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Fúlvio Abramo – A trajetória de um militante antifascista

1934, 7 de outubro. A insuportável tensão na praça transparecia cristalina na ansiedade das milhares de pessoas ali concentradas. Todos sabiam que aquele domingo paradoxalmente acolhedor presenciaria uma tragédia, antes mesmo do ameno sol da tarde desaparecer no horizonte. Os minutos passavam muito lentos naquela praça.

Um jovem trabalhador de feições enérgicas destacou-se da multidão e iniciou um discurso. Num tom grave, apontou uma outra concentração, situada dezenas de metros adiante e afirmou: “Companheiras, companheiros trabalhadores, camaradas! Estamos aqui para impedir que eles tomem esta praça. Porque se hoje os fascistas tomarem esta praça, amanhã tomarão o Estado…”

Foi então que a fuzilaria começou. Os integralistas, que compunham o grupo mais adiante, começaram a atirar sobre a concentração democrática e antifascista. Pessoas tombaram mortas ou feridas. Houve correria, gritos e sangue por todo o lado. A tragédia havia começado.

Nesse dia, o Movimento Integralista Brasileiro foi derrotado, impedido de fazer uma demonstração de força que, se bem-sucedida, teria alterado profundamente a história do país. De fato, o Estado brasileiro, sob a presidência de Getúlio Vargas, passava então por uma crise aguda, extremamente abalado pela revolução de 1930, e apoiado sobre um frágil equilíbrio de forças.

A derrota do integralismo só foi possível graças à unidade das forças democráticas e operárias do país, então agrupadas na Frente Única Antifascista (FUA). O jovem que iniciou o comício da Sé – e um dos seus principais organizadores – era também o secretário-geral da FUA. Era, na ocasião, presidente da Coligação Proletária dos Sindicatos, que agrupava 80 entidades sindicais – algo extraordinário na época – e era dirigente da Liga Comunista Internacionalista (LCI, trotskista), juntamente com Mário Pedrosa, Lívio Xavier e outros. Seu nome: Fúlvio Abramo.

Cinquenta anos depois,1Esta entrevista foi feita em 1984. Fúlvio Abramo, com seus 75 anos, continua forte, lúcido e ativo. Junto com Mário Pedrosa e outros antigos camaradas da LCI, esteve entre os fundadores do Partido dos Trabalhadores (PT). É hoje presidente do Centro de Documentação do Movimento Operário Mário Pedrosa (Cemap), dedicado a pesquisar e reconstituir a história do movimento dos trabalhadores brasileiros.

O combate ao lado dos trabalhadores e pela democracia não foi algo “episódico” na vida desse “velho” revolucionário trotskista. Por isso mesmo, a entrevista – que originalmente pretendia ater-se às jornadas antifascistas – acabou alongando-se, extrapolando seus limites originais e se impondo como um verdadeiro documento histórico.

Como foi o início da sua formação cultural e política?

Meu avô materno teve muita influência em minha formação e na de minha família. Ele chamava-se Bortolo Scarmagnan, era anarquista e irredentista (combateu na Itália para expulsar os opressores austríacos). Lembro-me até hoje do entusiasmo que sentia pela Revolução Bolchevique de 17. Meu pai, Vincenzo Abramo, também contribuiu bastante para formar toda a família dentro de uma visão humanista. Junto com isso, tive uma sólida instrução no Instituto di Studi Medii Dante Alighieri, de São Paulo, onde entrei em 1918, com nove anos de idade. No “Dante”, estudei até 1927 com meus irmãos Lívio (que vive hoje no Paraguai e é um renomado artista plástico) e Athos (poeta e teatrólogo, já falecido). Em 27, saí por problemas financeiros.

E a atividade política, quando começou?

Em 1926/27, comecei a formar um grupo clandestino. Em 1930, esse grupo já exercia atividades importantes no meio sindical. Participavam a Lélia (minha irmã), Aziz Simão (hoje professor da USP) , estudantes e operários. A partir de 1931 participamos do movimento que levaria à criação do Partido Socialista Brasileiro (PSB) em 1932, então dirigido pelo tenente Giraldes Filho (fundador do PSB junto com Zoroastro Gouveia, Marcelino Serrano e o tenente Cabanas). Nosso grupo se manteve dentro do PSB – até mesmo como meio de podermos atuar legalmente – e mantinha sua autonomia, principalmente no que se refere à critica ao PCB.

E o trotskismo?

Em 1930, comecei a trabalhar no Diário da Noite. Foi por aí que tive a oportunidade de travar contato com Mário Pedrosa, Lívio Xavier, Aristides Lobo, Geraldo Ferraz. Esse pessoal era do PCB. Eles romperam com o partido por volta de 1929, por causa de sua burocratização stalinista. A crise do PCB foi grave na época. No Rio, saíram o Dalla Déa, Dias Pequeno, Rodolfo Coutinho, Mário Pedrosa, Lívio Xavier. Em São Paulo, saíram Aristides Lobo, João da Costa Pimenta, Manoel Medeiros, Mário Dupont. Entre eles estavam alguns dos melhores quadros do PCB, dos mais brilhantes dirigentes. O trotskismo foi introduzido por Mário Pedrosa. Ele foi em 1928 para a Europa. Na Alemanha, tomou contato com o Programa da Oposição de Esquerda. Na França, conheceu Pierre Naville, Souvarine e Benjamin Péret, quando aderiu definitivamente ao trotskismo. Voltando ao Brasil em 1929, contatou o pessoal dissidente do PCB no Rio e formou o Grupo Comunista Lenine, em meados de 1930. Assim, foi o Mário quem deu forma à organização dos trotskistas no Brasil. Em meados de 1931, o Grupo Comunista Lenine passou a denominar-se Liga Comunista Internacionalista. O grupo do qual eu fazia parte entrou em 1931 para a LCI, mantendo o entrismo no PSB.

Como se deu a crise do PCB?

Já se sentia fortemente no Brasil a burocratização do PCB, como reflexo da burocratização stalinista da 3ª Internacional. Há uma carta de Aristides Lobo – na época dirigente do PCB em São Paulo – ao Comitê Central do partido, de 1929, que mostra detalhadamente esse processo. Funcionários comandavam administrativamente a vida do partido, davam orientações políticas que variavam do esquerdismo infantil (que muitas vezes tornava fácil a captura de militantes pela polícia) ao oportunismo conciliador. Enfim, destruíam, liquidavam os militantes do PCB. Isso provocou a crise. Houve um dado que precipitou a ruptura definitiva com o PCB e a formação da LCI: pouco antes da revolução de 30, tanto Mário Pedrosa quanto Aristides Lobo foram ao Uruguai para tentar convencer Luís Carlos Prestes a assumir a direção do movimento revolucionário. Era necessária uma figura nacional, como o “Cavaleiro da Esperança”, para centralizar a favor dos trabalhadores aquele movimento contra as oligarquias estaduais que dominavam a Federação. Prestes, que na época já era bastante próximo ao PCB, negou-se a assumir seu papel. Não houve outra alternativa senão tentar construir um novo agrupamento de trabalhadores que disputasse a direção do movimento de massas, e foi assim que se constituiu a LCI.

Como a Liga se desenvolveu?

Ela teve uma atividade muito importante, principal­mente no movimento sindical. Partiu da LCI a proposta de constituir uma Coligação Proletária dos Sindicatos, que chegou a organizar mais de 80 entidades sindicais. Também foi a LCI que propôs a formação da Frente Única Antifacista (FUA). E nos destacávamos também por nosso combate pela Constituinte, colocando a questão do poder a partir mesmo da situação criada na época da revolução de 30.

E o PCB?

O PCB tinha como estratégia a política de frente popular (definida pela 3ª Internacional stalinizada), baseada na aliança de classes e justificada por eles como “defesa do capital nacional” contra o imperialismo. Foi essa política que os levou, em 1935, à criação da desastrosa Aliança Nacional Libertadora (ANL), frente de colaboração com a burguesia brasileira. E foi o aventureirismo provocador stalinista que levou ao putsch pequeno-burguês impulsionado pela direção do PCB no mesmo ano, que deu o pretexto de que Vargas precisava para destruir completamente os sindicatos e organizações independentes dos trabalhadores. Não podemos nos esquecer, tampouco, que entre 1929 e 1934 a direção do PCB manteve a política ultrassectária do “social-fascismo”, o complemento da política oportunista da frente popular. Segundo o “social-fascismo”, todos os partidos não-comunistas eram aliados – potenciais ou declarados – dos fascistas. Com isso, o PCB se isolava cada vez mais da classe operária e dos sindicatos.

E o integralismo? Quando começou a se desenvolver no Brasil?

O ascenso integralista começou entre 1930 e 1932 e atingiu o seu auge em 1934. O chamado Movimento Integralista Brasileiro dizia-se “modernizador do capitalismo nacional” , reivindicando-se do nazismo e do fascismo. Seus principais chefes eram Plínio Salgado, Gustavo Barroso, Angelo Simões Arruda e Severino Sombra, entre outros.

Como surgiu a proposta da FUA?

Em 1932 chegou ao Brasil um militante trotskista italiano, Rosini, que havia sido prisioneiro dos fascistas junto com o revolucionário Antonio Gramsci. Em contato com a LCI, Rosini propôs que lutássemos para constituir a FUA, baseada principalmente nas classes trabalhadoras e sindicatos. Aderimos imediatamente e, na época, Mário Pedrosa e Lívio Xavier tornaram-se os principais aglutinadores da luta antifascista. A preocupação dos dirigentes da LCI com o problema era tão grande que em 1933 traduziram e publicaram uma coletânea de artigos de Leon Trotsky sobre o nazismo (Revolução e Contrarrevolução na Alemanha), que ainda considero um guia atual para a compreensão da situação política. Em 27 de maio de 1933 apareceu o primeiro número do jornal “O Homem Livre”, impulsionado pela LCI e integralmente dedicado à luta antifascista. Em 17 de junho de 1933, quando na sede da Lega Lombarda (organização de imigrantes italianos) comemorava-se o 9º aniversário do assassinato do deputado Giacomo Matteotti por Mussolini – no Largo de São Paulo, num prédio que ainda existe –, nosso camarada Aristides Lobo propôs, em nome de “O Homem Livre”, a criação de uma comissão organizadora da FUA. Em 25 de junho (uma semana depois) constituiu-se a FUA, com a participação das seguintes entidades: Grêmio Universitário Socialista, PSB, União dos Trabalhadores Gráficos, Legião Cívica 5 de Julho, LCI, Partido Socialista Italiano no Brasil, Bandeira dos 18, Grupo Socialista Giacomo Matteotti, jornal “O Homem Livre”, jornal “A Rua” e revista “O Socialista”. Note-se aqui a completa e total ausência do PCB. Os jornais “A Lanterna” e “A Plebe” e a Federação Operária de São Paulo, todos de tendência anarquista, recusaram-se também a participar, afirmando que uma frente única deveria ser de indivíduos, e não de organizações. Estabelecemos um programa mínimo de lutas para a FUA: combate ao fascismo nacional e internacional, direito dos trabalhadores à participação política, separação Igreja/Estado (pelo ensino laico). Posteriormente, a Coligação Proletária dos Sindicatos também aderiu à FUA. A proposta estava ganhando amplas bases operárias. Nessa altura, a maioria da base do PSB-SP fora ganha para a LCI. Em 14 de julho de 1933 houve o primeiro comício da FUA. Tal foi a sua força, que a direção do PCB foi obrigada a aderir. “Obrigada” é a palavra certa, pois enquanto os PCs de todo o mundo perseguiam, assassinavam os trotskistas (na época, quatro secretários de Trotsky já haviam sido assassinados pelos stalinistas), enquanto na URSS Stálin enviava centenas de milhares de trotskistas e membros da Oposição de Esquerda bolchevique para os campos de concentração, no Brasil a direção do PCB teve que engolir goela abaixo a amarga contingência de estar na FUA dirigida pelos trotskistas e organizações operárias fora de seu controle.

Os integralistas não reagiram à FUA?

Em 14 de novembro de 1933, pela primeira vez, os integralistas tentaram dissolver um comício nosso. E pela primeira vez tiveram que fugir da massa. Em 15 de dezembro eles dispersaram, na base da metralhadora, uma manifestação nossa convocada para o Largo da Concórdia. Mas o movimento crescia, e já sabíamos que ele havia se expandido para Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Pernambuco. Em 26 de janeiro de 1934, a polícia prendeu todos os dirigentes da FUA (eu, inclusive). A direção do PCB, para quem era insuportável a unidade com os odiados trotskistas, rompeu nessa ocasião com a unidade antifascista. O PCB debandou.

Como foi preparado o 1º de Maio de 1934?

Apesar do autoisolamento do PCB e da sua ruptura com a FUA, nossa luta estava mais forte do que nunca. A LCI, dentro da FUA, impulsionou o 1° de Maio de 34 como um momento crucial do combate contra o fascismo. E aquele foi o maior comício realizado no Brasil até aquela data, apesar do fato de que o secretário de Segurança Pública do governador Armando de Salles Oliveira tentou impedi-lo até às vésperas de sua realização. Conseguimos realizar o comício, apesar de tudo, no antigo pátio do Palácio das Indústrias, no Parque D. Pedro. Tenho aqui a lista de oradores: Sindicatos dos Profissionais do Volante, Tecelões de São Paulo, Barbeiros e Cabeleireiros; Empregados de Hotéis; Empregados do Comércio, Bancários, União dos Trabalhadores Gráficos, Grupo de Ferroviários de SP – na época a principal categoria operária do Brasil – PSB, FUA e LCI. Novamente, o PCB estava ausente. Aliás, a tônica dos discursos foi a luta contra o fascismo e críticas contra a política errada, contrarrevolucionária implementada pela direção do PCB. Aquele 1º de Maio mostrou, também, a profunda disposição do proletariado brasileiro de impedir que o fascismo tomasse conta do Estado. Mostrou o fortalecimento extraordinário da LCI, sua expansão na base operária, apoiada numa política justa. Em setembro de 1934, aliás, o PCB chamou sozinho uma manifestação antifascista (em consequência de sua linha absurda do “social-fascismo”). Não foi ninguém. Foi um fracasso. A partir daí, eles foram obrigados a voltar à FUA.

Mas há autores que afirmam que o PCB teve um papel predominante na FUA.

Mentira, falsificação, mentira deslavada, consciente ou não. A direção do PCB foi arrastada (grifo: arrastada) à FUA. Tanto que alguns anos depois, como consequência do combate da LCI e da própria FUA, que provocou uma tremenda crise no PCB, Herminio Sacchetta, que em 1934 era dirigente do PCB-SP, rompeu com o partido e aderiu ao trotskismo.

E a organização da Jornada de Outubro?

Depois do 1º de Maio, entregamo-nos a uma atividade frenética de organização da base. Sabíamos que o confronto viria, mais cedo ou mais tarde. Começamos, então, a organizar um novo “plano de rua” (havia um plano antigo, feito em 1933 pelo tenente Cabanas, que não mais se adequava à composição ampliada da FUA), preparando o confronto. Foi nessa altura que os integralistas convocaram uma grande concentração na Sé, para 7 de outubro de 1934. Os consulados alemão e italiano investiram alto nessa concentração, dando até armas novas e sem uso aos fascistas brasileiros. Para nós, da LCI e outras organizações, o perigo era de que, conquistando as ruas, os fascistas mostrariam a Getúlio Vargas que teriam forças para controlar o Estado, disputando com ele o poder. Não confiávamos em Vargas, achávamos que ele poderia se unir aos fascistas para se fortalecer, Dessa forma, a demonstração da Sé foi transformada no ponto nevrálgico da política nacional. Dizíamos, então, que somente poderíamos confiar nas forças dos trabalhadores. Nada de aliança de classe! Nada de frente popular! Unidade na ação contra o fascismo, sim, mas colaboração de classes, jamais!

O que aconteceu no dia 7 de outubro?

Nós chamamos uma contramanifestação no mesmo local. É evidente que isso só poderia gerar conflito. E nós queríamos o conflito. É claro que não queríamos tiros nem mortes. Mas sabíamos que não desmancharíamos a manifestação fascista sem um conflito. Os fascistas vieram pela Avenida Brigadeiro Luís Antônio e tomaram as escadarias da Sé. Usavam camisas verdes (sua cor oficial) com o sigma grego. Nós já estávamos lá. Fizemos um cordão em torno da Sé, a partir do cruzamento da Senador Feijó, estendendo-se pelos fundos da praça e pelas calçadas à esquerda e à direita. Éramos milhares de trabalhadores dispostos a lutar. Quando a manifestação integralista ia começar, eu, como secretário-geral da FUA e dirigente da Coligação Proletária dos Sindicatos, iniciei o meu discurso. Disse mais ou menos o seguinte: “Companheiras, companheiros trabalhadores, camaradas! Estamos aqui para impedir que eles tomem esta Praça. Porque se hoje os fascistas tomarem esta Praça, amanhã tomarão o Estado…” Nessa altura começaram os disparos de metralhadora. Em volta de onde eu estava, tombaram Mário Pedrosa, ferido, Cícero Jesus Alonso e Décio Pinto de Oliveira – militantes de base comunistas – mortos. Muitos outros foram feridos e mortos. Não se sabe o número exato. Mas foram muitos. Generalizou-se o tiroteio em toda a praça. A polícia ocupou as ruas, e os integralistas fugiram. Muitos deles eram jovens vindos do interior que, ingenuamente, acreditavam que iam enfrentar “comunistas comedores de criancinhas”, tal a baixeza da propaganda fascista. Face à violência, a meninada fugiu, iam tirando as camisas verdes para não serem identificados. Até nas ruas da Moóca foram encontradas estas camisas. Aquilo foi chamado, depois de “revoada dos galinhas verdes”. Naquele dia houve um comportamento exemplar das organizações e grupos proletários de combate. Uma disciplina à toda prova, uma grande bravura.

O que aconteceu com os mortos?

No dia seguinte, enterramos o Décio. Saímos em passeata-funeral desde sua casa, na Avenida São João, e subimos toda a Consolação, até o cemitério. Com ele homenageamos todos os que tombaram. Na ocasião, discursamos eu e Hermínio Sacchetta, ao lado do túmulo. Depois disso, fui visitar Mário Pedrosa no hospital. Lá chegando, fui preso. Interrogado, declarei ao delegado de polícia que sim, que era militante da LCI, com muita honra. Mas disse também que apenas havia passado pela Sé no dia anterior; neguei – é óbvio! – que havia dirigido a manifestação. Apesar disso, fui encarcerado no porão do presídio do Paraíso, sem poder tomar sol e comendo apenas uma lata de feijão por dia, durante 22 dias. Fiquei muito doente. Há certos gaiatos, farsantes, falsificadores da história que afirmam – baseados neste depoimento meu ao delegado de polícia, deliberada e obviamente falso, pois eu não me iria entregar de mão beijada aos inimigos de classe afirmando que eu era dirigente da FUA – que minha participação na Sé resumiu-se a um passeio…

E como você saiu da prisão?

Foi o então jovem deputado Adhemar de Barros que me tirou da prisão. Os pais dos presos, entre os quais os meus, foram à Câmara Estadual dos Deputados para solicitar intervenção junto à polícia pela nossa libertação. Formou-se uma comissão de deputados médicos e Adhemar de Barros, que era médico, fez parte dessa comissão. Futuramente eu me encontraria diversas vezes com Adhemar, inclusive após o golpe de 64, quando me reuni com ele para tentar organizar uma resistência ao golpe.

E a LCI, como estava?

Primeiramente, Vargas já havia iniciado a destruição dos sindicatos livres, criou a CLT (Consolidação das Leis do Trabalho) fascista e criou o Ministério do Trabalho. Tudo isso representou um golpe mortal na organização independente dos operários e na FUA. Depois veio o aventureirismo do PCB com o putsch de 1935, que deu a Vargas o pretexto para fazer uma verdadeira sangria na classe operária. Mario Pedrosa estava ferido, nossos militantes mais conhecidos – entre eles, Lívio Xavier – estavam presos ou na clandestinidade. A crise foi instaurada dentro da LCI. É preciso esclarecer (mais uma vez contra as versões mentirosas de certos “historiadores”) que a ANL criada pelo PCB em 1935 não tem nada a ver e nem é continuadora da FUA. Pelo contrário, enquanto a FUA tinha uma posição de classe, a ANL stalinista era de colaboração de classes, de aliança com a burguesia nacional. Tentei reorganizar a LCI, junto com Hylcar Leite. Mas, depois da “intentona” provocadora do PCB, a ação da polícia foi fulminante. Foram presos muitos camaradas. Fiquei cinco meses na clandestinidade, junto com Hylcar Leite, Fernando Salvestro e outros. Depois, fui preso novamente, condenado a dois anos e oito meses no presídio Maria Zélia, onde acabei ficando um ano e meio. Durante minha estadia na prisão, morreu o gráfico Manoel Medeiros, dirigente da LCI, por falta de assistência médica. Ao constatar a morte do preso, a administração resolveu retirar o cadáver sem qualquer exame da causa da morte, para esconder responsabilidades. Reivindicamos que antes da retirada do corpo ele fosse examinado. Os médicos tomaram a frente dessa luta. O delegado da polícia política, Tripolí, exigiu a retirada dos médicos da prisão, entre os quais o comunista Lo Schiavo. Depois, atribuiu-se falsamente a revolta no presídio à retirada de Leo Schiavo. Devido à campanha das eleições presidenciais, o então governador Armando de Salles Oliveira abriu as prisões em 1937 (procurava angariar simpatia entre as esquerdas e a população trabalhadora), e foi então que fui para a Bolívia.

Como foi seu exílio?

Saindo do Brasil, caminhamos eu e mais três camaradas cerca de 500 quilômetros (entre San José Chiquito e Santa Cruz) a pé, durante 35 dias. Em Porto Soarez pedi asilo ao governo Hernán Busch. Vivi em Santa Cruz de la Sierra, onde tive a oportunidade de ensinar as primeiras noções de marxismo a muitos jovens militantes que participariam depois da revolução boliviana de 1952. Conheci, na época, o jovem Guillermo Lora, que mais tarde se tomaria dirigente da poderosa Central Operária Boliviana (COB). Lora, em um de seus livros publicados, assinala minha presença e atividade no país.

E a volta ao Brasil?

Voltei em 1946. Comecei a luta pela construção de um Partido Socialista, junto com o atual senador Itamar Franco, o professor Antônio Cândido, João da Costa Pimenta e outros ex-camaradas da Liga.

Você participou em 1952 da prefeitura de Jânio Quadros. Como foi isso?

Em consequência de um acordo do PS com o então prefeito Jânio Quadros, fui indicado para a Secretaria do Abastecimento de São Paulo. Na ocasião, obtive permissão para expulsar os atravessadores do mercado, tentando beneficiar os produtores e cooperativas, contra a corrupção generalizada. Depois, quando Jânio se candidatou ao governo, não concordei em apoiá-lo. A maioria do PS virou “janista” (entre eles, Rogê Ferreira) e consumou-se um “racha” no partido. Terminou aí minha participação na prefeitura.

Qual foi sua participação na greve dos jornalistas de 1962?

Nesse ano, eu trabalhava na redação do jornal falado da rádio Eldorado. Eu fui eleito presidente do comitê de greve. Foi uma paralisação total dos jornalistas, dos distribuidores, dos gráficos, e até das bancas de jornais. Foram três dias de enfrentamentos com a polícia e, finalmente, nossas reivindicações foram completamente atendidas: aumento de 100%, e estabilidade, piso salarial da categoria (foi a primeira vez que se lutou por isso no Brasil), pagamento de horas extras, etc. Diga-se de passagem que foi a primeira vez que se paralisou a corporação do “Estadão” em 83 anos de existência daquele jornal!

Afirma-se que em 1964 você participou de articulações com o objetivo de tentar impedir o golpe militar. Como foi isso?

Não se tratava bem disso. Participei de uma reunião em março de 64, convocada pelo então senador (presidente do PSB) João Mangabeira em sua residência, com a presença de Luís Carlos Prestes, o dirigente gráfico do PS, Rocha Mendes, Leonel Brizola e uma pessoa que nos comunicaram ser representante de um alto prelado brasileiro. Nessa reunião, o Mangabeira nos declarou que tinha sido informado por um general (me parece que havia sido o general Âncora ou um enviado seu) de que os militares estavam prontos para desfechar um golpe para derrubar o governo Jango e instaurar um governo militar que, na expressão desse enviado, deveria durar 20 anos. Mangabeira, então, colocava o problema: o que deveríamos fazer? Brizola, Rocha Mendes e eu respondemos que seria preciso encarcerar os governadores do Rio de Janeiro e São Paulo, e dar voz de prisão a alguns generais mineiros. Prestes não estava presente na sala. Estava em outra sala, ao lado. João Mangabeira foi comunicar-lhe o resultado da consulta. Regressou depois e comunicou-nos que Luís Carlos Prestes havia saído da casa e lhe afirmara sua total discordância com o nosso ponto de vista. Prestes afirmou-lhe, ainda, que as forças populares controlavam o governo e que “nós estamos no poder”, não havendo portanto perigo de qualquer golpe. Pelo menos estas foram as palavras de Mangabeira. Cinco dias depois o golpe “impossível” aconteceu.

E como foi essa história de suas reuniões posteriores ao golpe com Adhemar de Barros?

Quando eu trabalhava na Manchete, já corriam rumores de desentendimentos entre os governos de São Paulo e Brasília. Os editores da revista pediram que eu entrevistasse Adhemar, coisa que aconteceu na fazenda do governador. A entrevista foi publicada na Manchete, e tratava apenas de questões gerais. Na fazenda, o governador tomou a iniciativa de propor que eu fosse falar com ele em seu escritório da Avenida São Luiz. Lá, ele me revelou que estava descontente com os rumos do movimento de 64, que inicialmente apoiara, e tinha a intenção de organizar um movimento de resistência. Acusou o Jango Goulart de ser responsável pelo golpe militar, por não ter querido “pagar para ver”. Pediu-me que convocasse outros representantes de sindicatos e movimentos populares para uma segunda reunião para discutirmos as características da resistência. Consegui em uma semana reunir algumas pessoas de São Paulo e Rio de Janeiro, todos com representação política expressiva. Do Rio veio, entre outros, o professor Bayard Boiteux, do PSB. A proposta do Adhemar nos pareceu utópica e inaceitável. Utópica porque contava com o apoio de uma força pública já minada pela influência de seu chefe, Cantídio Sampaio, que se aliara aos militares. Inaceitável, porque negava-se a entregar armas às forças populares, princípio do qual não abríamos mão. Todo o plano foi por água abaixo e Adhemar teve que seguir o caminho que prevíramos na reunião: a fuga do Brasil.

E o PT?

Eu me lembro que estava na casa de meu irmão Cláudio quando, junto com Mário Pedrosa e outros camaradas que então viviam lá escrevemos uma carta ao Lula, discutindo a ideia da formação de um Partido de Trabalhadores. Acho que o PT é a esperança do proletariado brasileiro; ele expressa a desconfiança das massas em face do PCB e a vontade revolucionária de construir o novo, o socialismo imaginado por Marx, Engels, Lenin e Trotsky, livre de toda mentira e de toda opressão.

Você gostaria de falar mais alguma coisa?
Sim. Quero dizer que é evidente que, nos limites desta entrevista, não foi possível abordar com toda a profundidade necessária os problemas da história do movimento operário contemporâneo no Brasil. Eu mesmo estou trabalhando no Centro de Documentação Mário Pedrosa (Cemap), que vem coletando todo o material histórico possível com esse fim. O Cemap é uma instituição apartidária, aberta a todos os interessados e que reúne um importante acervo documental – destaco as coleções Plínio Mello e a minha – que vai desde fins do século passado até nossos dias. A nossa sede fica na Rua Marconi, 124, 8° andar, em São Paulo. Lançaremos brevemente um livro (esperamos que seja o primeiro de uma série) em que iniciaremos discussões sobre tudo isso.


Publicado em:Cemap,História

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