoritária, à época). “Em 1918, a consciência de classe dos bolcheviques, da qual, segundo Lukács, dependia ‘o destino da humanidade’, teve como principal utilidade metê-los numa guerra suicida contra a revolução camponesa russa”, afirma Letizia. A catástrofe gerada pela “guerra suicida” pavimentou o caminho para o neoczarismo instalado por Josef Stalin.

“O materialismo histórico pensado por Marx permite ver a revolução como um processo necessário, e não como realização de um destino. Era realmente muito difícil ver, durante o turbilhão revolucionário de 1917-1920, a realização do que Marx pensara sobre a revolução, que avança e recua parcialmente, acompanhando o aprendizado político das massas – muito mais que qualquer amadurecimento ideológico –, tendo por isso uma forma ‘permanente’, isto é, de vagas sucessivas, até que os últimos explorados e oprimidos ganhem voz e ascendam ao primeiro plano da cena política. Naquela época convulsiva devia mesmo ser difícil ver que os camponeses em luta por arrancar-se de sua servidão secular estavam certamente entre os últimos explorados da sociedade russa. Sendo que o Partido Bolchevique, enquanto representação indireta do proletariado industrial russo, estava mal posicionado para perceber isso, o que significa que sua ‘consciência de classe proletária’ especificamente russa não os ajudou a salvar as duas revoluções russas concomitantes: a revolução proletária e a revolução camponesa.”

O ponto chave, portanto, está na capacidade de assegurar que “os últimos explorados e oprimidos ganhem voz e ascendam ao primeiro plano da cena política”, condição para que o conjunto da sociedade oprimida reconheça no capital o seu inimigo e opressor. O alerta de Letizia ganha uma importância crucial no atual momento da história brasileira, quando o lulismo coopta, precisamente, “os últimos explorados e oprimidos”, para uma perspectiva de conciliação de classes e perpetuação da dominação burguesa.

“O que mais confunde as fronteiras da classe burguesa é o fato de que ela sempre se move cercada por uma nuvem de servidores, parasitas, beleguins, déclassés e burocratas diversos, membros do aparelho de Estado ou não, além de inúmeros trabalhadores normais, mas devotos da relação salarial, todos indispensáveis ao bom funcionamento da dominação burguesa”, afirma Letizia, em outro texto, agora destinado a polemizar com o filósofo francês Denis Collin. “Mas se a guerra social, sempre latente, aflorar bruscamente, a nuvem se dispersará e então a própria burguesia descobrirá que é uma classe social distinta (e não mais apenas “homens comuns”, ricos porque “trabalham”) e todos saberão quem é a classe burguesa”, diz Letizia.

A “volta a Marx” proposta por Vito Letizia revela, finalmente, o fato de que “a guerra social latente” no Brasil só poderá aflorar e atingir sua plenitude sobre os escombros do lulismo. Eis tudo.


Publicado em:Vito Letizia

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