Um exame crítico da visão da esquerda sobre a URSS nos anos 1940, a partir de uma palestra de Mário Pedrosa.
Vito Letizia
Em 1946 o jornal “Vanguarda Socialista”, criado por um grupo de militantes ex-comunistas e ex-trotskistas, publicou uma série de palestras sobre a Revolução Russa e seus resultados, pronunciadas por Mário Pedrosa, jornalista e crítico de arte, antigo militante do Partido Comunista, depois da Oposição de Esquerda fundada por Trotsky, com a qual rompera em 1939.
Vale a pena comparar a impressão causada pela URSS triunfante do tempo de Stalin, mesmo entre militantes anti-stalinistas como Mário Pedrosa, com a perplexidade geral de hoje ante o desmoronamento inesperado daquela potência aparentemente imbatível.
Embora crítico do sistema político vigente na URSS, Mário Pedrosa não conseguia ver rachaduras que anunciassem a futura queda do gigante. Entretanto, nem por isso deixou de mostrar muitos elementos que estavam provocando seu enfraquecimento gradativo.
Na época em que Mário Pedrosa aproveitava o fim do Estado Novo no Brasil para fazer uma discussão aberta sobre “A Revolução russa e sua evolução”, o poder de Stalin estava no apogeu. A máquina política que dominava a URSS estendia sua influência pelo mundo inteiro através dos partidos comunistas.
Os próprios economistas burgueses mais eminentes tendiam então a considerar a planificação central, tal como se dava na URSS, como um meio eficaz para promover o desenvolvimento econômico.1Veja-se, por exemplo, o reconhecimento da eficácia da planificação russa por um economista da importância de Joseph Schumpeter em Capitalismo, Socialismo e Democracia, de 1942, e mesmo de um expoente do pensamento econômico liberal como Paul Samuelson, em sua Introdução à Análise econômica, de 1951 (editada em português pela Editora Agir, do Rio de Janeiro, em 1952). E no Brasil, Roberto Simonsen, fundador do Centro das Indústrias de São Paulo (futura Fiesp), defendia uma industrialização planificada pelo Estado, em sua célebre polêmica de 1944 com Eugênio Gudin.
O liberalismo estava em baixa, ainda sofrendo com o golpe que fora a grande depressão dos anos 1930. E, nos países capitalistas, aumentava a intervenção do Estado na economia. Mário Pedrosa reflete esse consenso difuso. E reflete, ao mesmo tempo, a forte impressão de todos os analistas políticos do imediato pós-guerra ante a partilha do mundo em duas zonas de influência: uma ligada aos EEUU, outra à URSS.
“Diante de nós se desenrola a marcha para o capitalismo de Estado e a dominação do mundo por um ou outro dos grandes imperialismos existentes. O processo se aprofunda e se torna mais agudo agora nos EEUU e na Inglaterra, que vão assim chegando a uma fase mais adiantada de estatização social e econômica.”
Pode-se dizer que Mário Pedrosa estava em consonância com o espírito de seu tempo, no qual a rápida industrialização soviética aparecia aos observadores de todas as tendências como um fenômeno de extrema importância para o futuro da economia mundial e da humanidade em geral.
O pensamento trotskista, que constituía a fonte original das posições de Mário Pedrosa sobre a URSS, considerava a planificação econômica estatal superior ao livre jogo dos interesses privados, atribuindo os efeitos econômicos da URSS aos méritos da planificação, apesar do despotismo stalinista.
Ao mesmo tempo, porém, Mário Pedrosa, militante do movimento operário desde a sua juventude, critica os rumos seguidos pela URSS de um ponto de vista revolucionário e dirige-se a um público ligado de um modo ou de outro ao pensamento de origem marxista em geral, que era o público-alvo do “Vanguarda Socialista”. Nome significativo.
Mas como revolucionário inquieto e avesso à aceitação dos chavões da esquerda para descrever a evolução da URSS, Pedrosa procurava explicações mais profundas. Para ele, a constatação de que a URSS estava ocupando o lugar de grande potência e se encontrava na vanguarda de uma tendência mundial para a estatização crescente da economia, implicava atribuir à burocracia da URSS uma natureza de classe social. Uma nova classe social na qual se teria transformado a camada dirigente soviética, e não apenas uma burocracia parasitária, como afirmava a tese trotskista.
Mario Pedrosa baseava suas posições em toda a massa de informações obtidas em suas viagens e em suas leituras, bastante amplas. A preocupação específica em suas palestras era traçar as origens das transformações ocorridas desde a Revolução de 1917, para expor à luz as raízes mais profundas do regime stalinista.
Na busca de tais origens, Mario Pedrosa aponta indícios que mostravam um processo de afastamento da direção revolucionária de 1917 em relação ao movimento operário do qual se originara. Um desses indícios estaria na política dos bolcheviques em relação aos camponeses já no período da guerra civil (1918-1920):
“O caráter do governo mudou, porém, no decorrer da guerra civil. Ao findar desta, estava insensivelmente transformado numa ditadura burocrática a serviço da massa camponesa.”
É a crítica “esquerdista” à política de Lenin durante a guerra civil.
De fato, a política bolchevique em relação aos camponeses oscilaria bastante durante esse período.
Como os camponeses estavam majoritariamente influenciados pelos socialistas-revolucionários, os bolcheviques tentaram romper essa situação criando comitês de camponeses pobres, que foram utilizados para a requisição de produtos agrícolas, à qual os socialistas revolucionários se opunham. Requisição que foi o único meio eficaz de abastecimento do Exército Vermelho e das cidades durante a guerra civil.
Entretanto, no mesmo ano de 1918 os bolcheviques foram se dando conta de que os comitês de camponeses pobres podiam ser úteis para combater a influência dos socialistas-revolucionários no campo e para indicar onde havia excedentes agrícolas requisitáveis, mas não eram eficientes para organizar a produção. Porque os camponeses pobres ou não produziam em absoluto (por falta de instrumentos de trabalho e sementes), vivendo de expedientes diversos – como trabalhar em terras alheias, fazer pequenos serviços e receber produtos requisitados (eles ficavam com uma parte quando participavam da requisição) – ou produziam apenas o suficiente para seu consumo familiar, o que não ajudava no abastecimento das cidades e do exército.
Por outro lado, as tentativas de produzir em fazendas coletivas não deram resultado suficiente para as necessidades.
Por isso, os bolcheviques, a partir do fim de 1918, passaram a reaproximar-se dos camponeses médios e abastados. E os comitês de camponeses pobres foram dissolvidos pelo governo no mesmo ano.
Não obstante isso, a tentativa de reaproximação do governo com os camponeses em geral não deu certo nesse período. Porque os camponeses exigiam que fosse permitido o livre comércio de produtos agrícolas e cessassem as requisições. Mas as requisições não podiam ser abandonadas pelo governo porque este não conseguiu fazer funcionar satisfatoriamente um sistema de impostos, embora não o tivesse tentado desde outubro de 1918.
Apesar disso tudo, quando o governo dissolveu os comitês de camponeses pobres, a ala esquerda bolchevique e as lideranças dos camponeses pobres acusaram a direção do partido de recuar ante as forças pequeno-burguesas no campo. Opinião que repercutiu no exterior e se reflete no discurso de Mário Pedrosa.
Sabe-se, a partir dos estudos de E. H. Carr2La Révolution bolchevique (Editions de Minuit, Paris, 1969). – que são posteriores aos anos 1940 –, que o governo bolchevique não conseguiu estabelecer boas relações com os camponeses durante a guerra civil. As requisições continuaram e as tentativas de fazer fazendas coletivas funcionarem também. Mas as fazendas coletivas fracassaram; as terras cultivadas diminuíram e, após o fim da guerra civil, começou a desenvolver-se o banditismo no campo.
Finalmente Lenin viu-se obrigado a aceitar a guinada política da NEP em 1921 – proposta por Trotsky desde fevereiro de 1920 –, com a qual foram satisfeitas as exigências fundamentais dos camponeses capazes de produzir mais do que os próprios meios de subsistência.
Dizer, portanto, que o governo soviético evoluiu, ainda durante a guerra civil, até colocar-se “a serviço da massa camponesa” era um exagero, originado da frustração da ala esquerda diante do abandono da organização dos camponeses pobres e de fazendas coletivas.
Mário Pedrosa ecoa a opinião da ala esquerda bolchevique porque está à procura de uma explicação em profundidade para a evolução da URSS no sentido do autoritarismo. Explicação que fazia falta. Pois se é verdade que os trotskistas tinham razões para negar a existência de uma ditadura burocrática já no fim da guerra civil, também é verdade que o partido bolchevique já naquela época se confundia com o aparelho do Estado soviético. E o próprio Lenin então admitia que os sovietes tinham perdido sua vida própria.
Diante disso, Mário Pedrosa segue a tendência da ala esquerda bolchevique, que procurava uma explicação antes de tudo “social” para a decadência das liberdades democráticas na URSS. Ou seja, procurava uma classe social a cujos interesses se teria ligado a direção bolchevique, em detrimento de sua primitiva opção proletária. Quem procura, acha. E acharam os camponeses. Prova: a direção bolchevique dissolvera os comitês de camponeses pobres e diminuíra sua pressão sobre os demais camponeses durante a guerra civil, evoluindo finalmente para a NEP em 1921.
Esse tipo de simplificação do método marxista estava então muito em voga entre os mais eminentes intelectuais de esquerda. Isso desde os anos 1920. Sendo que os stalinistas passaram a distinguir-se em particular pela capacidade de inventar “fatos” para sustentar seus argumentos “classistas”. Argumentos que consistiram em reduzir opções políticas a opções por classes sociais.
Mário Pedrosa era anti-stalinista, mas não deixava de ser um homem de seu tempo. Assim, tendia a aceitar um fator “social” para a burocratização do partido bolchevique; fator que teria consistido na capitulação ante a classe burguesa remanescente no campo, na URSS.
É nessa linha de raciocínio que se inclui a aceitação da versão dos críticos de esquerda do regime soviético nos anos 1930 e 1940. O exagero maior, nessa linha, era a história de que haveria camponeses “milionários” e mesmo kolkhozianos ricos nos anos 1930.
Aqui talvez haja uma extrapolação de argumentos, transferidos indevidamente de uma época para outra. Pois nos anos 1920, durante a NEP, quando as informações sobre a URSS circulavam melhor, havia realmente uma camada de camponeses ricos. Camada que surgira devido às vistas grossas que o governo soviético fazia então para a expansão do assalariamento no campo (que era ilegal), porque precisava desesperadamente de um excedente agrícola para exportar e assim obter divisas para importação de máquinas e peças de reposição para a indústria. A esse respeito, Mário Pedrosa acompanhava também em parte a crítica de Trotsky ao excesso de concessões aos camponeses ricos durante a NEP.
Mas quando desabou o rolo compressor da “coletivização” forçada, a partir de 1929, os camponeses – ricos, médios e oposicionistas em geral – foram simplesmente laminados pelo aparelho repressivo stalinista. Treze milhões é o número mais repetido, desde o início da glasnost, para os resultados dessa repressão. E, a partir dessa época, os camponeses, metidos à força em kolkhozes e sovkhoses, passaram a ser os párias da sociedade soviética. O desenvolvimento da indústria soviética não teve contrapartida no campo, onde se perpetuaram as más condições de vida e a baixa produtividade.3Ver Alec Nove, L’Economie soviétique (Economica, Paris, 1981): em 1973, a URSS investia no campo cerca de cinco vezes mais que os EUA (p. 146), para obter como resultado que cada rublo de produto agrícola custasse 1,15 rublo ao Estado, segundo o próprio “Pravda”, citado pelo autor (p. 166). Quanto à persistência do baixo padrão de vida no campo, ver p. 153. E também Abel Aganbeguian, Revolução na Economia soviética (Edições Europa-América, Lisboa, 1988, capítulo I).
A política de Stalin em relação aos camponeses e a situação destes permanecem muito mal conhecidas até os anos 1960. Não só por dificuldades de informação. Também porque esse era o assunto sobre o qual havia menos desacordos na esquerda.
Trotsky viu o enquadramento forçado dos camponeses nos kolkhozes como correto. Apenas deplorou que Stalin, para manter sua aliança com Buharin até derrotar a oposição da esquerda em 1927, tivesse adiado a planificação econômica; adiamento que teria tornado necessário o emprego da violência contra os “camponeses abastados” (kulaks).4“Pour nourrir les Villes, Il fallait d’urgence pendre aux koulaks le pain quotidien. On ne le pouvait que par la force.” Trotsky, La Révolution trahie (Editions de Minuit, Paris, p. 31). No mesmo texto (p. 34), Trotsky reconhece que as vítimas da repressão no campo foram “milhões”, quantidade absurda de “abastados” para a Rússia rural daquela época.
Além disso, Trotsky e a esquerda antistalinista em geral pouco discutiram o tipo de “coletivização” escolhida por Stalin. Ficou estabelecida a ideia de que o kolkhoz teria sido o caminho mais ou menos natural para a introdução da coletivização do campo na URSS. Somente a partir da “desestalinização” de Khruchtchou em 1956 é que essas questões começaram a ser discutidas melhor, já contando com a contribuição de revelações vindas da própria URSS.
Sabe-se hoje que a repressão no campo atingiu principalmente os camponeses médios, os seredniaki, denominação que distinguia os camponeses possuidores de áreas de terra entre 4 e 10 hectares.5Ver Moshe Lewin, La Formation de Système soviétique (Gallimard, Paris, 1985, p. 174 e segs.).
Sabe-se também que os camponeses tentaram espontaneamente outras formas de cooperação no campo, com os tooz (“companheirismo”, consistindo no uso comum dos instrumentos agrícolas) e as “comunas agrícolas” (com terras também usadas em comum).6Ver Marie Lavigne, Les économies socialistes (Armand Colin, Paris, 1979, p. 33).
Mas a “coletivização” de Stalin se deu sob a forma de “operação para tomar o pão” (vziat hlieb), na qual o objetivo era tomar tudo e manter os camponeses agrupados para melhor tomar. Razão pela qual as máquinas agrícolas não foram entregues aos kolkhozes, mas sim à GPU, que alugava as máquinas aos camponeses, para melhor controlá-los e extorqui-los. E como o objetivo era a extorsão da produção total dos kolkhozes, aos camponeses foram deixadas parcelas familiares de meio hectare, para que não morressem de fome.7Ver Moshe Lewin, op. cit., p. 258 e segs.
Entretanto, setores da esquerda anti-stalinista continuaram a falar em “camponeses milionários” na URSS, mesmo após 1929, baseando-se em suposições e informações de datas anteriores. O equívoco se justificava em parte pela falta de informações fidedignas sobre a URSS a partir dos anos 1930. Mas serviam também para reforçar a explicação “social” para a opção ultra-autoritária da direção stalinista.
Outro aspecto dessa mesma tendência metodológica é a interpretação do sufrágio universal, incluído por Stalin na Constituição soviética de 1936.
Mário Pedrosa atribui bastante importância a essa medida:
“A nova Constituição, ao liquidar o sistema indireto, isto é, soviético, profissional, de eleições, adotou formalmente o sistema de sufrágio direto universal. A desigualdade política em favor do operariado, destinada a assegurar sua hegemonia de classe dominante, desapareceu, perdendo assim o proletariado industrial esse privilégio político que veio da revolução.”
É preciso aqui talvez esclarecer que depois da Revolução de Outubro o voto passara a ser quase universal. Não podiam votar:
a) os que exploravam mão de obra alheia;
b) os “homens de negócio” (que só existiram legalmente durante o período da NEP, de 1921 a 1928);
c) os que viviam de renda sem trabalhar (categoria rapidamente extinta);
d) os religiosos (sacerdotes, monges e seminaristas).
O elemento mais distintivo do sistema soviético em relação à democracia parlamentar em voga no Ocidente era o fato de permitir uma certa democracia direta, ainda que exercida em graus superpostos, uma vez que as votações não aconteciam em seções eleitorais – que recolhem votos individuais –, mas sim em assembleias: as assembleias dos sovietes locais enviavam delegados para sovietes de 2º grau, estes para outros, mais acima, até o Soviete supremo; os delegados sendo revogáveis a qualquer momento por seus eleitores.
Mas para muitos bolcheviques a grande diferença em relação aos outros sistemas eleitorais do mundo era a representação privilegiada dos trabalhadores urbanos nos sovietes, uma vez que as normas eleitorais em vigor até 1936 davam origem a uma representação de trabalhadores urbanos muito maior do que a de camponeses. Isso era considerado elemento fundamental da ditadura do proletariado pelo pensamento de origem marxista mais generalizado na época. Trotsky inclusive. Este, na Revolução Traída, chama a instauração do sufrágio universal em 1936 de “liquidação jurídica da ditadura do proletariado”.8Trotsky, op. cit., p. 173. E Mário Pedrosa também, pelo que se pode constatar.
Stalin, em princípio, não fugia à tendência da época no movimento operário em geral e comunista em particular; até exagerava, ao identificar a representação privilegiada dos operários urbanos nos sovietes como uma característica essencial da ditadura do proletariado. Razão pela qual depois teve necessidade de justificar a introdução do sufrágio universal na Constituição de 1936 através da tese de que não existiriam mais classes sociais dominante e dominada na URSS e, consequentemente, o governo passava a ser representativo de “todo o povo”. E com isso Stalin conseguia desviar a discussão para o falso problema da existência ou não e do grau de importância das diferenciações sociais na URSS dos anos 1930, evitando assim questionamentos mais incômodos sobre o conteúdo real dos direitos políticos que o regime concedia a “todo o povo”, proletários ou não.
Pois é evidente que qualquer sistema eleitoral só é democrático se há liberdade de organização política e liberdade de expressão. Isso já vinha diminuindo desde meados de 1918. Com o aguçamento da guerra civil as liberdades políticas foram se tornando cada vez mais privativas do Partido Bolchevique. Mas este também evoluiu. Discordar dentro do Partido era permitido e normal até 1921 (X Congresso); não permitido, porém tolerado, daí em diante; e violentamente reprimido a partir do esmagamento de toda oposição interna, a partir do XV Congresso, em dezembro de 1927.
Portanto, desde antes da ditadura stalinista, a “representação privilegiada do proletariado” na realidade camuflava uma representação privilegiada do Partido Bolchevique nos sovietes; e esse tipo de representação seletiva só valeu alguma coisa para os trabalhadores enquanto as diversas tendências do movimento operário puderam influir nas lutas internas dos bolcheviques; ou seja, cada vez menos a partir de 1921, e nada a partir de 1928. Depois foi a “meia-noite no século”, nas palavras de Victor Serge.
Sob a ditadura de Stalin, representação privilegiada do proletariado industrial ou sufrágio universal era tudo igual. Só havia candidatos do partido único e este era “monolítico”.
No plano econômico, Mário Pedrosa segue a ideia generalizada nos anos 1940, que levava muito mais a sério do que hoje seria possível a eficiência da burocracia soviética na aplicação de seus planos quinquenais.
Assim, Mário Pedrosa acredita, como muitos intelectuais da época, que Stalin conseguira fazer funcionar o princípio da “lucratividade” (hozrastchiot) em suas unidades de produção. Quarenta anos depois, a burocracia reconheceria que nunca havia conseguido isso, em qualquer setor da indústria, a não ser esporádica e localizadamente. Mário Pedrosa já era falecido quando estouraram as revelações da glasnost.
Os reformadores soviéticos que hoje defendem a privatização das fábricas estatais acusavam a burocracia de ter transformado as fábricas em instituições cuja finalidade principal passara a ser simplesmente a distribuição de salários, em vez de produzir bens para a sociedade. Sem dúvida é exagero, porém, classe ou não-classe social, a burocracia certamente nunca foi eficiente como “patrão”.
Mário Pedrosa leva sua suposição de eficiência administrativa da burocracia soviética a ponto de inferir dela não apenas o crescimento econômico rápido que todos constatavam e admiravam, mas também o enriquecimento de certas camadas sociais não-burocráticas, que se teriam beneficiado com o crescimento da “lucratividade” na economia em geral, a saber: um setor do campesinato e o setor do operariado engajado no movimento stahanovista, tendo este último dado origem a uma nova “aristocracia operária”.
Parece que Mário Pedrosa aderira à tendência contemporânea a assimilar taylorismo e stahanovismo.
Em seu tempo, Lenin defendera a adoção de uma versão soviética do método Taylor de organização do trabalho nas fábricas. Isso bastou para que, depois de sua morte, viesse a ser considerado como precursor do movimento stahanovista de Stalin.
Pode-se concordar ou discordar das propostas de Lenin sobre a organização do trabalho nos anos 1920 (a ala esquerda bolchevique discordava), mas essas ideias visavam ao aperfeiçoamento da organização do trabalho pelo estabelecimento de uma base “objetiva” (uma coordenação física dos movimentos dos trabalhadores) para os hábitos de disciplina nas fábricas, hábitos em grande parte abandonados no turbilhão revolucionário.
Já o stahanovismo tem por base o voluntarismo puro. Stahanof foi um “herói do trabalho” inventado por Stalin. A meta era fazer o maior número possível de operários esfalfar-se como Stahanof. O movimento fracassou em parte devido à resistência dos trabalhadores (consta que alguns stahanovistas sofreram acidentes estranhos) e em parte devido à tendência de cada burocrata a encher sua fábrica de trabalhadores inúteis para dar maior credibilidade a seus pedidos de verbas e matérias-primas junto aos órgãos superiores de planificação.
Mário Pedrosa não tinha como informar-se das pequenas e fragmentadas ações de resistência dos operários soviéticos nem das mazelas interburocráticas dos anos 1930 e 1940. E a 2ª Guerra Mundial havia contribuído muito para mascarar as deficiências do sistema de administração econômica da URSS.
Dá para ver, em todo caso, que a argumentação de Mário Pedrosa é confusa nessa questão. Pedrosa reconhece que o stahanovismo se baseava na mediação do volume de trabalho realizado por operário, o que significava adotar, na medida do possível, o sistema de salário por peças, e reconhece igualmente que a adoção desse sistema corresponde a uma “… volta ao regime do salariato tal como se constituiu no início do modo capitalista de produção, quando ainda não havia praticamente movimento operário organizado”. Isso é contraditório com a suposição de que o sistema teria dado origem a uma aristocracia operária.
Uma aristocracia operária nasce de um certo aperfeiçoamento da organização do trabalho e da produtividade, combinado a um aumento da capacidade de barganha dos trabalhadores. Não poderia nascer de um retrocesso na organização do trabalho e de uma diminuição da capacidade de barganha dos trabalhadores, fatos apontados pelo próprio Mário Pedrosa para a URSS.
Sob a influência do assombro que a industrialização da URSS causara nos anos 1930, assim como sua capacidade de fabricar mais tanques do que a Alemanha durante a guerra, Mário Pedrosa é obrigado a combinar, paradoxalmente, um posicionamento negativo quanto ao regime político soviético com uma avaliação positiva de suas realizações econômicas:
“Vimos aqui como as relações resultantes da propriedade estatizada, tanto da indústria como, depois, da agricultura permitiram um tremendo crescimento das forças produtivas e, paralelamente, criaram socialmente uma nova base de diferenciação social dentro da sociedade russa.”
Era também um leitmotiv dos trotskistas a afirmação de que na URSS as forças produtivas não eram travadas, como no capitalismo decadente. E que seu crescimento se dava com base na estatização dos meios de produção.
A massa de informações veiculadas com a glasnost e o desdobramento dos regimes burocráticos na Europa ocidental revelaram o caráter unilateral e limitado do crescimento das forças produtivas nos Estados burocráticos. O crescimento foi extensivo: aumentava o número de fábricas e a extensão das terras cultivadas, mas a produtividade ficou sempre atrás da produtividade capitalista. Além disso, a indústria dos Estados burocráticos era capaz de determinar a quantidade dos bens produzidos, mas não era capaz de controlar eficazmente a qualidade dos produtos e, consequentemente, melhorá-la. E, inclusive por esses problemas de qualidade e atraso tecnológico (além da desorganização da distribuição e da corrupção crescentes), a partir dos anos 1970 a produtividade começou mesmo a decrescer, ao mesmo tempo em que aumentavam a um nível insuportável os custos do crescimento extensivo.
O fato é que a economia soviética estava estagnada desde a época de Brejnev; porém a estagnação pôde então ser escondida porque a “crise do petróleo” no meio dos anos 1970 permitira à URSS superávits extraordinários na balança comercial (a URSS era exportadora de petróleo) e compensar a insuficiência da produção interna com importações. Quer dizer: o “tremendo crescimento” das forças produtivas na URSS avançava a passos firmes para o colapso econômico. Claro, em 1946 só seria possível afirmar isso por adivinhação.
Talvez o elemento de confusão particular a Mário Pedrosa consistisse na afirmação de que o crescimento das forças produtivas na URSS servia de base a uma diferenciação social pronunciada.
Havia diferenciação social na URSS, mas não baseada no crescimento econômico. Isto é, não se enriquecia o gerente mais capaz de extrair produtividade de seus trabalhadores; enriquecia-se quem constava na nomenklatura, baseada em critérios de lealdade aos grupos dominantes. Sabe-se hoje que muita gente danou sua carreira por insistir em ser mais produtivo do que o desejado por algum superior ou algum colega melhor relacionado.
Na realidade, as próprias bases do que foi apresentado nos anos 1930 como “construção do socialismo” eram falsas.
Em primeiro lugar, porque o grau de repressão desenvolvido contra a população a partir da “coletivização” forçada inviabilizou também a organização eficiente da indústria. Pois a extensão dos expurgos no partido, com expulsões em massa dos filhos dos empregados das escolas técnicas e universidades, deixou a indústria nas mãos de arrivistas desqualificados, selecionados segundo o grau de lealdade a Stalin e de falta de escrúpulos nos ataques aos quadros mais antigos da administração e do partido.
A disciplina de ferro sem racionalidade econômica, apoiada numa legislação que criminalizava até atrasos de entrada na fábrica, transformou uma parte da mão de obra em nômade escapando de punições, que se misturava à massa nômade que fugia do campo assolado pela “coletivização”. Esse nomadismo era viabilizado pela cumplicidade dos gerentes, que contratavam imediatamente qualquer recém-chegado, para ter uma reserva de mão de obra e resguardar-se de dificuldades no cumprimento do plano quinquenal.
O resultado desse clima de salve-se quem puder foi o gigantesco brak (produção defeituosa) que caracterizou todos os planos quinquenais, cujos produtos, não obstante, foram contabilizados e pagos como “produção cumprida”, pois nenhum gerente rejeitava o fornecimento de outro, para não ter o seu próprio brak também rejeitado. E o comércio, constituído por funcionários com salários fixos, não se preocupava em vender todos os produtos finais que recebia. Segundo estatísticas dos anos 1970, cerca de um terço da produção à venda era imprestável.
Nunca se soube o tamanho do brak dos anos 1930. Apenas se supõe que foi enorme.9Ver Moshe Lewin, op. cit., p. 357. Quanto ao péssimo funcionamento do comércio soviético, ver Alec Nove, op. cit., p. 315 e segs.
Em segundo lugar, porque as “soluções” de Stalin para os problemas da economia, sempre baseadas no aumento da repressão e em mais expurgos no partido, originavam constantemente novos problemas, causados pela resistência passiva e pela ocultação de informações por parte da população em geral e dos próprios burocratas.
Uma das “soluções” de Stalin consistiu em reforçar a um nível extremo a autoridade do gerente de fábrica. O que facilitou enormemente o desenvolvimento da corrupção e das relações clandestinas interempresas, que se transformaram numa verdadeira economia paralela, funcionando ao lado da planificada e fora de controle.10Sobre a fragmentação do sistema soviético em “economias” em conflito, ver Gérard Roland, Économie politique du Système soviétique (L’Harmatan, Paris, 1989). L. Kaganovitch deu o tom, quanto às relações de mando na fábrica, com uma frase célebre, de um discurso de 1934: “A terra deve tremer quando o edinonatchalnik entra na fábrica.” O termo edinonatchalnik (“chefe único”) passou a ter o sentido de “diretor de fábrica” sob Stalin.11Moshe Lewin, op. cit., p. 361.
Outra “solução” stalinista foi a criação do movimento dos udarniki (“trabalhadores de choque”), buscando formar uma elite de trabalhadores eficientes melhor remunerados. Mas a própria burocracia, que não podia basear o cumprimento de suas obrigações para com o plano apenas por meio dos udarniki, encarregou-se de falsificar os fatos e depois boicotar essa ideia de Stalin. A aventura de Alexander Stahanov (o modelo do movimento stahanovista), montada em 1935, foi uma farsa.12Ver o estudo de J.P. Depretto, baseado em testemunhos dos anos 1930, “Le Record Stakhanov”, in L’industrialisation de L’URSS dans les Années 30, Charles Bettelheim, org. (Éditions de L’École des Hautes Études en Sciences sociales, 1982).
É de confusões decorrentes de informações distorcidas, quer pela propaganda stalinista, quer pela perplexidade dos economistas burgueses que Mário Pedrosa tira sua conclusão pela superioridade do estatismo soviético:
“Do êxito da industrialização não surgiu o socialismo, naturalmente, mas uma nova organização econômica mais adiantada, sob muitos aspectos, do que o capitalismo ocidental, isto é, uma ordem social baseada na propriedade do Estado.”
Entretanto, o futuro visualizado a partir dessa caracterização da organização econômica soviética como “mais avançada” era sombrio. Pois a organização econômica vista como mais avançada era, no caso, também a mais despótica. Acrescente-se a isso a afirmação de que o próprio capitalismo ocidental seguira os passos da URSS na marcha para o capitalismo de Estado, num processo de agravamento da exploração da mão de obra. Parecia que a marcha da humanidade para uma sociedade orwelliana era inevitável.
O aspecto terrível desses prognósticos – que eram muito da época; e não só de Mário Pedrosa – é a inclusão da exploração econômica do trabalho forçado em larga escala como forma “normal” da evolução histórica. E fazia parte desse tipo de atitude procurar friamente apenas as razões econômicas do fenômeno, em vez de condená-lo. Aliás, isso fazia parte da aceitação de sua inexorabilidade:
“As explorações de minas na região polar, de carvão, cobre, ouro, a extração de madeira, construção de navios, pescarias, criação de indústrias novas nas regiões mais inóspitas e terríveis não podem ser feitas satisfatoriamente com trabalhadores livres, pagos em dinheiro.”
E, mais além:
“O Japão cansou de fazer isso. É mesmo um fenômeno que tende a tornar-se um traço distintivo do capitalismo de Estado na sua forma mais absoluta.”
A barbárie do capitalismo no período fascista, que tinha sua contrapartida na brutalidade do regime stalinista, era assim fixada e projetada para o futuro.
O que Mário Pedrosa não via em 1946 é que a derrota do fascismo na guerra havia criado uma relação de forças favorável aos trabalhadores no mundo capitalista. Fato que inviabilizava não só a prática do trabalho forçado pelos patrões, como os obrigava a conceder as políticas econômicas que deram origem ao Estado de bem-estar na Europa ocidental e à “sociedade afluente” nos EUA.
Tal erro não era próprio de Mário Pedrosa. O Plano Marshall ainda não havia sido lançado e simplesmente ninguém tinha certeza de que o capitalismo voltaria a firmar-se na Europa. E mesmo os inimigos da URSS acreditavam então que a planificação econômica centralizada tinha algo de mais eficiente do que o capitalismo, embora lhe criticassem o “autoritarismo”.
Esse é o fato fundamental: apesar de todos os problemas, a URSS de 1946 era vista por todos como tendo algo superior ao capitalismo.
Hoje os defensores do capitalismo respiram aliviados com a queda da URSS e cantam o “fim da história”.
Os que se servem da metodologia marxista, entretanto, não têm como ver na queda da URSS uma prova de eternidade do capitalismo. Para estes, o que ficou claro é que não pode haver construção do socialismo com base em relações de lealdade pessoal e no terror. Isso não apenas nada tem a ver com socialismo como é economicamente inviável. Hoje, depois do desastre consumado, isso nem requer esforço de demonstração. O que falta ainda é explicar como a grande Revolução de Outubro pôde evoluir para o regime aberrante dos anos 1930.
A humanidade não se coloca problemas que não pode resolver, mas isso não quer dizer que a solução seja encontrada em todas as tentativas.
Seria um grave erro condenar a Revolução de Outubro juntamente com o sistema que pretendeu representar sua continuidade. Mais grave ainda, porém, é insistir em apresentar o “socialismo real” como uma alternativa válida para o capitalismo.
É absolutamente necessário condenar e demonstrar a irracionalidade do sistema instaurado por Stalin na URSS. Tal orientação carrega consigo a responsabilidade de clarificar o processo que levou ao surgimento desse sistema a partir da Revolução de 1917. Mas é uma responsabilidade que os defensores do marxismo não podem evitar.
Pois o caminho de superação da barbárie capitalista deve parecer óbvio para qualquer um. Assim como parecia óbvio em 1946 que o capitalismo não conseguira superar a crise que atravessava.
À medida que o neoliberalismo atual for produzindo seus frutos, novas ideias e formas de luta contra o capital aparecerão. Se então os marxistas não tiverem mais cadáveres a esconder, terão novamente o mundo inteiro a seu favor.
Vito Letizia, agosto de 1997
NOTAS
1. Veja-se, por exemplo, o reconhecimento da eficácia da planificação russa por um economista da importância de Joseph Schumpeter em Capitalismo, Socialismo e Democracia, de 1942, e mesmo de um expoente do pensamento econômico liberal como Paul Samuelson, em sua Introdução à Análise Econômica, de 1951 (editada em português pela Editora Agir, do Rio de Janeiro, em 1952). E no Brasil, Roberto Simonsen, fundador do Centro das Indústrias de São Paulo (futura Fiesp), defendia uma industrialização planificada pelo Estado, em sua célebre polêmica de 1944 com Eugênio Gudin.
2. La Révolution bolchevique (Editions de Minuit, Paris, 1969).
3. Ver Alec Nove, L’Economie soviétique (Economica, Paris, 1981): em 1973, a URSS investia no campo cerca de cinco vezes mais que os EUA (p. 146), para obter como resultado que cada rublo de produto agrícola custasse 1,15 rublo ao Estado, segundo o próprio “Pravda”, citado pelo autor (p. 166). Quanto à persistência do baixo padrão de vida no campo, ver p. 153. E também Abel Aganbeguian, Revolução na Economia soviética (Edições Europa-América, Lisboa, 1988, capítulo I).
4. “Pour nourrir les Villes, Il fallait d’urgence pendre aux koulaks le pain quotidien. On ne le pouvait que par la force.” Trotsky, La Révolution trahie (Editions de Minuit, Paris, p. 31). No mesmo texto (p. 34), Trotsky reconhece que as vítimas da repressão no campo foram “milhões”, quantidade absurda de “abastados” para a Rússia rural daquela época.
5. Ver Moshe Lewin, La Formation de Système soviétique (Gallimard, Paris, 1985, p. 174 e segs.).
6. Ver Marie Lavigne, Les économies socialistes (Armand Colin, Paris, 1979, p. 33).
7. Ver Moshe Lewin, op. cit., p. 258 e segs.
8. Trotsky, op. cit., p. 173.
9. Ver Moshe Lewin, op. cit., p. 357. Quanto ao péssimo funcionamento do comércio soviético, ver Alec Nove, op. cit., p. 315 e segs.
10. Sobre a fragmentação do sistema soviético em “economias” em conflito, ver Gérard Roland, Économie politique du Système soviétique (L’Harmatan, Paris, 1989).
11. Moshe Lewin, op. cit., p. 361.
12. Ver o estudo de J.P. Depretto, baseado em testemunhos dos anos 1930, “Le Record Stakhanov”, in L’industrialisation de L’URSS dans les Années 30, Charles Bettelheim, org. (Éditions de L’École des Hautes Études en Sciences sociales, 1982).