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O golpe no Paraguai

No plano das aparências mais externas, a deposição sumária do presidente Fernando Lugo, decidida em menos de 36 horas, entre 21 e 22 de junho, foi consequência da morte de 17 policiais e trabalhadores rurais, em tiroteio durante um despejo de sem-terras em uma fazenda de Curuguaty, cuja propriedade é disputada pelo Estado e o latifundiário Blas Riquelme, ex-presidente do Partido Colorado. Entre os 17 mortos está Erven Lovera, chefe do Grupo Especial de Operações (GEO), treinado por oficiais dos Estados Unidos em operação nos marcos do Plano Colômbia (detalhe que não é secundário, como se verá um pouco mais adiante).

Em segundo plano, não tão visível, mas ainda assim bastante óbvio para qualquer observador minimamente atento, o impeachment foi resultado de uma articulação da direita paraguaia, incluindo os tradicionais rivais “colorados” e “liberais”, para afastar da Presidência um “estranho no ninho”: Lugo era um bispo formado pela Teologia da Libertação e eleito, em 2008, por uma vasta frente de organizações e grupos políticos que percorriam todas as faixas do espectro ideológico, de movimentos sociais e de indígenas ao Partido Liberal (representado pelo vice de Lugo, Federico Franco, o qual assumiu a Presidência após a deposição do titular).

A direita tentou depor Lugo em várias ocasiões, não tanto por temer suas propostas e ações políticas, mas muito mais por julgá-lo incapaz de conter, reprimir e silenciar os movimentos sociais que ameaçam o latifúndio. O ex-general Lino Oviedo, ex-cacique Colorado, é apontado como um dos arquitetos do golpe. Oviedo comandou uma tentativa de golpe que resultou no assassinato do vice-presidente Luis Maria Argaña, em 23 março de 1999. O então presidente Raúl Cubas foi deposto, sob suspeita de envolvimento, e buscou refúgio no Brasil. Em 2008, Oviedo foi finalmente inocentado, passando a articular a oposição a Lugo, com o objetivo declarado de eleger-se presidente.

Finalmente, o impeachment de Lugo atendeu plenamente aos interesses de Washington, tanto do ponto de vista de sua estratégia global para a América Latina e o Caribe, quanto do ponto de vista dos interesses comerciais, financeiros e energéticos imediatos representados pela ação das transnacionais no país. O golpe foi, sem dúvida, abençoado pelo Vaticano, o primeiro Estado a reconhecer a legitimidade do novo governo, antes mesmo de Washington tê-lo feito.

Esquematicamente, os arquitetos do golpe no Paraguai e seu objetivos são os seguintes:

  1. O imperialismo estadunidense e interesses associados:
  • Assegurar a existência de um governo dócil às exigências da instalação de uma base militar dos Estados Unidos no Paraguai, na região do Chaco, em área próxima à Tríplice Fronteira (entre Brasil, Argentina e Paraguai);
  • Garantir os investimentos de transnacionais que atuam no país, principalmente na exportação de soja, energia e prospecção de petróleo e gás  (Monsanto, Crescent Global Oil, Rio Tinto Alcan e outras);
  • Criar um foco de ação imperialista diretamente vinculado ao Departamento de Estado no âmbito do Mercosul;
  • Dar novos desdobramentos a um plano geral de intervenção na América Latina e Caribe, iniciado pelo Plano Colômbia, com Bill Clinton, no final dos anos 1990, passando pelo golpe que depôs Manuel Zelaya em Honduras (em 2009).
  • Para o Vaticano, que agiu como um braço do imperialismo (foi o primeiro a reconhecer a legitimidade do novo governo), tratou-se de golpear a Teologia da Libertação, da qual Lugo é representante, nos marcos de uma ofensiva global orquestrada pela Opus Dei (que ocupa o lugar dos “bolcheviques” do Vaticano), e de enviar um recado à Igreja Católica latino-americana, ainda não suficientemente alinhada às diretrizes de Ratzinger.

2. Os latifundiários e empresários paraguaios:

  • Recuperar o poder exercido desde sempre pelas elites, em particular, durante seis décadas, pelo Partido Colorado de Alfredo Stroessner (no poder entre 1954 e 1989);
  • Brecar qualquer processo, ainda que mínimo, de concessões aos movimentos que lutam por terra, em nome dos interesses dos 2% de proprietários que controlam 85% das terras (incluindo os “brasiguaios”);
  • Manter a garantia do uso de sementes transgênicas;
  • Apresentarem-se como interlocutores privilegiados dos Estados Unidos, fazendo todas as concessões possíveis e imagináveis, para compensar em termos geopolíticos e políticos o que não podem oferecer em termos econômicos;
  • Assestar um golpe profundo e histórico nos movimentos de esquerda, em particular os “carperos” (camponeses sem terra que vivem em “carpas”, barracas).

O golpe também produziu um realinhamento de forças, provavelmente inesperado para Washington e os golpistas, no âmbito do Mercosul e da Unasul, como veremos posteriormente.

I – O Paraguai e a ação geopolítica do imperialismo estadunidense

Sem pretender desenvolver aqui uma história detalhada da estratégia geopolítica contemporânea dos Estados Unidos para a América Latina – estudo, aliás, importante e necessário –, basta assinalar que ela teve seu início nos anos 1980, durante o governo Nixon, quando o Departamento de Estado criou o conceito de “narcoterrorismo”. Em nome do combate às organizações e grupos que, supostamente, associavam o narcotráfico a atividade terroristas – o que incluía, evidentemente, todas as organizações guerrilheiras anti-imperialistas e movimentos sociais de camponeses e indígenas –, a Casa Branca passou a promover a militarização da região amazônica, e a ação cada vez mais desenvolta e ofensiva de agentes da CIA, do DEA e do FBI nos países da região. Sequer o escândalo “Irã-Contras”, que eclodiu em 1987, evidenciando a participação ativa da CIA no narcotráfico que dizia combater, foi suficiente para impedir ou mesmo atenuar as dimensões da “guerra ao narcoterrorismo”.

O Plano Colômbia, arquitetado por Bill Clinton, foi lançado oficialmente em agosto de 2000. Seu principal efeito foi o de transformar a Colômbia na “Israel da Amazônia” – os Estados Unidos ali instalaram sete bases militares, onde treinam soldados, policiais, investigadores e agentes secretos, com a participação de militares israelenses que transmitem sua experiência de luta urbana adquirida na repressão ao movimento palestino (as operações nos morros do Rio de Janeiro contam com instrutores, armas e blindados fabricados em Israel). A ideia original era a de expandir o Plano Colômbia para outros países da região amazônica, rebatizado com o nome de Iniciativa Andina, abarcando o Equador, a Bolívia e o Peru. Com a “guerra ao terror” deflagrada após o atentado de 11 de setembro de 2001, qualquer região da América Latina poderia ser, potencialmente, alvo da intervenção estadunidense, ostensiva ou “secreta”.

Um dos desdobramentos mais importantes desse processo seria a instalação de pelo menos uma base militar dos Estados Unidos na região da Tríplice Fronteira, e o “candidato” mais natural a servir de território era o Paraguai, por sua histórica fragilidade institucional, combinada com a absoluta subserviência de suas “elites”. Trata-se de uma localização estratégica para o controle de movimentações de qualquer natureza. As pressões do imperialismo para a construção de uma base naquela região atingiram um ponto de estridência máxima logo após o atentado de 11 de setembro. Segundo o Departamento de Estado, grupos islâmicos com sede na Tríplice Fronteira usavam “conexões” na região para financiar atividades terroristas. E quem seriam as “conexões”? Ninguém menos que as Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) e o ELN (Exército de Libertação Nacional da Colômbia).

Em 23 de setembro de 2001, o então subsecretário de Estado Marc Grossman denunciou uma “conexão” entre as Farc e o IRA (Exército Republicano Irlandês). Em 28 de setembro, Steven Monblatt, então assessor do secretário de Estado Collin Powell, declarou, em debate na OEA, que terroristas islâmicos sediados na Tríplice Fronteira financiam suas atividades “por meio do contrabando e do uso de instituições de caridade de fachada que tiram recursos de viúvas, de órfãos e de pessoas de boa-fé”. Logo depois, o “especialista sênior” Jack Sweeney afirmou que as Farc estariam traficando drogas e lavando dinheiro em conjunto com terroristas islâmicos na Tríplice Fronteira. Em 17 de outubro, o senador americano Zell Miller afirmou, no jornal Washington Post, que membros dos grupos Hamas e Hizbollah e de organizações ligadas a Osama bin Laden planejam novos ataques terroristas contra os Estados Unidos a partir da Tríplice Fronteira, uma “terra sem lei”. É inútil, neste ponto, prosseguir a extensa lista de citações. Nitidamente, Washington preparava as condições psicossociais para operações militares de grande escala no Cone Sul.

O Brasil era foco direto das pressões. Em 7 de novembro de 2001, Fernando Henrique Cardoso embarcou para Washington, com o objetivo de explicar a George Bush júnior a posição brasileira sobre o terrorismo. Levava o general Alberto Cardoso, então ministro do Gabinete de Segurança Institucional. Tio Sam não aprovou as declarações dos dois, logo após o atentado, segundo as quais não havia indícios de atividades terroristas no país. Tio Sam afirmava que a Tríplice Fronteira (Foz do Iguaçu e a região entre Brasil, Paraguai e Argentina) é um “santuário” do terror islâmico.

Encerrado o encontro com júnior, no dia 8, FHC afirmou não ter conversado nada sobre a Tríplice Fronteira: “Não existe preocupação do presidente Bush sobre segurança no Brasil. Essa preocupação é nossa.” Pena que o general Cardoso tenha admitido aos repórteres, na mesma ocasião, que debateu o assunto com os agentes da CIA, ainda que negando a existência de qualquer pressão sobre o governo brasileiro.

A pressão existia, era pública, ostensiva, humilhante e brutal: no mesmo dia 8, a rede CNN informou que a Tríplice Fronteira era um “paraíso para terroristas”, baseada em documentos das embaixadas dos Estados Unidos no Paraguai e na Argentina. Segundo a rede, duas mesquitas islâmicas localizadas em Foz do Iguaçu estariam envolvidas na arrecadação de recursos para o terror. No mesmo dia, a emissora entrevistou FHC. Ao apresentar o presidente, a jornalista da CNN declarou que “o Brasil está sob pressão para localizar extremistas islâmicos”. FHC, trêmulo, destituído da habitual empáfia, só conseguiu balbuciar não ter tratado “nada disso” com Bush.

Mas a “virada progressista” verificada nos anos 2000 frustrou, ao menos parcialmente, os planos da Casa Branca. No Equador, por exemplo, onde os Estados Unidos tinham a base de Manta, dotada do maior campo de pouso da América Latina, o presidente Rafael Correa recusou-se a renovar a licença para seu uso. Em tom bem humorado, disse que autorizaria os Estados Unidos a continuarem utilizando a base, se em troca a Casa Branca permitisse a construção de uma base equatoriana de iguais dimensões… na Flórida.

Mesmo no Brasil de Lula o imperialismo viu-se impedido de construir uma base militar em Alcântara, área considerada excelente, do ponto de vista geográfico, para o lançamento de foguetes e satélites. Justiça seja feita: Geraldo Quintão, ministro da Defesa de FHC, chegou a aprovar um contrato de instalação da base de Alcântara que sequer permitia às autoridades brasileiras fiscalizarem o conteúdo dos contêineres que entrassem e/ou deixassem o local. Nada de novo no front: afinal, FHC autorizou a abertura oficial de um escritório da CIA, em São Paulo, e em 31 de janeiro de 2002 seu ministro das Relações Exteriores, Celso Lafer, submeteu-se às ordens de um funcionário de alfândega do aeroporto de Miami, tirando os sapatos. Ora…

Em resumo, a base militar estadunidense só não foi instalada no Paraguai, no início dos anos 2000, porque havia um movimento intenso anti-imperialista em toda a América Latina (em particular, com a então recente eleição de Hugo Chávez, na Venezuela, situações de convulsão social na Bolívia e no Equador, crise total na Argentina e mesmo a eleição de Lula, com todas as ambiguidades que não podem ser aqui analisadas). No Paraguai propriamente dito, a situação política era altamente instável. Desde a deposição de Stroessner, por um golpe, nenhum governo conseguiu legitimar-se. A situação foi agravada pela já referida tentativa de golpe de Lino Oviedo, em 1999.

Não havia, portanto, um governo com poder e autoridade para autorizar a instalação da base estadunidense, em meio à vaga anti-imperialista que se expressava nos países vizinhos. A eleição de Lugo, em 2008, se deu um novo oxigênio à vida política paraguaia, jogou um novo balde de água fria nos planos estadunidenses de construção de uma base militar.

Não por acaso, no início de julho, quando ainda estavam sendo digeridas as notícias sobre o impeachment de Lugo, vários sites especializados em estratégia militar, citados pela rede Al Jazeera e outros meios, noticiaram que o Comando Sul do Exército dos Estados Unidos aprovou uma verba de US$ 100 milhões para construir uma pista de “drones” (aviões pilotados por controle remoto) no aeroporto de Resistencia, situado na região do Chaco paraguaio. São os mesmos aparelhos que fazem o “monitoramento” (e, eventualmente, bombardeiam vilas) no Afeganistão e no Paquistão.

II – O Paraguai e os interesses econômicos e diplomáticos dos Estados Unidos

O Mercosul sempre foi considerado uma pedra no sapato da política externa estadunidense, ainda que o bloco jamais tenha manifestado qualquer intenção de natureza nacionalista, anti-imperialista ou muito menos anticapitalista. Novamente, não se trata, aqui, de desenvolver uma história das relações diplomáticas entre Estados Unidos e os países abaixo da linha do Equador, mas de simplesmente assinalar que, historicamente, qualquer tentativa de desenvolver políticas nacionais minimamente autônomas e independentes dos desejos da Casa Branca encontrou total hostilidade por parte de Washington.

Basta lembrar, no Brasil, a tensão presente nas relações entre o segundo governo Vargas (criador da Petrobras e de outras grandes estatais) e Washington (cujo maior porta-voz no Brasil, Carlos Lacerda, conseguiu levar GV ao suicídio, em 25 de agosto de 1954). Até mesmo a revolução cubana já mereceu a condenação da Casa Branca em sua fase ainda nacionalista, nos anos 1959-1960, quando Fidel Castro e seus seguidores não falavam em socialismo. Não se trata, portanto, de uma oposição de natureza ideológica, mas de exigência, por parte dos Estados Unidos, de total alinhamento e subordinação das burguesias subalternas.

O Mercosul, com toda a covardia e sabujice dos governos associados, criou ruídos na estratégia de implantação da Alca (Aliança de Livre Comércio das Américas), anunciada no início dos anos 2000, com o objetivo de anexar os mercados latino-americanos ao mercado estadunidense. As burguesias dos países integrantes do Mercosul, em particular a brasileira, se sentiram no direito e com a capacidade de negociar sua subordinação ao capital estadunidense, conseguindo atrair para a sua esfera os governos da Bolívia, do Chile e, naturalmente, da Venezuela. Nesse quadro, ainda que o Mercosul não tenha se constituído frontalmente como um bloco de oposição à Alca, foi fortalecido como um polo de negociações, especialmente após a inserção do Brasil nos BRICS.

Paralelamente, a Venezuela de Hugo Chávez desenvolveu sua própria estratégia de articulação intergovernamental latino-americana e caribenha, organicamente representada pela Alba (Aliança Bolivariana das Américas), lançada em Havana, por Chávez, em dezembro de 2004, em oposição à Alca. Chávez, eleito pela primeira vez em fevereiro de 1999, preconiza o “bolivarianismo” – um conjunto de doutrinas e propostas políticas, econômicas e sociais que combina concepções vagamente socialistas a um ideário que procura resgatar uma suposta identidade cultural dos povos latino-americanos, a partir da imagem do “libertador” Simón Bolívar, herói das guerras de independência contra o Império Espanhol, no século XIX. Mediante o uso farto de petrodólares, Chávez arrastou para o “bolivarianismo” e para a Alba países menores e carentes de recursos (como a Nicarágua e Honduras, até o golpe que depôs o presidente Manuel Zelaya, em 2009) e até a Argentina (de quem comprou bilhões de dólares em títulos podres da dívida).

Um dos desdobramentos importantes desse processo de convergências foi a criação da Unasul (União das Nações Sul Americanas), em 23 de maio de 2008, com o objetivo de integrar numa mesma união aduaneira os países membros do Mercosul e da Comunidade Andina das Nações. Os Estados Unidos tentaram, sem sucesso, obter uma cadeira de membro pleno da Unasul. Essa situação de conjunto inviabilizou a estratégia da Alca, forçando os Estados Unidos a iniciar uma longa e penosa série de acordos bilaterais com países economicamente secundários.

Nesse quadro, a pior coisa que poderia acontecer, do ponto de vista da Casa Branca, seria a integração da Venezuela ao Mercosul. Até a data do golpe contra Lugo, o Senado do Paraguai tinha funcionado como peça chave para impedir sua entrada no Mercosul (de acordo com os estatutos da organização, a entrada de qualquer novo país tem que ser ratificada pelos Senados de todos os países associados). Ironicamente, a deposição de Lugo acelerou a entrada da Venezuela, graças à exclusão momentânea do Paraguai, por ter violado a “cláusula democrática” do Mercosul. Mais importante do que discutir se foi ou não legítima a exclusão temporária do Paraguai, é a percepção de que em situações excepcionais, associações “bizarras” como o Mercosul podem acabar desempenhando um papel inesperado na luta contra o imperialismo.

III – O Paraguai, o imperialismo e o latifúndio

O Paraguai é o país que ostenta o maior índice relativo de concentração da terra do planeta. De seus 40 milhões de hectares, 31 milhões (80%) são de propriedade privada. Os outros 9 milhões de hectares são ainda terras públicas situadas na região do Chaco, região de baixa fertilidade e pouca incidência de água. Apenas 2% dos proprietários são donos de 85% de todas as terras. Entre os grandes proprietários de terras no Paraguai, os fazendeiros estrangeiros são donos de 8 milhões de hectares (20% da área total, ou 25% da área privada). Segundo o censo paraguaio, em 2002 existiam 120 mil brasileiros no país sem cidadania. Desses, 2 mil grandes fazendeiros controlavam áreas superiores a mil hectares. Apenas um brasileiro beneficiado pela política de terras paraguaia, o fazendeiro Tranquilo Favero, possui mais de 1 milhão de hectares.

Um relatório produzido pela Comissão da Verdade e Justiça no Paraguai indica que durante os 35 anos da ditadura Stroessner e nos anos seguintes de governo colorado (até 2003), cerca de 8 milhões de hectares (20% do total do país) foram roubadas de camponeses e entregues a latifundiários e militares. Como observa João Pedro Stedile, dirigente do MST: “Não há paralelo no mundo: um país que tenha ‘cedido’ pacificamente para estrangeiros 25% de seu território cultivável. Dessa área total dos estrangeiros, 4,8 milhões de hectares pertencem brasileiros.”

De acordo com o último censo agropecuário, feito pelo Ministério da Agricultura, 1% dos proprietários concentram 77% das terras, ao passo que 40% dos pequenos agricultores (sítios de até 5 hectares) são donos de 1% das terras. Em contrapartida, na base da estrutura fundiária há 350 mil famílias, em sua maioria pequenos camponeses e médios proprietários. Cerca de 100 mil famílias são sem-terra. Um grande número de sem-terra brasileiros vivem como trabalhadores rurais.

Mas o dado mais significativo, do ponto de vista econômico, vem agora: a produção de soja para exportação tornou-se o principal motor da economia paraguaia, que ocupa hoje o lugar de quarta maior exportadora mundial do grão. Segundo dados da Câmara Paraguaia de Exportadores de Cereais e Oleaginosas (Capeco), a área plantada de soja passou de 1,2 milhão de hectares em 2000 para 3 milhões em 2012. Em 2010, o país obteve uma safra recorde de 7,2 milhões de toneladas. Detalhe: 90% da produção está nas mãos de latifundiários brasileiros, que trabalham sob contrato para as transnacionais Monsanto, Bayer, Syngenta, Dupont, Cargill e Bunge. Cerca de 90% dessa produção é de soja transgênica.

Ora, Lugo subiu ao poder com a promessa de realizar a reforma agrária. Mesmo não tendo cumprido nada do que prometeu, seu governo encorajou a Liga de Carperos e outros movimentos sociais e indígenas. Houve um processo crescente de ocupação de terras, que acabou desembocando no Massacre de Curuguaty, que deu o pretexto para o golpe. É evidente que essa situação era inaceitável para o capital transnacional associado ao latifúndio. Não por acaso, a primeira organização que solicitou formalmente o julgamento político de Lugo foi a União dos Grêmios Produtores (UGP), confederação dos sindicatos dos produtores rurais de soja e carne do Paraguai. “E hoje os setores de carne e soja requerem muita terra, e é justamente essa terra que está em disputa com os camponeses. A UGP, além dos produtores, exportadores de carne e outros grãos, também inclui as empresas que importam sementes, agrotóxicos e todas as ferramentas e máquinas para o processo de produção”, explicou o sociólogo Marco Castillo à revista Caros Amigos.

Mas nem só de soja e carne vivem os golpistas. No dia 27 de junho, escassos quatro dias após o golpe, o novo presidente manteve uma reunião com representantes da empresa Crescent Global Oil – Pirity Hidrocarburos, transnacional estadunidense especializada em prospecção, exploração e exportação de petróleo. Richard González, representante da empresa, declarou ao presidente Franco que desde 2006 a Crescent Oil investiu 10 milhões de dólares na prospecção de petróleo na região do Chaco paraguaio (onde, não por acaso, os Estados Unidos querem construir sua base). Segundo González, Franco garantiu apoio do governo às atividades da empresa.

Em 2 de julho, Franco autorizou o Ministério da Indústria e Comércio a iniciar negociações com a empresa canadense Rio Tinto Alcan, especializada na produção de alumínio, com o objetivo de acelerar a construção de suas instalações no Paraguai. Ora, a produção de alumínio demanda uma quantidade brutal de energia elétrica. O que se desenha é, no mínimo, uma alteração no modo como a energia gerada por Itaipu passará a ser distribuída dentro do Paraguai (certamente haverá elevação das tarifas, penalizando mais ainda os setores mais miseráveis da população), bem como o preço da energia exportada para a Argentina e para o Brasil.

Finalmente, o ministro da Agricultura Enzo Cardoso anunciou, em meados de julho, a autorização definitiva para a Monsanto comercializar a semente transgênica de algodão Bollgard BT (os técnicos do governo Lugo opunham resistência a isso, por ainda não terem em mãos os pareceres dos Ministérios da Saúde e do Meio Ambiente). Em resumo, o novo governo abriu todas as comportas do país para uso livre das transnacionais (que incluem, obviamente, os produtores brasileiros), abolindo todas as precauções ambientais e de saúde pública, bem como qualquer compromisso com a ideia de combater a pobreza, a desigualdade social, a miséria e a fome.

O governo Lugo, por mais limitado que fosse – e era, não apenas pela composição extremamente heterogênea de sua base, do ponto de vista ideológico, mas também pela ação fraca, hesitante e conciliadora do presidente –, ainda mantinha um certo verniz “humanista”, um discurso herdado da Teologia da Libertação e comprometido com o combate à miséria e favorável aos direitos dos povos indígenas e dos trabalhadores rurais. Agora, todas as máscaras caíram por terra. O discurso do novo governo pode muito bem ser exemplificado por uma declaração do latifundiário brasileiro Tranquilo Favero: “Camponeses devem ser tratados como mulher de malando”, querendo com isso dizer que merecem ser espancados. Eis aí a síntese da complexa e rica ideologia dos golpistas.

IV – O Brasil e o golpe no Paraguai

O governo brasileiro manteve uma atitude ambígua, muito mais do que no caso do golpe em Honduras, quando ofereceu asilo em sua embaixada ao presidente deposto Manuel Zelaya, tratando-o, na prática, como refugiado político. Formalmente, Brasília não aceitou o golpe no Paraguai, articulou a resistência no âmbito do Mercosul e da Unasul, foi decisivo para promover a associação da Venezuela ao Mercosul. Mas poderia ter feito muito mais: no mínimo, poderia ter retirado seu embaixador de Assunção, além de anunciar o congelamento de todos os acordos firmados em âmbito governamental, incluindo o de Itaipu. As reações dos governos argentino e venezuelano, apenas para efeito de comparação, foram muito mais contundentes.

Mesmo que o Brasil não quisesse adotar uma retórica radical, poderia ter exercido o seu peso de modo mais decisivo contra os golpistas. É praticamente impossível que a diplomacia brasileira não soubesse que um golpe dessas dimensões estava em curso em Assunção, quando notícias de sua articulação vazaram semanas antes, até mesmo pelo site WikiLeaks. Apesar disso, o Itamaraty agiu como se tivesse sido pego de surpresa (se isso de fato aconteceu, seria motivo para demitir tanto o embaixador em Assunção quanto o próprio ministro das Relações Exteriores).

A crítica ao golpe no Paraguai demandou uma certa ginástica ideológica por parte dos representantes do governo brasileiro. Afinal, o Senado paraguaio respeitou formalmente as regras do jogo, ao adotar o método da motoniveladora para esmagar os oponentes. O aprofundamento do debate teria que revelar o fato de que “as regras do jogo” são, na verdade, adequadas ao estado de exceção em permanência, tanto no Paraguai quanto no Brasil ou em praticamente todos os países de Nuestra América, cujo verniz democrático apenas oculta o caráter “monárquico eletivo” (para utilizar uma expressão cara a Vito Letizia) dos mais variados governos (incluindo, é claro, o da Venezuela). Procurei abordar esse aspecto no texto “De golpes e golpes”, anteriormente distribuído.

Mas não é nosso propósito analisar aqui, com detalhes, as razões do governo e da diplomacia brasileira, que não se esgotam nas relações com o Paraguai, pois isso demandaria toda uma reflexão exterior aos propósitos deste artigo. Basta assinalar que a ação da diplomacia refletiu os interesses de grandes empresários brasileiros no Paraguai, bem como as naturezas ambíguas dos governos Dilma e Lugo, além das relações de subordinação negociada com Washington. Finalmente, por que o governo brasileiro iria se preocupar com o destino dos sem-terra paraguaios, ou mesmo brasiguaios, se a reforma agrária nunca foi realizada sequer no próprio país?


* Este artigo do jornalista José Arbex Júnior foi publicado primeiro na revista O Olho da História n°18, de julho de 2012. As fotos de manifestações contra o golpe que destituiu Lugo são reproduções dos sites AntigolpistasPY, PT no Senado e Instituto Lula.

Publicado em:política

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1 Comentário

  1. Danilo Nakamura

    Era impossível a diplomacia brasileira não saber do Golpe… Em documento revelado pelo Wikileaks, os rumores do golpe já apareciam (em 2009!).

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