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Salvador, tarifa e pobreza

São, São Salvador, meu amor
São, São Salvador, quanta dor

Não poderia buscar melhor inspiração para escrever este texto do que o genial baiano Tom Zé, para demonstrar a dura realidade da cidade de Salvador, que escolhi para morar e que aprendi a amar com todas as suas contradições.

Existe uma Salvador inventada pelo poder público para os turistas e que teve como garoto propaganda o menino Joel. E tem a Salvador da perversa exclusão da grande maioria da população, em que o braço armado do Estado mata o mesmo menino Joel que usou para fantasiar uma realidade que é brutal e implacável para a juventude negra.

Salvador é, também, segundo o Mapa da Violência 2013: Homicídio e Juventude no Brasil, a capital com o maior número de homicídios. Em 2011, ocorreram 1.671 homicídios o que demonstra a gravidade da violência na cidade, que atinge principalmente os jovens negros e pobres.

E qual o motivo de começar falando dessa realidade excludente e opressora para tratar de tarifa de ônibus? É simples. Segundo a pesquisa de origem e destino realizada pelo governo do Estado, por volta de 36% da população anda a pé para se deslocar, e grande parte por não ter como pagar a passagem. Por volta de 25% desses que se locomovem a pé já sofreram algum tipo de acidente pelas péssimas condições das calçadas (quando existem) e vias da cidade.

Desemprego

Salvador é a capital nacional do desemprego, com aproximadamente 19% da população economicamente ativa desempregada. E essa condição impõe a essas pessoas a dura realidade de procurarem emprego e, para tanto, terem que se locomover pela cidade, pagar ônibus, se alimentar sem ter quase nenhum dinheiro, o que significa muitas vezes sacrificar as condições de vida de todos os familiares em uma busca que muitas vezes resulta em nada, ou melhor, em frustração e humilhação.

Salvador é uma cidade dividida de forma brutal: muito para os poucos que possuem muito, e muito pouco para os muitos que pouco possuem. E esse muito pouco, para a grande parcela da população soteropolitana, é evidenciado quando pensamos na tarifa dos ônibus e no significado de impor aos usuários o pagamento pela locomoção.

Tarifa

Mesmo sabendo que Salvador é a capital do desemprego, da violência e da exclusão social, aqui se paga a maior tarifa de ônibus do Nordeste e a quarta maior do País. Se compararmos a taxa de desemprego e a renda média mensal do soteropolitano com a do paulistano, vamos constatar que proporcionalmente na nossa cidade o impacto no bolso dos usuários de ônibus é muito maior do que em São Paulo, que além de tudo tem uma frota melhor.

E, pela planilha que justifica a tarifa de R$ 2,80, que foi divulgada pela Prefeitura, constatamos que o lucro oficial e declarado dos empresários de ônibus foi de R$ 120 milhões em 2012. Em São Paulo, no mesmo período, o lucro declarado dos empresários foi de aproximadamente R$ 155 milhões. Se considerarmos que em São Paulo a operação é mais complexa, as condições de tráfego são piores, o que eleva os custos, a frota maior e mais nova, e os salários e benefícios dos trabalhadores superiores, podemos concluir que o lucro dos empresários de Salvador proporcionalmente é muito superior aos dos paulistanos, portanto a tarifa que os usuários pagam para se locomover na nossa cidade é muito mais rentável.

Quando falamos em lucro oficial e declarado, que é o permitido pela planilha, estamos dizendo que existem outros mecanismos que permitem aos empresários aumentarem os lucros muito acima do que é permitido pela Prefeitura. Cabe à Prefeitura fiscalizar os itens da planilha, para saber se de fato correspondem aos custos reais de operação, que determinam o valor da tarifa praticada. E é aí que a “porca torce o rabo”!

O que os empresários declaram que gastam com óleo diesel, motor, câmbio, pneus novos, recapados, peças, uniformes, entre outras despesas corresponde à realidade? A Prefeitura tem fiscais que conferem os pedidos, as notas fiscais, os pagamentos efetuados? E realiza pesquisas de mercado para comparar os preços declarados pelos empresários com o do mercado, principalmente considerando que compram quantidades elevadas?

Lucros

E os empresários ainda ampliam seus lucros com a venda de espaços para publicidade e a venda antecipada de passagens, por meio dos vales-transporte e venda eletrônica, quando recebem sem ter prestado o serviço.

Até mesmo a Prefeitura reconheceu que a planilha entregue pelos empresários não é confiável. Se o prefeito e o secretário de Transporte sabem disso, o que é que os impede de reduzir a tarifa, tendo em vista a desoneração da folha de pagamentos pelo governo federal, que permite uma redução de aproximadamente 7,5% no valor atual de R$ 2,80, e se a Prefeitura quiser pode reduzir ainda mais?

Empresários

Segundo o ex-presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) Márcio Pochmann, existem três setores empresariais que dominam as cidades: os empresários que atuam na especulação imobiliária, os empresários que operam o transporte coletivo e os empresários da coleta e incineração de lixo. E não é para menos, pois são os que lidam com grande parte dos recursos públicos ou da riqueza produzida em uma cidade. São, portanto, os empresários que financiam também, com grandes recursos, as campanhas dos parlamentares e prefeitos dessas cidades.

É essa condição de financiadores de campanhas que os coloca em condições de interferir na definição do Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano (PDDU) , destruir áreas de preservação ambiental para construção de condomínios residenciais, implantar centros comerciais e empresariais em região de grande concentração de tráfego sem ampliar as vias de circulação, ou definir linhas, trajetos e tarifas sem nenhum controle efetivo do poder público. Temos como exemplo dessa situação o processo autoritário que resultou no PDDU e que se repetirá com a licitação das linhas de ônibus de Salvador ou da construção da Linha Viva, que vai desalojar milhares de pessoas, e que não passarão por um processo amplo e democrático de discussão com a sociedade.

Esse contexto coloca a população, principalmente a mais pobre e que depende exclusivamente do ônibus ou de seus próprios pés como meio de deslocamento, na condição de vítima das relações de subserviência, comum entre grande parte dos ocupantes do Legislativo ou da cadeira de prefeito, em relação aos empresários e aos que detêm o poder econômico nas cidades.

Privilegiando os empresários – garantindo lucros exorbitantes por meio de tarifas elevadas ou de grandes obras tratadas como de mobilidade, mas que beneficiam empreiteiras, indústrias automobilísticas e a especulação imobiliária –, o poder público impõe ainda mais exclusão social para grande parte dos moradores de Salvador.

Exclusão social

Um breve passeio pela periferia da cidade nos mostra a gravidade da exclusão social. Ausência de saneamento básico, iluminação elétrica, coleta de lixo e segurança pública, entre outros problemas, são o cenário que encontramos fora das áreas nobres da cidade. Se já não fosse revoltante o abandono, essa situação se agrava quando vemos que parte dessa população ainda se vê obrigada a andar trechos de seu trajeto a pé por não ter recursos para pagar ônibus – em Salvador, o gasto médio mensal familiar com transporte coletivo é o terceiro maior do País, ficando atrás apenas de São Paulo e Rio de Janeiro.

Em nossa cidade, segundo o IPEA, uma família gasta em média R$ 125,92 por mês com transporte público, representando 19,68% da renda mensal de R$ 3.351,77. Em São Paulo, esse mesmo gasto é de R$ 137,88, que representa 15,12% de uma renda familiar mensal de R$ 4.251,58. Mesmo tendo um gasto maior com transporte público, o impacto na renda mensal de uma família de São Paulo é menor do que para quem mora em Salvador.

E é importante ressaltar que estamos falando de média salarial, o que oculta a realidade de vida de grande parte da população, e um exemplo dessa situação que não transparece nas estatísticas é a situação dos desempregados. Na região metropolitana de Salvador, o desemprego, segundo o Dieese, em julho passado era de 18,7% enquanto em São Paulo era de 11,0%.

Se perguntarmos para as pessoas, mesmo as que sofrem esperando nos pontos ou espremidas em ônibus lotados e sujos, se é correto cobrar tarifa para se locomover, com certeza a grande maioria vai dizer que sim. E vamos ouvir respostas como:

“Se não cobrar, quem é que vai pagar o empresário para colocar o ônibus para rodar?”

“Se o ônibus for mais confortável e não demorar tanto, está bom.”

“Podia diminuir um pouquinho o preço.”

“O problema é ficar dando volta pela cidade para chegar em casa.”

Opressão

O Estado e os que detêm o poder em nossa sociedade conseguem impor à grande maioria da população a aceitação da condição de explorados e oprimidos como natural. Como disse muito bem o professor Paulo Freire, os oprimidos hospedam o opressor e nessa condição vivem a dualidade de aceitar que ser é parecer, e parecer é parecer com o opressor.

Essa condição de viver sob o domínio do opressor faz com que a população não considere como direito seu e obrigação do Estado o transporte coletivo gratuito e acessível a todos. E é justamente por meio do transporte coletivo que as pessoas podem ter condições de exercitar todos os direitos sociais, como ir à escola, ao hospital, aos parques, visitar seus familiares ou desfrutar dos equipamentos sociais existentes na cidade, como museus e teatros. Ou seja, a mesma população que já compreendeu historicamente que educação e saúde são seus direitos sociais e obrigação do Estado não toma para si, como direito, o transporte gratuito, ainda que não possa se locomover pela cidade por não ter dinheiro para pagar passagem – 36% da população se locomove a pé por esse motivo.

E, se não for assim, pode ser como?

Para não dizerem que nós, que estamos nas ruas lutando pelo passe livre para todos ou pela tarifa zero no transporte coletivo, somos loucos que reivindicam o que é impossível (apesar de acreditarmos que ser razoável é justo querer o impossível!), vamos ver o que dizem as leis sobre a tarifa e quem deve pagar por elas.

Lei da Mobilidade

A Lei Federal 12.587, de 3 de janeiro de 2012, institui a Política Nacional de Mobilidade Urbana e, no seu artigo 8º, estabelece a política tarifária do serviço de transporte público coletivo e as suas diretrizes, ente elas, no inciso IV, a “contribuição dos beneficiários diretos e indiretos para custeio da operação dos serviços”. Na mesma concepção de responsabilidade pelo custeio do serviço, a Lei Orgânica do Município de Salvador (link: ), em seu artigo 242, define que “o ônus dos custos dos serviços de transportes coletivos deverá ser assumido por todos que usufruem do benefício mesmo que de forma indireta como o comércio, a indústria, os governos federal, estadual e municipal, na forma que legislação complementar determinar”.

Como estabelecem essas duas leis, quem se beneficia direta ou indiretamente da locomoção das pessoas deve arcar com o ônus dos serviços de transporte coletivo, que no caso da Lei Orgânica de Salvador já está definido como sendo o comércio e a indústria, entre outros.

E como é que os empresários se beneficiam do deslocamento da população com o transporte coletivo?

Exploração

Quem é trabalhador, seja da indústria, do comércio ou do setor de serviços, sai todos os dias úteis de sua casa, muitos até duas horas ou mais antes do horário de entrada no trabalho. E quando trabalhamos fazemos o quê? Produzimos algo, um produto, realizamos uma tarefa ou vendemos mercadorias, e esse trabalho que realizamos gera lucro para o patrão ou empregador. Em troca do nosso trabalho, recebemos um salário, que representa uma pequena parte de todo o lucro que geramos para o patrão. Ou seja, todos os dias um trabalhador sai de casa, vai para o emprego trabalhar, produz lucro, perde por volta de quatro horas indo e voltando, e ainda deve pagar pelo deslocamento?

Quando as mulheres, principalmente, saem às ruas para comprar alimentos, roupas, medicamento ou produtos para a casa e para seus familiares, quem se beneficia? Diretamente se beneficia o comerciante, que vai vender e ter lucro com cada produto que é comprado por quem saiu de casa e foi à sua loja. O comerciante só mantém o seu negócio se as pessoas forem às ruas para consumir. E se as pessoas compram bastante em sua loja, o comerciante faz então outra encomenda à indústria que vai produzir e obter lucro com o trabalho produzido pelo seu operário, que saiu de casa de madrugada e pagou pelo ônibus que o deixou na porta da fábrica.

E os trabalhadores vão receber seus salários, pagar suas contas e impostos nos bancos. Ficam nas filas, muitas vezes humilhados nas portas giratórias, para receber o dinheiro que lhes pertence e pagar contas, dando lucros enormes para o banqueiro que apenas especula com o dinheiro alheio.

Benefícios

Portanto, voltando às leis, quem deve pagar pela locomoção das pessoas na cidade é quem se beneficia direta e indiretamente, ou seja: as indústrias, o comércio, os bancos e o poder público. Evidentemente.

É impossível obrigar os empresários a abrirem mão de parte de seus lucros absurdos para custear a locomoção das pessoas que vão beneficiá-los?

Imaginem se em um determinado dia os moradores de Salvador resolverem que não vão sair às ruas, ou então que vão às ruas, mas não vão comprar nada. O que acontece se as lojas das ruas comerciais e os shoppings da cidade não venderem absolutamente nada? E se os trabalhadores resolverem ficar em casa em uma segunda-feira, cuidando dos filhos, da casa, ou simplesmente passeando pelo bairro, ao invés de ir para o emprego enriquecer o seu patrão?

Qual é o tamanho do prejuízo do comerciante se a população resolver que não vai sair para fazer compras por não querer pagar passagem? Ou se todos os trabalhadores decidirem que não aceitam mais pagar para serem explorados e enriquecerem os patrões?

O prejuízo seria brutal, centenas de vezes maior do que o valor necessário para custear a locomoção da população!

E o que é que impede que o passe livre para todos, ou a tarifa zero, seja um direito de toda a população?

Paulo Freire

A resposta a essa pergunta encontramos novamente no que escreveu Paulo Freire: infelizmente grande parte dos trabalhadores ainda pensa como aqueles que os oprimem.

A luta do MPL começa pela redução da tarifa em R$ 0,20, o que se tornou um símbolo nas lutas de junho, pois sabemos que a cada centavo gasto a mais na passagem, cada passageiro de ônibus está deixando na catraca mais uma parte de seus direitos sociais básicos. Mas não é na redução da tarifa que a luta termina: o seu fim se dará no dia em que conquistarmos uma sociedade sem catracas!

O trabalho do Movimento Passe Livre é realizar essa discussão com os movimentos sociais organizados de Salvador, os sindicatos, entidades estudantis, e todos os setores efetivamente comprometidos com os direitos sociais da população, principalmente dos mais pobres e excluídos, para que se possa garantir o direito fundamental de circulação e de apropriação da cidade por todos e para todos. É este o centro da luta por uma sociedade sem catracas, que representa uma sociedade também sem muros, sem cercas, que não exclui e nem divide.


A Fundação Perseu Abramo publicou, em sua coleção “O que saber”, o livro Tarifa, Mobilidade e Exclusão Social, em que Walter Takemoto discute as questões abordadas aqui. Clique na imagem do livro para acessar.

Publicado em:política

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