Há cerca de dois anos as principais lideranças políticas europeias se comprometiam com uma estratégia econômica, para enfrentar os impactos da crise “americana”, baseadas na ideia de que a austeridade fiscal e a depreciação interna de salários resolveriam os problemas dos Estados nacionais endividados.
Tal formulação – defendida por Merkel, secundada por Sarkozy – se fundamenta na convicção de que a crise ganhou terreno e profundidade em função da atuação irresponsável dos governos do sul da Europa, pela recusa obstinada destes em aceitar sua existência (Zapatero e Berlusconi) combinada com a aceleração do processo de comprometimento de parte dos orçamentos nacionais em iniciativas de redução dos impactos sociais da crise (seguro-desemprego; ampliação das ações da rede de proteção social para com os segmentos mais fragilizados; subsídios à atividade industrial e de serviços).
A velha cantilena de uma oposição entre o NORTE laborioso e pragmático em relação ao SUL preguiçoso e inconsequente se converteu em prato forte dos sucessivos e cada vez mais frequentes debates nas instituições europeias, bloqueando um diagnóstico preciso de responsabilidades (Quem ganha com a crise? Quem deve perder?) e reforçando o cenário de dispersão e desorientação da cidadania e dos movimentos sociais que resistiam à contínua degradação das condições de vida das populações afetadas. Travar batalhas contra um inimigo que não se identifica é convite certo para derrotas, isolamento e desmoralização da capacidade de resistência. Ainda mais num cenário em que as organizações políticas e sindicais tradicionais dos trabalhadores e da juventude ou silenciavam (Alemanha, França) ou esboçavam singelos protestos contra as demissões e cortes sociais em curso (Espanha, Portugal, Itália).
O exemplo da cidadania islandesa de rejeitar a submissão do país aos ditames e determinações do mercado financeiro é desprezado. Trata-se de uma pequena nação, sem maior significância econômica, e que insiste em não aceitar a tutela das instituições financeiras globalizadas. Questões de soberania nacional e de respeito ao ordenamento jurídico e institucional são secundárias quando se trata de redesenhar o mapa econômico da velha Europa, ajustando-o à nova ordem internacional. O desmonte do Estado de bem-estar social nos países periféricos do sul obedece a uma lógica determinada pelo mercado, e implementada a partir do eixo Berlim-Paris. Trata-se de adequar estes países ao fornecimento de serviços (turismo, em especial), produtos agrícolas e mão de obra com qualificação/formação cultural em substituição ao contingente de imigrantes provenientes da África e do Oriente próximo (fonte de instabilidade social permanente, em especial na Alemanha, Inglaterra e França).
A destruição do tecido econômico e social nessa periferia (que os ingleses denominam, não sem alguma ironia, de PIGS) é a conta necessária a ser paga pelo trem europeu para se inserir como fornecedor de produtos e soluções de alta tecnologia. Trata-se de um retorno aos anos 1960, onde é necessário que o NORTE laborioso e produtivo reduza custos (o custo Europa), destrua forças produtivas (os tecidos industriais do sul) e disponha assim de melhores condições de encaixe na nova ordem: se à China cabe a produção de produtos industriais que entopem as lojas e mercados do mundo; aos EUA corresponde o papel de financiador e consumidor de tais bens; aos países do norte europeu a produção de alta tecnologia; e às periferias (inclusive a nossa) caberá a produção de alimentos e produtos primários. A mensagem é clara e sua lógica bastante simples: não há lugar para todos na primeira classe desse trem que se chama Europa e os povos do sul europeu devem disputar um lugar nos vagões de carga com o restante da imensa maioria da humanidade.
Em Berlim podemos ouvir o som do silêncio, afinal a economia alemã cresce.
Passados dois anos e com cerca de 14 milhões de trabalhadores sem emprego, pode-se fazer uma avaliação dos resultados concretos das ações de combate à crise implementadas por Merkel-Sarkozy:
- na Grécia os cortes salariais se fixaram num patamar médio de 40%-50%; a elevação do imposto de consumo (IVA) levou à bancarrota os pequenos e médios negócios responsáveis por 55% de toda a atividade econômica; o desemprego está em 23% e entre os jovens com menos de 25 anos, em cerca de 50%; o país está em seu quinto ano de recessão;
- na Irlanda houve cortes nas aposentadorias, redução drástica do contingente de funcionários públicos (8% demitidos neste ano, de um contingente de cerca de 300 mil); aumento do IVA para 23%; o país segue em recessão;
- em Portugal foi imposto um tarifaço para os serviços públicos; consultas médicas em hospitais públicos passaram a ser cobradas (5 euros/consulta); o IVA foi elevado para 21%; o país segue em recessão com um desemprego crescente e já no patamar de 15%;
- na Espanha o IVA subiu para 21%; as aposentadorias serão reduzidas; redução do seguro-desemprego a partir do sétimo mês de cobrança; cortes orçamentários de 600 milhões de euros, em especial nos setores de saúde e educação; o país segue em recessão e a taxa de desemprego está em 25%;
A esta listagem poderíamos incorporar as iniciativas de “ajuste” postas em curso na Itália, na França, na Inglaterra e na Alemanha. Em maior ou menor grau se percebe uma lógica precisa nas iniciativas: corte de benefícios sociais, redução de salários e desemprego.
Convém salientar a preparação acelerada de planos de privatização nos setores de serviços, em especial para o transporte público, a educação e a saúde.
Em todos os Parlamentos nacionais onde estas medidas foram decididas, temas como a subida de impostos para as grandes fortunas, redução da jornada de trabalho, elevação direcionada de impostos (álcool e tabaco, por exemplo) e definição de iniciativas de crescimento econômico, ou foram bloqueadas ou diretamente derrotadas.
Há um claro processo de canibalização da riqueza nacional: os países não conseguem sair da crise, seus Estados arrecadam menos (apesar da elevação de impostos e criação de tarifas), em função da anêmica situação da indústria e do consumo, colocando todo o mecanismo econômico num giro em vazio, com a economia nacional sendo devorada pelos sucessivos cortes e pelo pagamento dos serviços da dívida. A “Europa dos povos” desmorona e se converte em pasto do capital financeiro.
Em Berlim, capital do NORTE laborioso e produtivo, a economia cresce moderadamente, o desemprego está sob controle e a liquidez de seu sistema financeiro, atestada pelas agências de qualificação, segue quase inabalável. Num gesto simbólico e de extrema solidariedade, algumas empresas definem cotas para a contratação de engenheiros e especialistas do sul em crise; o país colabora como pode no esforço de privatização posto em marcha ao sul. Convivendo com a Kaiser de todos os alemães, podemos observar como os sindicatos, a social-democracia e os verdes suportam com discrição e olhar distante o que se passa na sua velha Europa. Quão avassalador é o silêncio das outrora poderosas e solidárias organizações dos trabalhadores e da juventude alemã.
Rupturas
Diferentemente do ocorrido na Itália, na França de Sarkozy ocorrem eleições periódicas e a cidadania participa de forma moderada dos pleitos. Sarkozy, fiel espadachim da Kaiser alemã, numa tentativa desesperada de se manter na direção do Estado francês, alertava para os riscos da nação de se converter numa Espanha, com a eventual vitória do PS de Hollande. Sem dúvida algo bastante assustador, dada a situação econômica do país vizinho, cuja população decidira castigar nas urnas a incapacidade catatônica do PS de Zapatero em gerir a crise, entregando o poder de Estado para o PP (Partido Popular, de direita). Contudo o eleitorado francês não cedeu a tais argumentos e, além de eleger Hollande para a Presidência, o dotou de ampla maioria parlamentar, tanto na Câmara dos Deputados como no Senado. Esta vitória esmagadora corresponde a uma resposta muito clara e precisa da cidadania francesa em relação à forma como a crise tem sido enfrentada pelas direções políticas e à expectativa de que possam ser construídas alternativas a um processo perturbador de desmonte do Estado de bem-estar social e a necessária retomada do crescimento econômico.
O PS de Hollande, com seus 218 mil filiados, não se constitui em fenômeno político resultante da crise (como ocorreu na Grécia com o Syriza), mas sim de uma corrente enraizada historicamente – com uma profunda e ampla penetração na sociedade francesa, em particular junto aos trabalhadores, jovens e setores médios da sociedade –, pilar da República e do Estado de bem-estar social. E que agora, governando os destinos da nação com ampla maioria, dispõe de um mandato popular que pede ruptura com os acordos Merkel-Sarkozy.
É nesta condição e com essa expectativa que a França passa a ocupar um lugar absolutamente central na crise europeia. Trata-se de uma possibilidade real de poder buscar soluções políticas – a partir do coração da Europa – a uma crise que vinha sendo tratada até então em absoluta conformidade com os interesses materiais do mercado.
Ao imperioso dreno da riqueza das nações visando honrar os compromissos assumidos perante os bancos de investimentos americanos e os fundos de alto risco – sempre tão ansiosos e nervosos em receberem os dividendos de seus investimentos – Hollande contrapõe a necessidade de retomada do crescimento econômico. É uma mudança importante em relação ao discurso de seu antecessor, e um sinal de alerta claro para o mercado e para Merkel de que há fissuras no até então aparentemente bloco monolítico que esta dirigia. Na reunião do Conselho da Europa, de forma tímida, a Kaiser pela primeira vez reconhecia a necessidade de rever a política de ajuste fiscal, com responsabilidade e com contrapartidas. Uma concessão retórica, pois para resolver a insolvência da parte podre de seu sistema financeiro (as caixas econômicas recém-estatizadas) a Espanha pleiteava 65 milhões de euros e acabou na prática tendo que realizar cortes fiscais como contrapartida ao recebimento de tal montante. Nesse primeiro “embate” as distintas retóricas convergiram na ação concreta, mais cortes, mais recessão.
A vitória de Hollande terá um impacto profundo nos diversos e distintos movimentos sociais que se opunham ao modelo vigente de gestão da crise, tanto dentro da França como para além de suas fronteiras, onde resistir à quebra do Estado de bem-estar deixou de ser uma abstração para se converter no cotidiano na vida de milhões de trabalhadores e jovens. Tornou-se uma questão de sobrevivência física diante de um futuro ameaçador e sem perspectivas.
É inevitável que os diversos e distintos movimentos sociais que resistem e combatem a crise de forma local e dispersa (no âmbito regional ou nacional) se referenciem nos acontecimentos imediatos e futuros na França e no papel que desempenharão Hollande e seu PS.
A dinâmica dos acontecimentos segue demonstrando a ausência de respostas efetivas para resolver a crise. Hollande não ofereceu propostas concretas, mas consignas, contudo após a “queda” da Espanha e da Itália, será na velha Gália que o capital financeiro testará a disposição do dirigente em dar um passo adiante. Não seria pouca coisa para os movimentos sociais se passassem a ser, de fato, ouvidos e considerados na tomada de decisões.
A ilusão de Europa
Há pouco mais de cem anos, pensadores, artistas e otimistas de toda a espécie constatavam que a Europa viveria um glorioso período de prosperidade, apagando de vez as velhas rivalidades nacionais. Estavam na antessala da primeira grande guerra, e todo o talento destes homens foi incapaz de perceber o desastre que se avizinhava.
Não seria cegueira e estupidez desconsiderar a possibilidade de que estejamos diante de um novo desastre, com a destruição de forças produtivas no continente europeu, como etapa necessária e lógica de perpetuação dos interesses de preservação do capital?
Na primeira foto, Merkel e Sarkozy estão no Congresso de 2011 do Partido Popular Europeu (PPE), em Marselha (site do PPE, 8/12/2011). Na segunda, Hollande faz campanha em Reims, na eleição que disputou com o lema “A mudança é agora” (Garitan, Wikimedia Commons, 8/3/2012).