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A Confissão de Battisti

Autodelação premiada e 41-BIS

Artigo de Lungarzo sobre Battisti

“Per primi scoprire le insidie”

(Para descobrir primeiro a maldade, o lema da DIGOS, a organização da polícia italiana especialista em torturas.)

Carlos A. Lungarzo

Não é impossível, mas é algo de probabilidade quase nula, que alguém possa manter um segredo vital e angustiante de sua vida durante 38 anos. É raríssimo que essa pessoa nunca conte algo a um amigo, a um colega, a uma namorada, a um membro da família (sobretudo quando ela é enorme e todos os irmãos, sobrinhos, primos, etc, são uniti). É difícil que nada disso assome mesmo nos estados de bebedeira. É quase impossível que alguém possa falar falsamente de sua vida, de suas lembranças mais amargas, dos anos de luta, sem se contradizer uma única vez.

Seria descabido pensar que as pessoas famosas que defenderam Cesare Battisti, entre outros, Garcia Márquez, Fred e Jo Vargas, François Holland, Bertrand Delanöe (prefeito de Paris), e outras 15.000 celebridades nunca tivessem suspeitado em algum momento de sua culpabilidade. É um exagero acreditar que todos os que usamos o cérebro e a sensibilidade somos ingênuos ao extremo e fáceis de enganar.

A capacidade de um ser vivo, de qualquer espécie, tem limites. Qualquer pessoa que possamos imaginar, teria sua mente estourada se fosse obrigado a fingir uma falsa personalidade durante décadas. Até os mais experientes espiões (cujas mentes, esvaziadas de sensibilidade e empatia, foram treinadas para isso) podem se aposentar muito cedo, pela dificuldade de manter esse tipo de mentiras.

Por que Cesare seria tão diferente???

Seriam suficientes nove horas de conversa com o procurador Alberto Nobile para que Cesare lembrasse que sim, que era culpado culpável mesmo, quando, durante 40 anos, sosteve exatamente o oposto?

Não, não foi isso. É muito evidente que não!

O mais grave de nossa condição de latino-americanos é acreditar que somos piores que outros. A Itália foi bem conhecida, de maneira ampla e extensa, ao longo dos anos e em diversas circunstâncias por seu uso da tortura.

Não é apenas pelo interesse numa extradição que os chefes de governo italianos ficam amigos da que hoje é a figura mais nauseosa de nosso planeta. É preciso ter alguma afinidade para dialogar com um elemento racista, misógino, xenofóbico, homofóbico, inimigo de pobres, de trabalhadores, de pessoas doentes, de professores, sindicalistas e cientistas. Não é qualquer um que elogia alguém que quer treinar crianças desde os cinco anos para que aprendam a matar, e que enaltece a tortura, o estupro e a pedofilia.

Quando Cesare foi procurado pela polícia em sua juventude, e não foi encontrado em sua casa, vários membros de sua família, em especial mulheres e pessoas jovens, foram capturados pelos carabinieri como reféns e submetidos a tortura.

Esse método é praticado pelos fascistas, pero não apenas por eles. A Itália praticava torturas pavorosas muito antes de que a palavra “fascismo” fosse cunhada. E dessa tortura não se salvaram nem sequer seus cidadãos mais notáveis.

Giordano Bruno (1548-1600), o maior astrônomo teórico do Renascimento, sofreu torturas nas prisões de Roma durante oito anos. Ele havia sido procurado durante décadas através da Europa por admitir que existiam vários mundos simultâneos, algo que era perfeitamente possível, e que somente a Igreja negava.

Galileu Galilei (1564-1642) foi, literalmente falando, o inventor da ciência. Antes dele só se conheciam as divagações de teólogos que, além de inventar desatinos, perseguiam os verdadeiros interessados em ciência. Sem Galileu, não teria existido Newton e, sem ele, Einstein. Durante o nazismo, mentes abertas e humanitárias celebraram Galileu (como fez Bertold Brecht) como um testemunho da parte luminosa da espécie humana. Ele teve a sorte de não ser executado, mas foi torturado até a exaustão e acabou seus dias em prisão domiciliar.

Mas a Itália não ficou contente apenas com os métodos fascistas de tortura.

Após isso, houve mais. O sistema prisional italiano foi calcado na truculência e sadismo dos americanos, e a tortura química foi importada da União Soviética nos anos 70. Por sinal, lembremos que Benito Mussolini queria trocar Gramsci por presos italianos na Rússia, mas seus bons propósitos fracassaram por causa da traição do líder do PCI, Palmiro Togliatti.

A Divisione Investigazioni Generali e Operazioni Speciali (Digos) e outros aparelhos do terrorismo de Estado aplicavam Halperidol e overdoses de ansiolíticos aos detentos, além de numerosas torturas sexuais. E não era para obter informação, mas principalmente para obter um prazer perverso que não conseguiriam de outra maneira. Não é por acaso que nos EUA é usual fazer pesquisas sobre violência familiar e torturas sexuais em lares de militares e policiais.

Mas, vamos agora ao núcleo de nosso assunto:

Por que Cesare Battisti se autodelatou?

Porque aquela era uma autodelação premiada, e o prêmio era ser livrado da tortura.

Cesare Battisti se autodelatou para evitar ser confinado, pelo resto de sua vida, no sistema 41-bis, um sistema de extrema brutalidade que foi inventado em 1986 para punir os presos políticos.

É uma fábula que esse sistema, qualificado pela ONU como cruel, desumano e degradante (apesar do qual nunca adotou medidas efetivas para obrigar a Itália a suprimi-lo) tenha sido criado para os mafiosos. Aliás, se houvesse sido criado para eles, também não deixaria de ser uma monstruosidade, já que a tortura de qualquer ser vivo é uma aberração. Mas, a verdade é que foi criado em 10/10/1986, como parte das Leis Gozzini. Essas leis, junto com as Reale e Cossiga foram criadas especialmente para os opositores políticos (os reais opositores).

O grande escritor Erri de Luca não exagera ao dizer que a crueldade da repressão nos Anos de Chumbo foi maior que no lapso 1923-1943. Os mafiosos passaram a ser submetidos ao regime 41-bis só depois do escândalo criado pela execução dos procuradores antimáfia em 23 de maio de 1992, mas muitos dos mafiosos preferiram ocupar altos cargos nos governos.

Não devemos esquecer que a Itália foi o berço da operação Mani Pulite, uma maneira de levar ao cume do poder aos magistrados e varrer do espectro político o pouco que restava de esquerda, depois do extermínio entre 1977 e 1985. Mani Pulite teve, como sua filha (ainda mais perversa), a operação Lava Jato, o pretexto do combate à corrupção. Parece que não deu certo: hoje a Itália é considerada no ápice de corrupção e o Brasil reúne as duas coisas: a corrupção desenfreada e uma forma extrema do que eu chamaria nazismo vandálico.

O novo cenário

O que muda com a autodelação de Cesare?

Isso depende da mentalidade de cada pessoa. Para quem acredita em direitos humanos e verdadeira democracia, o problema não é se Battisti foi ou não culpável. O problema é combater o sentimento rasteiro de vingança, o prazer do linchamento e a procura desesperada de bodes expiatórios. Isso só é possível numa concepção mística, truculenta e teológica da justiça.

Por sinal, veja se decifra esta charada: em todas as línguas europeias existe uma palavra para vingança, porém, por que você acha que em qualquer um desses países o povo entende a palavra vendetta?

Mas não todos compartilham o mesmo esgoto. O psicopata nazista Anders Behring Breivik executou 77 jovens estudantes do PT norueguês em 2011, e foi submetido a um julgamento exemplar, baseado especialmente em critérios científicos e não leguleios ou bacharelescos, onde intervieram numerosos especialistas e se estendeu durante meses, dando todos os direitos de defesa. Ele foi declarado insano e está submetido a custódia até que se comprove sua cura, se isso acontece.

Continuo pensando que Battisti foi acusado falsamente daqueles crimes, e quem realmente acredita o oposto deveria mostrar as provas. Mas, se ele ou qualquer outro tivesse sido realmente culpável, o que importa é se ele possui ou não periculosidade futura. No caso dele, é óbvio que após 40 anos de vida irretocável, só mentes maniqueístas. Em 10 anos de amizade contínua, comigo e com minha família, falei de muitas coisas com Cesare: de literatura, de história, de viagens, de arte, de cinema, da vida cultural e até de política. Nunca pensei em perguntar-lhe se era ou não inocente, e jamais senti curiosidade pelo fato.

Quem ajudou Battisti apenas porque achou que era inocente (que, sem dúvida, é a verdade), deveria perguntar-se se seu intuito era ser justo e solidário ou oferecer apenas uma esmola. Se assim fosse, Battisti deveria ter sido ao Vaticano.

Vivi mais de metade de minha vida em países onde a polícia mata crianças negras ou pobres simplesmente para “soltar” o dedo. Onde criminosos fardados que semearam a morte e o terror no Haiti se consideram os donos do país, onde o terrorismo de Estado é objeto de prêmios e condecorações. Eu deveria ser realmente muito cínico para pensar que alguém que mata em defesa coletiva agentes fascistas que produziram stragi onde morreram centenas de civis merece punição, quando os algozes que fizeram esses stragi são louvados como heróis.

Isto não justifica, porém, aceitar a luta armada. Penso que há uma causa principal (e talvez a única) contra qualquer forma de luta armada. Quem se confronta com militares ou policiais munidos de uma arma está (pelo menos naquele momento) se identificando com os que fazem da repressão, a morte e a tortura sua vocação. Honestamente, não acredito que alguém que se rebaixa a condição de carrasco possa ser um libertador.

Fontes sobre a tortura na Itália

Entre livros, jornais, periódicos e documentos eletrônicos, há cerca de 200 mil textos sobre a aplicação de tortura na Itália nas últimas décadas. A prática nunca foi abandonada, embora se faça atualmente com maior discrição. A Itália teve, pela primeira vez, uma lei contra a tortura em 2017, embora sua votação tivesse a oposição de sindicatos de policiais e de vários deputados.

A lista seguinte é uma seleção. A maioria dos dados são posteriores a 2012, o que mostra que a prática da tortura na Itália não tem sido abandonada, a despeito das críticas (formais, para não dizer simbólicas) da União Europeia, e as recomendações mornas da ONU.

Também a Itália colaborou com as torturas aplicadas pela ditadura argentina no período 1976-1983. Isto inclui membros do corpo diplomático autorizados pelas embaixadores.

Há bibliografia recente sobre este assunto, e também sobre o treinamento em tortura aplicado por magistrados e procuradores.

* Carlos A. Lungarzo é professor aposentado da Unicamp, membro da Anistia Internacional e outras organizações de defesa dos direitos humanos. Autor de Os Cenários Ocultos do Caso Battisti (Geração Editorial). O e-book pode ser adquirido na Amazon, por R$ 1,99)

A opinião do autor não reflete necessariamente a dos integrantes de Cemap-Interludium.

Publicado em:direitos humanos,política

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