O título contém uma contradição explícita, pois um dos pressupostos básicos do regime democrático é ter se estabelecido com base na supressão de todas as estruturas, políticas e jurídicas, que davam “sustentabilidade” ao regime ditatorial. Contudo a contradição se encontra não no título, mas no conteúdo político das transformações que se desenvolveram no período chamado de transição da ditadura para o regime democrático atual.
O tema da luta pela anistia nos anos 1970 é emblemático da distância que há entre a vontade expressa pelos movimentos sociais – anistia ampla, geral e irrestrita – e o arremedo jurídico montado pelo antigo regime, que se denominaria de anistia parcial e recíproca, consubstanciado no decreto nº 6683, de 28 de agosto de 1979.
Os movimentos sociais reivindicavam:
- A erradicação da tortura.
- O esclarecimento das circunstâncias em que ocorreram as mortes e os desaparecimentos dos militantes políticos.
- A responsabilização jurídica do Estado e dos agentes da repressão.
- O desmantelamento do aparelho repressivo.
A oferta do regime foi um processo de “autoanistia” para os agentes da repressão, o ocultamento e não reconhecimento das responsabilidades do Estado nos assassinatos perpetrados e a preservação do aparelho repressivo do Estado.
Há aqui uma contradição não resolvida historicamente e da qual precisamos tratar, pois diz respeito à natureza política da ditadura de 1964 e da democracia dos dias de hoje. Entender a natureza do golpe de 1964, o papel dos distintos agentes sociais e políticos, os mecanismos construídos ao longo da transição para conter e controlar as demandas dos movimentos sociais da época talvez nos permita colaborar com o alargamento da democracia.
A Comissão da Verdade
A Comissão da Verdade, criada pela lei 12.528, de 18 de novembro de 2011 e instalada em 16 de maio de 2012, recebeu a incumbência, por um período de dois anos, de examinar as agressões aos direitos humanos e encaminhar um relatório apenas para a presidente e para o ministro da Defesa.
Esta comissão se insere no contexto de tratar uma contradição não resolvida, mas padece de todas as limitações interpostas pelo Estado aos seus agentes pela diluição do tema, ou seja:
- Aumento do período de verificação: entre 1946 e 1988.
- Mistificação: a expressão repressão política foi retirada da ata de fundação da Comissão.
- Limitações políticas: ao invés de apurar, vai realizar o exame das violências.
- Limitações financeiras: as verbas dependem do Gabinete Civil da Presidência da República.
- Estrito controle do aparelho do Estado: apresentará o relatório apenas para a Presidência da República e para o ministro da Defesa.
Meritório de fato é o Estado brasileiro reconhecer que há um problema mal resolvido e criar uma comissão para “examinar” o que ocorreu no passado recente. Comissão para a qual já se constituiu nos meios militares uma “comissão paralela” e em relação à qual a todo momento a grande imprensa e os meios políticos em geral alertam que “o Brasil preferiu o caminho da harmonia”, em coro com a decisão do ministro do STF, Cesar Peluso, ao arquivar o pedido de revogação da Lei de Anistia.
O passado nos ensina algo?
No inicio dos anos 1980, ocorreu uma amplificação no conceito de “direitos humanos”, incorporando direitos econômicos e sociais, destacando-se a defesa dos presos comuns.
Entre 1983 e 1985, em plena campanha em defesa dos direitos dos presos comuns, o governo Montoro apresentou os maiores índices de criminalidade desde 1964, que foram imediatamente associados pela mídia à democracia. O desenlace se deu com a renúncia do Secretário de Justiça (José Carlos Dias).
Esse movimento se desenvolvia conforme a luta anterior em defesa dos presos e desaparecidos políticos, mas tratava de pessoas com a cidadania restringida, que não protagonizavam o movimento, e necessitavam do prestígio de outros grupos sociais (afinal eram presidiários). O resultado deste movimento foi que os grupos sociais envolvidos na campanha, em vez de estenderem seu prestígio, acabaram desprestigiados, como defensores de bandidos. Desenvolveu-se um “embate ideológico” contra os “direitos humanos” que, negando a humanidade dos criminosos, caracterizava o esforço de humanização dos presídios como “privilégio” e vinculava essa política democrática ao aumento da criminalidade.
Fato é que ao lado da “redemocratização” do país cresceram de forma bastante acelerada os casos de abusos policiais, culminando no massacre do Carandiru (02/10/1992), com o assassinato de 111 presos comuns.
Será que a vinculação da luta pelos direitos humanos aos presos comuns trouxe uma dissociação entre “direitos em geral” e “direitos humanos”, com o paulatino crescimento do apoio às formas violentas (públicas e/ou privadas) de combate e prevenção ao crime?
A resultante deste processo com prevalência da oposição aos direitos humanos (agora entendidos como defesa de criminosos) vinculada a um diagnóstico de desordem social – determinada pela democracia então em construção – originou soluções brutais:
- Alijar os criminosos da sua condição humana.
- Privilegiar a segurança e o uso da força contra os “baderneiros”.
- Para a população pobre, polícia e segurança pública. Para os ricos, segurança privada (600 empresas no país, nos dias de hoje).
Sintomaticamente, entre abril de 1964 e dezembro de 1993 ocorreram 1.787 assassinatos de camponeses, com apenas 14 condenações. Crime sem castigo.
Em meados dos anos 1990 e neste último decênio, os abusos policiais, a atuação do aparato repressivo contra a população pobre e seus movimentos reivindicatórios apenas amplifica e valida o uso da violência, os assassinatos e o extermínio paulatino dos “desordeiros”. Para além da segurança, o trabalho policial revela sua faceta de controle armado dos movimentos sociais.
Será que retomar o tema dos direitos humanos implicaria desvelar uma série de promessas não cumpridas pela democracia? Não cumpridas por uma ordem social democrática, legítima herdeira da ditadura militar e dos interesses políticos e econômicos, que lá atrás e hoje prevalecem como interesses do Estado?
Questões que merecem atenção
Há uma forte resistência de setores empresariais (Globo, Ford, FSP, etc.) com fortes vínculos com a ditadura militar, em relação à própria instalação da Comissão da Verdade. Não se trataria de – sem abandonar a óptica da violência pessoal contra os presos e suas famílias – apontar, ilustrar, desvelar o significado social e histórico da ditadura (e da democracia no Brasil de hoje), buscando as relações entre os distintos grupos sociais e a ditadura? Esse processo atualizaria uma discussão mal resolvida em 1979 e, ao mesmo tempo, exigiria indicar claramente as relações de continuidade da ditadura e da democracia.
Ampliar a democracia não significa lutar pela revogação da Lei da Anistia, clarificando esse passado negro de nossa história recente, exigindo que o Estado assuma suas responsabilidades, incluindo o enquadramento penal dos responsáveis pelas torturas e mortes?
O Estado brasileiro viola o Pacto de São José e deve ser convidado a obedecê-lo (promulgar uma anistia não pode significar a não investigação dos crimes de lesa-humanidade cometidos, como nos ensina Hélio Bicudo).
Há muitas iniciativas, todas absolutamente legítimas, em torno do tema da Anistia e Direitos Humanos, desenvolvidas por distintos movimentos e agrupamentos sociais. Há uma Comissão da Verdade, com todas as limitações já enunciadas. Por que não se exige que a Comissão da Verdade torne público para o Parlamento, que deveria nos representar, os seus relatórios?