O compositor inglês Roger Waters, ex-Pink Floyd, divulgou uma carta em que pede a Caetano Veloso e Gilberto Gil que cancelem seu show marcado para 28 de julho em Tel Aviv (Israel). Ativista da causa palestina, ligado ao movimento BDS (campanha global de boicote, desinvestimento e sanções contra Israel), Waters já convenceu outros artistas a não se apresentarem em Israel. Na carta, ele defende a luta contra as políticas “racistas e colonialistas do governo de ocupação de Israel” e lembra o “ataque brutal de Israel à população palestina de Gaza” em 2014, quando mais de 2.200 palestinos – a maioria civis – morreram na operação israelense “Margem Protetora”, que durou 70 dias. As assessorias de Gil e Caetano informaram que o show será mantido e eles não comentariam a carta.
Na internet, a seção brasileira do BDS promove um movimento chamado Tropicália não combina com apartheid, que já coletou mais e 10 mil assinaturas pelo boicote do show de Caetano e Gil.
O site Opera Mundi publicou a carta de Waters, que transcrevemos abaixo, com uma tradução não oficial.
Roger Waters, NYC
22nd May 2015,
Dear Caetano and Gilberto,
I look at your photographs, I listen to your music, I read the history of your personal and professional struggles, I am reminded of all the struggles of all the peoples who have resisted imperial, military and colonial rule down the millennia, who have fought for “the imprisoned and the dead.” It has never been easy, but it has always been right.
In one of your songs, Gil, you mention Archbishop Desmond Tutu. I do not speak Portuguese, but I am assuming you both applaud Archbishop Tutu’s resistance to the racism and apartheid that was eventually overthrown in South Africa. Those were heady days when the worldwide community of artists stood shoulder to shoulder with their oppressed brothers and sisters in Africa. We, the musicians, led the charge then, in support of Nelson Mandela, the ANC, the oppressed African people and all “the imprisoned and the dead.”
We face a similarly momentous opportunity now. We stand at a tipping point. Those of us who are convinced that the right to a decent human life, and to political self-determination, should be universal are, in concert with 139 voting Nations at the General Assembly of the United Nations, now focused on Palestine.
In the wake of last summer’s brutal Israeli attack on the Palestinian people in Gaza, public opinion has, quite rightly, swung in favor of the victims, in favor of the oppressed and disenfranchised, in favor of “the imprisoned and the dead.”
Israeli Prime Minister Netanyahu, with his teetering far-right government, reminds me of the story of The Emperor’s New Clothes; there surely never was a cabinet more nakedly exposed in their calumny than this. They damn themselves with every breath they take, every racist speech they make. “Look Mummy, The Emperor has no clothes!”
I had occasion recently to write a letter to a young English entertainer, Robbie Williams; I shared with him the fate of four young Palestinians playing soccer on the beach in Gaza who were killed by an Israeli artillery shell. Why would I bring up a beach and soccer? Why? Because I love Brazil, I have Ipanema Beach in my mind’s eye; I remember gigs I have done in Sao Paulo, Porto Allegro, Manaus and Rio. How could I ever forget them? I have a football shirt, signed, “To Roger from your Fan Pele”.
When I was last there, an innocent child had just been killed, dragged behind a car by criminals escaping the scene of a crime. The national remorse was palpable, it was all encompassing, you, all of you, cared for that poor kid. In so many ways, you are a beacon of light to the rest of the world.
As you know, international artists concerned about human rights in apartheid South Africa refused to cross the picket line to play Sun City. In those days, Little Steven, Bruce Springsteen and 50 or so other musicians protested against the vicious, racist oppression of the indigenous peoples of South Africa. Those artists helped win that battle, and we, in the nonviolent Boycott, Divestment, and Sanctions (BDS) movement for Palestinian freedom, justice and equality, will win this one against the similarly racist and colonialist policies of the Israeli government of occupation. We will continue to press forward in favor of equal rights for all the peoples of the Holy Land. Just as musicians weren’t going to play Sun City, increasingly we’re not going to play Tel Aviv. There is no place today in this world for another racist, apartheid regime.
When all this is over, we will go to the Holy Land, we will sing our songs of love and solidarity, we will gaze at the stars through the leaves of the olive trees, we will smell the wood smoke from the fires of our hosts, we will treasure the legendary hospitality. But, until this is over, until all the people are free, we will plant our emblem in the sand, there is a line we will not cross, we will not entertain in the court of the tyrant king.
Dear Gilberto and Caetano, “The imprisoned and the dead” reach out. Please, join us in this by cancelling your gig in Israel.
* Sun City é um resort de luxo da África do Sul que na época do apartheid podia promover shows e outros tipos de entretenimentos que eram proibidos no resto do país. Em 1985, o grupo Artists United Against Apartheid (artistas unidos conta o apartheid) fez do resort um de seus alvos. Os artistas do grupo prometeram nunca se apresentar em Sun City e compuseram e gravaram a música Sun City, que se tornou uma das canções símbolo da luta contra o apartheid.
Roger Waters, NYC
22 de maio de 2015,
Caros Caetano e Gilberto,
Eu olho para suas fotos, escuto suas músicas, leio a história de suas lutas pessoais e profissionais, e lembro de todas as lutas de todos os povos que resistiram a regimes imperiais, militares e coloniais ao longo dos milênios, que lutaram “pelos presos e pelos mortos”. Nunca foi fácil, mas sempre foi certo.
Em uma de suas músicas, Gil, você menciona o arcebispo Desmond Tutu. Eu não falo português, mas assumo que vocês dois aplaudam a resistência do arcebispo Tutu ao racismo e ao apartheid que acabaram derrubados na África do Sul. Eram dias arrebatadores, quando a comunidade mundial de artistas lutava lado a lado com seus irmãos e irmãs oprimidos na África. Nós, os músicos, lideramos a luta naquele momento, em apoio a Nelson Mandela, à ANC, ao povo africano oprimido e a todos “os presos e os mortos”.
Estamos diante de uma oportunidade igualmente histórica. Estamos em um momento decisivo. Aqueles de nós que estamos convencidos de que o direito a uma vida humana decente e o direito à autodeterminação política devem ser universais estamos agora, em consonância com 139 países com direito a voto da Assembleia Geral das Nações Unidas, focados na Palestina.
Depois do ataque brutal de Israel à população palestina de Gaza no último verão, a opinião pública, muito acertadamente, virou a favor das vítimas, a favor dos oprimidos e dos sem privilégios, a favor “dos presos e dos mortos”.
O primeiro-ministro de Israel, Netanyahu, com seu cambaleante governo de extrema-direita, me recorda a história da nova roupa do imperador; com certeza nunca houve um gabinete mais claramente exposto em sua calúnia como este. Eles se condenam a si mesmos com cada palavra que dizem, com cada discurso racista que fazem. “Olha, mamãe, o imperador está nu!”
Tive a oportunidade, recentemente, de escrever uma carta a um jovem artista inglês, Robbie Williams; eu compartilhei com ele o destino de quatro jovens palestinos que jogavam futebol em uma praia de Gaza e foram mortos por um projétil da artilharia israelense. Por que eu mencionaria uma praia e futebol? Por quê? Porque eu amo o Brasil, eu tenho a praia de Ipanema na minha mente; lembro de shows que fiz em São Paulo, Porto Alegre, Manaus e Rio. Como poderia esquecê-los? Eu tenho uma camisa de futebol assinada “para Roger, de seu fã Pelé”.
Quando estive lá pela última vez, uma criança inocente tinha acabado de ser morta, arrastada por um carro dirigido por criminosos que escapavam da cena do crime. O remorso nacional era palpável, era universal, vocês, todos vocês, importavam-se com aquela pobre criança. De muitas maneiras, vocês são uma centelha de luz para o resto do mundo.
Como vocês sabem, artistas internacionais preocupados com os direitos humanos na África do Sul do apartheid se recusaram a atravessar o piquete para tocar em Sun City. Naqueles dias, Little Steven, Bruce Springsteen e 50 ou mais músicos protestaram contra a opressão brutal e racista dos povos nativos da África do Sul. Aqueles artistas ajudaram a ganhar aquela batalha, e nós, do movimento não-violento de Boicote, Desinvestimento e Sanções (BDS) pela liberdade, justiça e igualdade dos palestinos, vamos ganhar esta batalha contra as políticas similarmente racistas e colonialistas do governo de ocupação de Israel. Vamos continuar a pressionar pela igualdade de direitos para todos os povos da Terra Santa. Do mesmo modo que músicos não foram tocar em Sun City, cada vez mais não vamos tocar em Tel Aviv. Não há lugar hoje no mundo para outro regime racista de apartheid.
Quando tudo isto acabar, nós iremos à Terra Santa, cantaremos nossas músicas de amor e solidariedade, olharemos as estrelas através das folhas das oliveiras, sentiremos o cheiro da madeira queimando das fogueiras de nossos anfitriões, vamos apreciar essa lendária hospitalidade. Mas, até que isto termine, até que todos os povos sejam livres, nós vamos fincar nosso emblema na areia, há uma linha que não cruzaremos, nós não vamos entreter a corte do rei tirano.
Caros Gilberto e Caetano, “os presos e os mortos” estendem as mãos. Por favor, unam-se a nós e cancelem seu show em Israel.