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Fim da linha

Danilo Chaves Nakamura

Para entendermos a atual crise em que o Brasil está inserido, precisamos de um esforço intelectual muito mais amplo do que o varejo das análises da política parlamentar ou da conjuntura social e econômica. Sem esse esforço, ficamos apenas no nível de boas opiniões sobre as negociatas parlamentares, que desde o início da democracia brasileira têm o PMDB como o fiel da balança para garantir a chamada governabilidade. Ou então, de análises econômicas que mudam a cada semana de acordo com o sobe e desce das bolsas de valores ou de relatórios das agências de classificação de risco.

Em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, Tarso Genro afirmou que “o ciclo que levou o PT ao governo está esgotado”.1Entrevista de Tarso Genro à Folha de São Paulo, 6 de março de 2016. Essa afirmação poderia ser um bom ponto de partida para entendermos como a crise econômica mundial atingiu o Brasil e desestabilizou os acordos políticos que garantiram a “formula mágica da paz” nos três primeiros governos petistas. Nesse sentido, a queda da demanda de commodities das empresas chinesas demonstraria toda a fragilidade do take off brasileiro – anos antes muito comemorado pelos liberais da revista The Economist –, que apesar de ter garantido números expressivos de geração de emprego e de inclusão de cidadãos por meio do consumo, foi incapaz de criar um mercado interno que sofresse menos com as oscilações do mercado internacional.

A partir daqui também poderíamos perceber os limites do crony capitalism brasileiro, um “capitalismo de cupincha” que transformou os políticos em lobistas para que grandes empreiteiras pudessem realizar seus negócios em territórios nacional e estrangeiros. Quando os negócios começaram a travar, ou ainda, quando os interesses dos capitalistas passaram a divergir, os grandes articuladores e lobistas se transformaram nos maiores corruptos da história, afinal, as cifras para criar nossas próprias transnacionais eram astronômicas. E, por fim, a sociedade em geral – que parecia pacificada com o quase pleno emprego, com programas sociais de inclusão e aumento da renda – passa a ter indivíduos, classes e instituições se acotovelando (ou literalmente saindo na mão), pois, no fim das contas, ninguém que ascendeu socialmente ou que viu seus negócios privados prosperarem, ou ainda, passou a viajar anualmente para Miami quer voltar para os lugares anteriores pré-decolagem.

No entanto, esse tipo de análise pode nos levar a conclusões que não explicam o real significado deste “fim de ciclo”. Acreditar que as coisas voltarão a entrar no eixo a partir do aumento da demanda de commodities no mercado internacional significa acreditar que vivemos apenas uma crise cíclica nos moldes clássicos, ou seja, em breve, após um movimento saneador do capital, um novo ciclo de crescimento voltará e mais um “milagre” reaparecerá no horizonte histórico brasileiro.

Nos limites do pensamento progressista brasileiro, outro modo de encarar a situação seria o de prostrar-nos novamente ante um intervencionismo estatal supostamente capaz de desenvolver a economia indefinidamente. Assim sendo, com cortes de juros e políticas fiscais adequadas voltaríamos a aquecer a produção e o consumo.

Em nosso entendimento, o drama é muito maior. Seguindo a análise de Paulo Arantes, mais do que uma enésima alternância de crise e ciclo, estamos vivendo o fim de uma época. Se desenvolvermos uma crítica a partir dessa chave de leitura, veremos que a acumulação primitiva a partir do agronegócio predatório e do capitalismo de cupincha, mais do que indícios de uma decolagem econômica ou mais um milagre econômico, foi um salto para a frente que escondeu uma queda. Uma queda camuflada também pela história do PT e por uma narrativa ascensional da democracia brasileira. Nas palavras de Arantes: “O PT não está agonizando por força de rejeição imunológica, por maior que seja o efeito do choque externo das ondas sucessivas de anticorpos enraivecidos até o ódio mortal, mas por motivo de uma combustão interna que o consumiu, por assim dizer, do berço ao túmulo.”2A fórmula mágica da paz social se esgotou. Correio da Cidadania, 15 de julho de 2015.

De forma resumida, o PT nasceu do colapso da sociedade do trabalho e dos Estados de bem-estar social. Mas por muito tempo acreditou-se que o partido – que nasceu da conjunção de lutas urbanas (por moradia, saúde, educação, transporte, etc.), lutas rurais (por reforma agrária) e lutas sindicais, somadas a uma sociedade que reivindicava e se movimentava pelo fim da ditadura militar – era uma exceção diante de um mundo cada vez mais unidimensional, dadas a queda do muro de Berlim, a derrota da greve dos mineiros na Inglaterra e a crise das sociais-democracias por toda a Europa. Esse engano histórico de achar que poderíamos ser uma exceção no processo de modernização capitalista deu ao PT as credenciais para ser compreendido como um partido capaz não só de defender, mas também de alargar os direitos sociais e trabalhistas no país.

No entanto, se devemos ser justos e reconhecer que o partido defendeu em diversas ocasiões as conquistas trabalhistas da era varguista, não devemos deixar de apontar que as metamorfoses do trabalho também se impuseram no país e as exigências do capitalismo financeirizado se realizaram sem resistências. No governo, o partido se rendeu ao mercado e impôs, por exemplo, uma reforma previdenciária logo no início de sua vida na gestão do governo federal. Em termos de direitos trabalhistas e de construção de um Estado social, podemos afirmar que o governo não foi diferente dos governos ditos neoliberais (seja na administração, seja na criação de uma racionalidade no funcionamento dos serviços públicos). Mas junto disso soube gerir a população como nenhum outro partido – pois tinha legitimidade social para isso –, a partir de programas sociais previstos pelas instituições internacionais que incluíram milhares de indivíduos antes marginalizados na dinâmica do consumo de mercadorias. Os que ficaram fora disso – uma parte significativa da população selecionada para apodrecer – foram atingidos por políticas de segurança e extermínio (Unidade de Política Pacificadora, Força Nacional de Segurança e, mais recentemente, lei antiterrorismo, para ficarmos nos exemplos mais aberrantes).

Em outras palavras, e para chegar ao fim desta sugestão de uma leitura crítica da história recente do país, o que está acabando não é uma fase histórica ascensional que se iniciou com o fim do período autoritário da ditadura militar e deu início ao período democrático, no qual o PT era a grande novidade. O fim também não pode ser entendido como o fim das expectativas de uma sociedade que acreditou que a abertura democrática traria de forma retardatária as benesses de um Estado social, típicas das sociais-democracias europeias. O que está acabando, ou já acabou, é uma engenharia social rebaixada, que envolve acumulação primitiva e programas sociais de gestão da pobreza e serviu para encobrir a impossibilidade da criação de uma sociedade do trabalho no Brasil.

Dado que nunca tivemos uma sociedade salarial, até mesmo essa engenharia social rebaixada vai fazer falta. Coisas piores estão por vir. Mas, para terminarmos de forma esperançosa esta curta reflexão, enquanto nada de novo surgir das classes pulverizadas, dos assalariados dessocializados e dos militantes exaustos que a história recente produziu aos montes (e só poderá surgir disso, pois a história não anda para trás), deixemos que essa narrativa ascensional da democracia brasileira sirva para confortavelmente alguns dirigentes e intelectuais prometerem dias melhores para o povo. Essas coisas também acabam por corrosão.

Este artigo do historiador Danilo Chaves Nakamura foi publicado na revista O Olho da História nº 22, de abril de 2016.


NOTAS

[1] GENRO, Tarso. O ciclo que levou o PT ao governo está esgotado (entrevista). In: Folha de São Paulo, 6 de março de 2016.

[2] ARANTES, P. A fórmula mágica da paz social se esgotou. In Correio da Cidadania, 15 de julho de 2015.

Publicado em:política

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