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A grana que ergue e destrói coisas belas

Nas fotos, casais e amigos sorridentes tomam cervejas às mesas instaladas em calçadas diante dos bares. Seriam cenas comuns, exceto pelo fato de que do outro lado da rua funcionava a sede da Gestapo, a polícia política de Adolf Hitler. As fotos registram momentos da vida cotidiana em Munique, berço do nazismo, entre os anos 1930 e 1940, e são mostradas numa exposição organizada pelo Museu do Nazismo, recentemente aberto na cidade. A indagação suscitada pelas fotos é imediata: os sorrisos, os gritos de festa, a comemoração típica de qualquer “cervejada”, quando contrastados com o símbolo da Gestapo tornam-se outra coisa: aquelas pessoas tinham o direito de festejar ali, daquela forma, ignorando solenemente o horror, a brutalidade praticada em câmaras de tortura situadas a menos de 200 metros de suas mesas?

Sim, tinham, de um ponto de vista meramente formal, assegurado pela Constituição de seu país. Mas não tinham esse direito do ponto de vista dos princípios civilizatórios consagrados pela humanidade, ao longo de milênios, durante os quais milhões e milhões de vidas foram ceifadas em guerras e conflitos, princípios sintetizados por Kant na fórmula do “imperativo categórico”. Cada ser humano, diz Kant, deveria agir como se orientado por uma lei universal, válida para ele próprio e para todos os outros; o fim de cada ação deveria ser o de preservação da humanidade, tanto a do próprio sujeito que a pratica quanto a dos outros a quem afeta; finalmente, cada ser deveria ter em mente o bem universal.

Não se trata, aqui, de um simples conjunto de normas morais, mas de um norte político, uma bússola que deveria orientar o erguimento das instituições que dariam forma a um novo tipo de Estado. Kant, precursor do Iluminismo, estava preocupado com os desafios colocados pela construção de um novo mundo, erguido sobre os escombros do absolutismo. Aplicado à vida das nações, o imperativo categórico kantiano construiu o conceito da “paz perpétua”, que poderia e deveria ser conquistada por meio da interlocução como forma de resolver os conflitos, conceito que está na base da criação da ONU.

Se o direito formal dos indivíduos conflita, eventualmente, com os princípios civilizatórios (respeito às diferenças, à liberdade do outro, à dignidade da vida humana, a rejeição às mais distintas formas de opressão, a condenação peremptória do recurso ao racismo e quaisquer outras formas de discriminação), há algo de profundamente equivocado na equação. O direito formal não pode ser entendido como um absoluto. Existem situações em que os princípios que asseguram a coesão civilizatória interpelam o direito formal, e sobre ele ganham relevância, se e quando o que se pretende é a construção de uma sociedade mais justa e solidária, e não a utopia reacionária e estúpida preconizada por Margaret Thatcher, para quem não existia a sociedade, mas indivíduos fragmentados, isolados uns dos outros e enclausurados nas suas “redomas de direitos”.

Qualquer forma de conivência com a violência do Estado contra grupos ou minorias, pelo simples fato de se identificarem ou de serem identificados como grupos ou minorias, seja por meio da colaboração ativa ou do silêncio cúmplice, constitui, por si só, um ataque ao estatuto do humano. O que se afirma aqui, em síntese, é que nenhum alemão tinha o direito de dizer que “não sabia” o que se passava em Auschwitz, assim como nenhum brasileiro tem hoje o direito de declarar sua ignorância sobe o morticínio praticado pela PM nas periferias de São Paulo, Rio de Janeiros e outras cidades do país. Os fatos estão aí estampados em todos os lugares. A declaração de ignorância é o atestado mais grotesco de cumplicidade. E aqueles que são cúmplices de crimes contra a humanidade devem responder por isso, mesmo que acobertados pelo manto do direito formal – Adolf Eichmann, um dos arquitetos do holocausto, alegava inocência: dizia apenas ter cumprido ordens do Reich, era um bom alemão que acatava as leis de seu país.

Claro que os alemães que tomavam cerveja diante da sede da Gestapo não tinham, apenas por isso, o mesmo grau de responsabilidade de Eichmann. As responsabilidades devem ser devidamente medidas. Os brasileiros que, alegremente, se deixaram hipnotizar pela Copa do Mundo de 1970 não podem ser responsabilizados pela prática do assassinato, desaparecimento e tortura dos presos políticos da ditadura. Mas isso tampouco isenta o torcedor da obrigação de lutar contra a prática da tortura e do assassinato político, que atingiram um momento de auge durante o governo de Emílio Garrastazu Médici. A preocupação cotidiana com o próprio emprego, com a família, com os infinitos pequenos problemas que cada um tem que resolver a cada 24 horas não serve de álibi, não justifica a indiferença para com os massacres do passado, praticados pela ditadura, ou os atuais, nas periferias do Brasil.

A “obrigação de lutar”, novamente, é imposta pelos princípios civilizatórios, sem os quais nada mais faz sentido, tal como proposto pela terrível e absolutamente pertinente constatação de Theodor Adorno: depois de Auschwitz, tornou-se impossível fazer poesia. Todas as grandes conquistas culturais da civilização germânica – de Goethe e Bach a Nietzsche e Freud, passando por Hegel e Marx – sucumbem, impotentes, face à besta nazista. Se a convivência com o mal produz, como anestésico, a sua banalização, como queria Hannah Arendt, a “obrigação de lutar” surge como um antídoto necessário. Ninguém está acima dessa obrigação, pois ela é o tributo cobrado pela própria civilização. O que resta para além disso são os escombros produzidos pela barbárie.

“Eu sou eu e minha circunstância”, dizia Ortega y Gasset, “e se não salvo a ela, não me salvo a mim”. É disso que, no final das contas, se trata. “Eu” não posso ser entendido como uma realidade meramente biológica, nem me esgoto nos limites jurídicos de um ser autônomo e separado do resto do planeta por um número de RG e CPF. “Eu” sou “eu e minha circunstância”, e esta é configurada por um mundo que começou a me construir como eu sou antes mesmo de minha existência biológica: os pais projetam os seus sonhos e decidem os nomes dos filhos e filhas quando estes ainda são fetos; o ser que nasce, de carne e osso, apenas preenche um espaço simbólico já aberto, construído e definido pelos pais (e, ainda mais amplamente, também pelos familiares mais distantes, pelo amigos, pelas características sociais, culturais, históricas, religiosas e ideológicas em vigor na época). Nesse sentido, “eu” só posso existir como parte do mundo, ao qual pertenço e com o qual transaciono por meio da linguagem, que tampouco fui “eu” que criei, mas que, ao contrário, continuamente me cria. “Eu” só posso existir como um legado do mundo.

Daí ser completamente equivocada a ideia liberal vulgar segundo a qual “a minha liberdade termina onde começa a liberdade do outro”. Errado. A “minha liberdade”, como uma construção do mundo em que vivo, só pode existir se também existir a liberdade do outro que compartilha o mundo comigo. Certos estavam os jovens de 1968, que pichavam os muros de Paris com a afirmação de que “a minha liberdade mais a tua conduzem ao infinito”.

É sobre esse pano de fundo que se deve debater o furo ao boicote planetário a Israel, consciente e deliberadamente anunciado por Gilberto Gil e Caetano Veloso. Não se trata de saber se eles têm ou não o direito formal de aderir ou não ao boicote. Têm. Isso é o de menos. O problema é que o exercício desse direito se choca contra um consenso universal: o de que o Estado de Israel pratica o apartheid contra a população árabe palestina, tanto dentro de Israel quanto nos territórios ilegalmente ocupados pelo Estado sionista. O apartheid é inaceitável, sob qualquer ponto de vista. O boicote, por outro lado, vem se demonstrando a arma mais eficaz contra o sionismo, a ponto de Beniamin Netanyahu considerá-lo mais perigoso para o futuro de Israel do que a suposta bomba atômica iraniana.

Gil e Caetano, ao furar o boicote, fizeram uma escolha moral e politicamente insustentável. Mas não se equiparam aos alemães anônimos que tomavam cerveja diante da Gestapo. São muito piores, pois os seus gestos, como personalidades públicas, mandam uma mensagem para o resto do planeta: interrompam o boicote. E mais ainda: os alemães anônimos ainda poderiam alegar que nada tinham a fazer, face à máquina de um Estado totalitário e terrorista. Gil e Caetano não enfrentam ameaça alguma. Na Alemanha nazista, resistir a Hitler significaria morte certa; hoje, o máximo que se pede é que deixem de arrecadar mais alguns dólares para as suas já imensamente gordas contas bancárias. O fato de Gil e Caetano furarem o boicote não os torna sionistas; são piores do que isso: sionistas sinceros – e os há, sem dúvida, como há de tudo no mundo – agem motivados por convicções políticas, morais, ideológicas; os dois baianos aceitaram cumprir o baixo papel de fura-boicote por vantagens pecuniárias.

Basta ler a entrevista de Gil ao Estado de S. Paulo para verificar como a opção se reflete na linguagem. Durante a entrevista, Gil menciona as “práticas discutíveis” do Estado israelense para com o povo palestino. Apartheid, assassinato em massa de crianças e mulheres, invasão de terras, opressão nacional e discriminação étnica, racial e religiosa viraram, subitamente, “práticas discutíveis”. De fato, a grana serve para muita coisa, além de erguer e destruir coisas belas.

Publicado em:Palestina

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