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Assassinato de Merlino condena o torturador Ustra

Luiz Eduardo Merlino (1948-1971) foi jornalista (trabalhou nos jornais Folha da Tarde e Jornal da Tarde), líder estudantil e militante do POC (Partido Operário Comunista). Foi brutalmente torturado e assassinado por agentes da ditadura militar brasileira. Há versões diferentes para seu desaparecimento, algumas contadas por seus amigos e companheiros, outras por relatos médicos e meios oficiais.

Em 1971, quando tinha 23 anos, ele e sua companheira, Angela Mendes de Almeida, fizeram uma viagem a Paris, onde participaram de atividades e reuniões com estudantes, professores, intelectuais e militantes. Logo depois de retornar ao Brasil, em 15 de julho, Merlino, que passava pela casa de sua mãe, em Santos (SP), foi abordado e detido por agentes da Operação Bandeirante (Oban), promovida pelo DOI-CODI do II Exército.

Após ser levado para a sede do DOI-CODI da capital, Merlino sofreu intensas sessões de tortura durante 24 horas ininterruptas, de acordo com o Arquivo Nacional do Ministério da Justiça. Veio a falecer no dia 19 de julho. Cinco dias após o seu “desaparecimento”, sua foi família foi informada de seu falecimento.

Segundo a primeira versão, exposta pela perícia médica, Merlino havia se suicidado. Ele teria se jogado embaixo de um carro na BR-116, enquanto era levado ao Rio Grande do Sul para reconhecer outros militantes. Esta primeira narrativa foi registrada pelos médicos peritos Isaac Abramovitc e Abeylard Orsin. Entretanto, tudo mudou quando um dos familiares de Merlino reconheceu seu corpo no Instituto Médico Legal (IML), cheio de lesões e cortes. O corpo não possuía nome no setor de reconhecimento do IML ou alguma outra informação. Naquela época, no entanto, a imprensa foi proibida de noticiar a morte do jornalista.

Desdobramentos do caso Merlino

No ano de 1979, circulavam pelo Brasil diversos movimentos pela abertura em direção ao estado democrático. Neste mesmo ano, Iracema Merlino, mãe do falecido jornalista, moveu uma ação declaratória contra a versão exposta em 1971 pelos médicos e militares. Contudo, ela viria a falecer em 1995 sem conhecer a verdade sobre o caso de Merlino.

Em 2011, o governo Dilma Rousseff instalou a Comissão Nacional da Verdade (CNV), que tinha por intuito investigar as violações de direitos humanos ocorridas entre 18 de setembro de 1946 e 5 de outubro de 1988. A ex- companheira de Luiz Eduardo, Angela Mendes, e a irmã, Regina Merlino Dias de Almeida entraram com uma ação no Tribunal de Justiça de São Paulo, por danos morais, exigindo o reconhecimento da responsabilidade do Estado e do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra pela morte de Merlino. Em 2012, a juíza Cláudia Menge acatou a ação. Na sentença, afirmou ser notório que Ustra dirigia as sessões de tortura e intensificava a duração das lesões, além de escolher os instrumentos utilizados. Ustra, no entanto faleceu em 15 de outubro de 2015, em decorrência de um câncer.

Contudo, houve um novo julgamento após a morte de Ustra. Os desembargadores do TRF-3 (Tribunal Regional Federal da 3ª Região), em São Paulo, apontaram o coronel como “suposto” dirigente das torturas cometidas naquela época, negando o histórico passado de repressão das décadas de 1960 e 1970 e ainda mais contrariando a decisão do STF de 2014, na qual Ustra foi abertamente declarado torturador.

Cemap-Interludium realizou uma entrevista com Tatiana Merlino, jornalista e sobrinha de Merlino, para conversar sobre as dificuldades enfrentadas por sua família e sobre a luta pelo reconhecimento da morte de seu tio.

Cemap-Interludium – Quando a família recebeu a versão fornecida pela ditadura sobre o seu desaparecimento, quais foram as primeiras movimentações para tentar desvendar o real acontecimento?

Tatiana Merlino – A notícia de um suposto suicídio veio por meio de um telefonema feito pelo cunhado de Merlino, o delegado de polícia Adalberto Dias de Almeida, marido de Regina – irmã de Merlino (e meu pai). Em telefonema feito por ele, essa foi a notícia dada. A minha avó, mãe de Merlino, e minha mãe, Regina, não acreditaram na versão falsa. A família morava em Santos e Adalberto foi a São Paulo para procurar o corpo. Ao chegar no IML, disseram a um tio da família, que era médico e estava junto, que o corpo de Merlino não estava ali. Não acreditando na informação, Adalberto fingiu estar procurando o corpo de um “bandido” e conseguiu entrar no local. Lá, encontrou o corpo do cunhado com marcas de tortura e sem identificação. Se o corpo estava com marcas de tortura, como é que alguém tão machucado iria conseguir se jogar embaixo de um carro??? O corpo também foi entregue em um caixão lacrado. É importante destacar também que se Adalberto não tivesse ido ao IML, Merlino seria mais um desaparecido.

Então, desde o início estava claro que a versão de suicídio era falsa. Nos anos que se seguiram, a família e os amigos foram indo atrás de informações junto a muitos presos políticos, entre eles Guido Rocha, Eleonora Menicucci, Laurindo Junqueira Filho, Otacílio Cechini, denunciaram as torturas às quais ele foi submetido.

CI – Um mês após a morte de Merlino, o jornal O Estado de S. Paulo publicou uma nota convidando para a realização de uma missa em sua homenagem, na Catedral da Sé, em São Paulo. Ao seu ver, o Estadão desempenhou, na época, um papel importante sobre o processo de elucidação dos crimes cometidos por agentes da ditadura?

TM – Não, durante a ditadura houve uma relação estreita entre a imprensa e a ditadura, algo que é explicado de forma excelente no livro Cães de guarda, da Beatriz Kushnir. No Estadão não foi diferente, onde havia, inclusive, censores. Na nota que saiu no Estadão não foi denunciado que Merlino havia sido assassinado.

CI – Como você avalia a ação da justiça brasileira em relação ao caso Merlino após os a democratização do país e os trabalhos da Comissão Nacional da Verdade?

TM – A ação por danos morais (na área cível) movida por minha família (Angela e Regina) contra Ustra foi apresentada ao Tribunal de Justiça de São Paulo, não ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), que é a terceira instância do Poder Judiciário. A ação foi apresentada em 2010, e em 2010 houve essa sentença muito boa da juíza Claudia Menge, reconhecendo a responsabilidade de Ustra nas torturas e no assassinato de Merlino. Porém, após a morte de Ustra, em 2015, foi em 2018 (e não em 2015), que o Tribunal de Justiça julgou o recurso impetrado por Ustra. Isso ocorreu entre o primeiro e o segundo turno fas eleições presidenciais, quando havia fortes indícios de que Bolsonaro seria eleito. Foi um julgamento muito duro, em que os desembargadores falaram em “suposta” ditadura e “suposto” torturador.

Então entramos com recurso no STJ e não vamos desistir de seguir lutando por memória, verdade e justiça. O impressionante é que essa era uma ação na área cível, ou seja, não havia previsão de cadeia para o condenado (e nem seria o caso, pois Ustra morreu). O que queremos com essa ação é o reconhecimento do Estado da responsabilidade de Ustra no assassinato do meu tio. Lutamos também por justiça e responsabilização penal, mas como indivíduos não podemos mover ações penais. Mas participamos e acompanhamos os processos movidos pelo Ministério Público Federal contra agentes da ditadura. Foram várias ações propostas, as quais não tiveram resultado positivo na justiça, que alegava que os crimes estariam cobertos pela Lei de Anistia.

A interpretação equivocada da Lei de Anistia é sim um empecilho para que se julgue torturadores da ditadura. Muitos juristas defendem que ela não se estende àqueles que cometeram crimes em nome do Estado, crimes de sequestro, tortura, desaparecimento, estupro. E além disso, em 2010 o Brasil foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Araguaia e exortado a investigar os desaparecimentos ocorridos no contexto da Guerrilha do Araguaia e investigar e punir os torturadores. Nada disso foi feito até hoje.

O Brasil de Bolsonaro é resultado disso, de um país que não puniu os agentes que torturaram e mataram na ditadura. Se tivéssemos educado nosso povo pelo exemplo da responsabilização, não seria possível eleger um presidente que defende Ustra.

CI – Mulheres que buscam por justiça, direitos e reconhecimento até hoje são caracterizadas e apontadas como fracas, inferiores e incapazes. Para você, como é ser mulher em busca de justiça? Quais são os obstáculos enfrentados até hoje, no campo profissional e social?

TM – Acho que há uma certa estigmatização da mulher que luta, como histérica, exagerada. São características da misoginia, mas fui tratada assim muitas vezes. Como jornalista de direitos humanos também. Meu trabalho foi desacreditado muitas vezes, como se o que eu estivesse propondo ou tivesse apurado não tivesse credibilidade.

Redação e entrevista por Thiago S Annunziato.

Publicado em:Vítimas da Ditadura

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